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Galos e galinhas foram trazidos para o Brasil pelo português. A China conheceu-os onze séculos antes de Cristo e parece ter sido sua domesticação na Birmânia. A entrada na Grécia data dos tempos socráticos. Homero não menciona. Decorrentemente, as superstições ligadas aos galos e galinhas, no Brasil, são nitidamente europeias, com os elementos regionais vindos das espécies afins.
Nenhuma ave dá ideia de maior inofensividade que a galinha, o mais pacato dos viventes. Mas não é. Tem segredos detestáveis. A simples G. domesticus dos nossos galinheiros pode dar nascimento ao pior bicho do mundo, o basilisco, espécie de lagarto que mata pelo olhar como o catoblepas. Se ele é avistado primeiro pelo homem, morre fulminado. A galinha que passa sete anos sem pôr ovos é a futura mãe do basilisco. E tem outras singularíssimas manias. Quando começa a cantar como o galo, ou vice-versa, está atraindo a Morte para a casa dos amos.
Moça que assobia,
Galinha que canta,
Faca na garganta.
Quem é feliz na criação de galinhas não o será nos amores nem no casamento. A galinha choca então é um perigo. Faz abortar qualquer mulher que dela se aproxime. Muita gente séria perdeu filhos porque, não dando crédito às coisas, mexeu com galinhas no choco. Mesmo um negócio fica ao avesso se tocarem no ninho duma galinha choca. Os pés da galinha são excomungados porque espalharam as palhas do presépio onde Nosso Senhor Jesus Cristo nascera. Os ovos postos no Dia da Hora (Ascensão do Senhor) ficam frescos durante larguíssimo tempo e não apodrecem. A gema e a clara secam, formando uma massa espessa que serve para curar a embriaguez, enxaquecas crônicas e as feridas motivadas por insetos. Para uma criança falar e andar depressa o melhor remédio é fazê-la beber água numa casca de ovo, logo depois que o pinto a abandone. O pinto que nasce à meia-noite do dia de São João será músico e o Saci-Pererê o temerá sempre. É crendice paulista. Para não urinar na cama basta comer a crista do galo capão. As cólicas do parto são evitadas se tomarem caldo de galinha preta. A galinha preta, especialmente preta e de penas arrepiadas, é de alto prestígio no Catimbó e nas Macumbas para os ebós, coisas-feitas, mandingas, feitiços. O galo, cantado em mil páginas, possui larga folha de serviços estranhos. A tradição de afugentar a Noite batendo as asas e chamar o Sol com o canto é velha e clássica. Lucrécio, noventa anos antes de Cristo, poetava no De natura rerum (canto-IV, v. 714-715):
Etiam gallum, noctem explaudentibus alis
Auroram clara consuetum voce vocare...
Acreditam que, depois de certa idade, o galo esqueça o sexo e ponha ovos. O basilisco pode nascer também num desses ovos. É uma estória corrente na Europa. Gratien de Samur (Traité des erreurs et des préjugés, Paris, 1943) adverte: “Ne croyez point à l’existence d’oeufs de coq, attendu que jamais coq n’a pondu: ce qui nous dispense de combattre cette autre erreur longtemps accréditée, qui veut qu’un oeuf de coq produise un serpent”. Warée (Curiosités judiciaires, Paris, 1859) informa que um magistrado de Basileia condenou um galo a ser queimado vivo por ter posto um ovo! Tomo a liberdade de declarar que Gratien de Samur está errado e o juiz de Basileia está certo. O galo velho põe ovos. Possuo um ovo de galo, posto no dia 27 de janeiro de 1952, com a agravante de ter sido galo de briga. É um quarto do volume do ovo comum. Não tem, evidentemente, gema. Depois de algum tempo o conteúdo petrifica-se. Presenteou-me o Sr. Laérson Barbosa de Vasconcelos, dono do galo poedor, informando-me ser comum essa façanha nos galos em disponibilidade.
Galo cantando fora de horas é moça que foge ou novidade qualquer, fogo, inundação, desmoronamento. Petrônio, no tempo do Imperador Nero, narra o que ocorreu no banquete de Trimalchion quando, fora de hora, gallus gallinaceus cantavit. Despejaram o vinho das taças debaixo da mesa, espalharam o óleo das lâmpadas. Trimalchion passou o anel da mão esquerda para a direita. O canto anunciava a morte de alguém ou incêndio no quarteirão.
Não se fiem na rolinha-cascavel, a fogo-apagou, a palo-cafofo do Nordeste, Scardafella squamosa. Quando ela começa a piar perto duma casa, fiquem certos que dali vai sair enterro. Aquele arrulho é cantiga de velório.
Desconfiem do camarada anum, Crotophaga ani. É preto, cínico, imperturbável, mas muitíssimo amigo da Morte, que lhe confia os segredos das suas escolhas. Revoando continuamente perto das latadas e dos alpendres onde fazemos a sesta, está predizendo infelicidades. Anuncia o inverno e a seca. Se fica pousado numa árvore que tenha sombra e verdura, teremos chuvas. Para que isto se dê é preciso que o anum pouse três ou sete dias “encarreados”, seguidos. Quem tira ovos de anum procura luto para a família. No Sul do Brasil, o anum tem outras especialidades. Comer fígado de anum, pensando numa moça, torná-la-á apaixonada. Passar o bico do anum no rasto da mulher desejada dá o mesmo resultado. O anum receitado para essa macumba é o anum-branco, guira-guira, apelidado no Sul quiriru.
O tetéu, Belonopterus cayennensis, quero-quero, terém-terém, espanta-boiada, é bicho muito suspeito. Teve a honra de dar nome aos revolucionários gaúchos de 1893. Os governistas eram “pica-paus”. No Amazonas, há um longirostro que não dorme. É o manguari, Ardea maguari, Gmel, ou Ciconia maguari, Tenm. Passa a vida tentando dormir, colocando o bicão enorme sobre o lombo. Vai dorme-não-dorme quando o bico escorrega e o manguari desperta, gritando. O nosso tetéu é assim também. Põe uma patinha no meio da perna e fecha os olhos. A pata escapole e o tetéu acorda, badalando uma guisalhada de acordar menino surdo. Mas o que torna o tetéu pouco amistoso é que ele, voando dos lugares molhados para os enxutos, leva desdita na certa. Do seco para o úmido é boa sorte.
O pombo, doce, o meigo arrulhador namorado, só deve ser visto assado e perto do talher. É índice da prosperidade material do dono. Um índice às avessas, porque o Columba domestica multiplica o bando quando o proprietário empobrece e diminui quando o dono enriquece. Já se vê que um grande pombal esvoaçante denuncia miséria próxima para o criador. Em Portugal, há provérbios ambivalentes: “Quem não tem pombos, não tem fortuna”. “Casa de pombos, casa de tombos”.
O beija-flor sim. Apenas anuncia visitas. Os mais bonitos, Chlorostilbon aureiventris, dizem da riqueza do visitante. Os escuros, Anthracothorax nigricollis, os pobres; e os policolores, Florisuga mellivora, dizem que o próximo hóspede é socialmente poderoso com ou sem amplos recursos financeiros. O beija-flor não beija flor nenhuma nem chupa mel e sim cata insetos nas corolas. Sua figura no folclore é rica e multiforme. No Norte da Argentina, é o arauto das visitas, como no Brasil. Os indígenas diziam-no mensageiro da outra vida. A rapidez fulgurante da avezinha dava a impressão da distância incrível facilmente percorrida. O tamanho minúsculo indicava-o para a função especial do enviado que por toda a parte encontraria passagem. É atrevido e brigão. Parte, silvando de ira, contra aves muitas vezes maiores. Numa estória amazônica, que Barbosa Rodrigues recolheu, o beija-flor desafiou o amigo manguari, o manguari que não dorme, para um voo de resistência. O manguari aceitou a peleja, deixou-o partir como um raio e voou depois, lento e seguro nas grandes asas atroadoras. Quando chegou ao meio do rio, encontrou o beija-flor boiando. Cansara e pedia socorro. Se passou até a margem foi porque o manguari, apiedado, trouxe-o pendurado como um badulaque.
Esses beija-flores, Trochilideos, colibris, transformam-se em mariposas ou borboletas na fiel crença popular. O Padre Simão de Vasconcelos em 1663 dava depoimento firme e valioso: “Esta avezinha, suposto que fomente seus ovos e deles nasce, é coisa certa que é produzida muitas de borboletas. Sou testemunha que vi com meus olhos uma delas, meio ave e meio borboleta, como ia se aperfeiçoando debaixo da folha de uma latada, até tomar vigor e voar” (Crônica, 1, I, 112). Essa mariposa nascida do beija-flor é, segundo Rodolfo von Ihering, a Pholus lambruscae.
O bem-te-vi, Pitangus sulphuratus, só sabe dizer o seu nome malicioso para avisar que alguém se aproxima dele. O bem-te-vi pequeno, Pitangus lictor, também possui mania idêntica e não é simpático porque tanto gritou Bem te-vi! Bem-te-vi! seguindo Nosso Senhor, na sua fuga para o Egito, que os soldados do Rei Herodes iam-no prendendo. Daí a pouca simpatia popular. É o tipo da ave brigona, atrevida, agredindo até gaviões. Tive a honra de estudá-la no meu Canto de muro (Rio de Janeiro, 1959).
O urubu, Cathartes, aparece nas estórias e nas superstições. Tem a fama que os corvos gozaram no tempo de Hesíodo. O sertanejo diz que não é bom avistarmos o urubu trepado na cumeeira da casa, asas abertas, secando ao sol. A espingarda que atira em urubu fica imprestável. O cano escorre água e a mira entorta de vez. A presença noticia a vizinhança da carniça. As almas que pecaram muito se podem tornar em urubus. Uma senhora de engenho, muito malvada, que vivia no Ceará-Mirim (Rio Grande do Norte), foi vista como um urubu, pousado tristemente perto do cemitério. Uma ex-escrava invocou o espírito e o urubu confessou que fora mesmo a senhora branca. Pedia missas e aconselhava tratar bem aos escravos.
Os indígenas do Rio Branco, em Uraricuera, contam que o urubu era branco. Nuá (Noé) mandou-o reconhecer se a terra estava enxuta depois do dilúvio. O urubu entreteve-se comendo peixe podre e brincando na lama. Ficou sujo e fedorento. Nuá condenou-o a conservar a cor e o mau cheiro que ainda hoje lhe restam. A lenda foi recolhida por Koch-Grunberg.
Noutras estórias ele está como personagem de primeiro plano. No conto etiológico em que o sapo ou jabuti assistem à Festa no Céu, é o urubu quem conduz o herói, sem saber ou sabendo, dentro da viola. Mas isto é outra estória, como diria Rudyard Kipling.
Ninguém come carne de urubu por maior que seja a fome, porque provoca a lepra. Árvore preferida para pouso de urubus perde as folhas. Ave amaldiçoada, quando morre não apodrece, seca e nem as formigas a querem.
Há uma família inteira que não merece relações de amizade. São as sisudas strix. Todas as corujas são da intimidade da Morte e se dão ao desplante de vir rasgar mortalha (Suindara, Strix flammea perlata), quando o defunto ainda está vivo, ou piar-lhe à porta numa cantiga que é um arrepio sinistro. As penas da coruja, molhadas no próprio sangue e enterradas na soleira da porta ou mourão da porteira do curral, afugentam fantasmas e anulam bruxarias.
O jucurutu, Bubo megallanicus, assombra até um cavalo de bronze. Quando silaba o seu canto sincopado, não há cabelo que fique quieto. Eriça-se como porco-espinho. Os tupis apontavam-no como pertencente a Jurupari, quando este foi identificado pelos jesuítas como entidade assombrosa e diabólica. O canto esfarela-se no ar com uma lentidão de uivo estrangulado: – Jurucutu... tuuuuuuu... tuuuuuuu! Pavor!
A acauã, Falco cachinans, é que é, falsa e verdadeiramente, possuidora de tradições terríficas. Muitas tribos amerabas respeitavam-na, porque devora as cobras que vai encontrando. É uma ave austera, cheia de gravidade e senso que faz gosto vê-la. Andando devagar e compassadamente como compete a um ente que tem direito ao culto dos homens, dá vontade de cumprimentá-la como a um desembargador antigo. O combate com a cobra lembra o embate do mirmilão com o rediário no circo romano. A acauã ataca e se abriga no escudo da asa destendida e pronta até que fisga a cabeça da cobra. E, adeus cobra! Os xipaias, indígenas do Pará, não caçam nem pescam ouvindo-lhe o grito premunitório. Tenho por justo e perfeito o crédito que gozava junto aos Orises no século XVIII. O canto da acauã provoca nas mulheres caboclas do Amazonas uma moléstia nervosa que consiste na repetição irresistível do canto, convulsa espasmodicamente. Diz-se que a mulher está pegada pela acauã. Semi-inconsciente, imita a ave, gemendo a toada melancólica, uacauã... uacauã, e terminando pela gargalhada estrídula e apavorante da acauã.
O bacurau, caprimulgida, o bacurau-mede-léguas, passa a noite pelos caminhos, olhos acesos como coivaras, contando as léguas numa medição gratuita e sem fim. No Sul, chamam-no também tabaco-bom, sebastião, tion-tion, e mesmo corujão. Parece ter havido uma lenda, desaparecida nos elementos essenciais, sobrevivendo a frase: “É dizendo e bacurau escrevendo”, significando a veracidade indiscutível da afirmativa. Sugere a ave agachada pela areia escrever com o bico? É amuleto. Pena de asa de bacurau cura dor de dente e algumas outras, dispostas entre a manta e a sela, fazem com que o cavalo não caia nem que salte rio cheio.
Surpresa é dizer-se que a lavadeira, Arundinicola leucocephala, a tiranida vista em toda a parte, esteja no Índex proibitório. Apesar de seus hábitos simples, de sua familiaridade, de suas visitas às calçadas e cozinhas, de seus saltos e reviravoltas, a lavadeira não é boa peça. Se lavou a roupa de Nosso Senhor foi o seu gesto único de bondade. Dá azar. Para anular seu inconsciente prestígio maléfico, quando lhe derem de comer, especialmente se for fiapos de carne verde, não lhe deem de beber. E vice-versa.
A peitica, Tapera naevia, não tem no Norte do Brasil a vastidão supersticiosa que goza no Sul e Região do Prata. É o mesmo sem-fim, o mesmíssimo Saci-Pererê que Lehmann-Nitsche identificou com o Crispim argentino. É ainda o matintaperera no Pará, o peixe-frito ou peito-ferido em Minas Gerais. No Nordeste a peitica é ave que dá quizila, irrita, aborrece sem ter lenda conhecida ao derredor. Peitica é aborrecimento, insistência, importunação. O ciclo do Saci-Pererê é um dos maiores do Brasil, não pela ave, mas pelo seu homônimo, o molequinho unípede, de carapuça vermelha, atordoador, travesso e mágico.
Em 1913 voltava eu da então Vila de Augusto Severo para a Fazenda Logradouro. Noite de luar. A estrada era margeada pelos capões de mato ralo onde subiam as oitecidas esgalhadas e os juazeiros ornamentais. Súbito, do sussuro dos grilos, saiu um lamento estranho, ululado, plangente, interminável. Um uivo quase humano de dor desesperada, de agonia terrível, sufocado, impressionante, inesquecível, rasgou a solidão enluarada. Ao meu olhar assombrado, o companheiro respondeu, num incontido tremor: – É a mãe-da-lua! A mãe-da-lua; anda-a-lua em Minas Gerais; chora-a-lua na Bahia; o urutau das superstições sul-americanas; o cacuí ou turaí na Argentina; o iudutau dos amerabas tupis, o whip poor will da Guiana Inglesa, é um caprimúlgida alvacento ou cinzento, com a imensa boca típica, hábitos noturnos que o fazem misterioso e aterrador. Fica imóvel num galho e passa a noite soltando aquela gargalhada fantástica que espalha o pavor. Não existe tradição local sobre a mãe-da-lua senão o medo instintivo que seu canto determina. A lenda única que pude recolher, variante da lenda geral sul-americana que Lehmann-Nitsche estudou, é que fora mulher extremamente amiga de festas. Deixou o marido, a quem adorava, doente e dançou toda a noite. Voltando, encontrou Paulo, o esposo, morto. Desesperada de remorsos e convulsa de arrependimento, soltou um grito feroz e transformou-se na mãe-da-lua. Até hoje chama Paulo! Paulo! e soluça uma risada de martírio. Canta sempre à noite, seja ou não de luar. Nessas últimas, seu canto parece mais longo e mais profundo de intenção trágica, partindo da mata escura.
Couto de Magalhães denominou-a ave fantasma. Para os guaranis é a indígena Nheambiú que virou ave depois da morte do seu noivo Quimbae. Os carajás dizem que ela foi a moça Imaerô que tomou a forma do urutau com ciúme de sua irmã Denaquê, que se casara com Taina-Can, a Estrela Vésper, tornado velho e alquebrado, e que pedira noiva e só Denaquê o aceitara. Quando Imaerô viu Tania-Can moço, forte, bonito, enlouqueceu de raiva e ficou sendo o Urutau lúgubre. Para os indígenas do Rio Buapé (Waupés), afluente do Rio Negro, foi o tuixaua Duiruna que se tornou urutau por ter sua mulher Ueundá se transformado em pacutinga (Prochilodus). Os tupinambás afirmavam que ela trazia notícia dos antepassados e não a matavam. Suas penas servem como preservativos contra a luxúria. Ao vir da puberdade, as moças indígenas assentavam-se sobre a pena retirada a um urutau. Para outras tribos o costume era varrer o chão com as penas da mãe-da-lua. Não veio ao Brasil a tradição de que essas aves tiram o leite das cabras, donde o nome científico europeu, Caprimulgus, munge-cabras, e a denominação popular inglesa de goat-suckers. Na Europa a crendice é viva de a Caprimulgus europaeus ter a habilidade de ordenhar cabras e servir-se habitualmente do leite. Do seu canto há o registro de Charles Waterton, que o ouviu na Guiana Inglesa: “Its cry is so remarkable that, having once heard it, you will never forget it”. Nem se concebe que seja um canto de ave: “A stranger would never conceive it to be the cry of a bird”.
No Amazonas, um pássaro extraordinário é o tincuã, chamado mesmo uira-pajé, o pássaro-pajé, feiticeiro. O tincuã (Cocculus cornutus ou Piaya cayana guianensis, Cabanis & Heine) é a alma-do-gato ou a alma-do-caboclo, no Nordeste e Sul do País. O tincuã quando canta é porque alguma desgraça vai infalivelmente acontecer. Inundações, incêndios, ataques predatórios, raptos, secas, ausência de caça, falta de peixe, mortes, perda de safras, ocorrem. No Nordeste a alma-de-gato não dirige esse cortejo fatídico. Apenas o sertanejo não gosta de ver o alma-de-gato. É um leve traço que denuncia a passada existência do mito ou complexo de receio.
No Amazonas, o tincuã era filho de um tuixaua (chefe) e foi jogado na água para que uma piraíba (Brachyplatistoma filamentosum, Licht) o devorasse. Noutra versão, é o filho do tuixaua que nasce encantado e tem a pele riscada. O pai levou-o e escondeu-o na barriga da piraíba. Daí em diante o rio ficou misterioso. Era preciso sacrificar uma criança para obter-se pescado. Aconselhado pelos pajés (médicos, conselheiros, feiticeiros), os indígenas fizeram uma corda com cabelo feminino e pescaram a piraíba. Os pajés haviam dito que não deixassem voar um pássaro que estava dentro do peixe. Os pescadores, no afã da pesca, não puderam segurar o pássaro que escapou e cantou, alto: Tincuã! Tincuã! Imediatamente o céu ficou escuro. A terra tremeu. O lago secou. Toda a gente morreu. Só ficou o pássaro encantado, cantando: Tincuã! Tincuã! (Barbosa Rodrigues, Porandura).
De toda a avifauna amazônica a mais prestigiosa influência possui o uirapuru, irapuru, que não atino classificá-lo na confusão dos modelos apresentados por Emílio Goeldi, Rodolfo von Ihering, Emília Snethlage. Equivale em poder propiciatório ao caburei (Glaucidium ferox) na Argentina. É uma ave pequenina, escura e de aspecto insignificante. Tem uma escala musical de cinco notas, nalguns depoimentos. Canta rapidamente e todas as aves cercam o uirapuru para ouvi-lo. Nenhuma outra interrompe a sedução do canto enebriante.
Gastão Cruls, que o ouviu em 1928 no Erepecuru, depõe: “Era um gênio da floresta a soprar por flauta mágica e da qual obtinha as mais incríveis melodias”. Couto de Magalhães indicou o uirapuru como o deus protetor das aves, notícia que não deparei noutra fonte. É um amuleto irresistível para o amor, negócios, caça, pesca, jogo. Guardam-no nos cofres-fortes ou trazem-no pendurado à cinta, no bolso, resguardado num saquinho de seda. Quem possui um uirapuru é feliz em tudo quanto desejar. Não há dificuldades que resistam ao uirapuru. Para isso é indispensável que seja convenientemente preparado pelo pajé. Não agindo, a culpa foi do preparo inadequado ou falso. Ausência da competência técnica na elaboração do amuleto. Só pode ser caçado de flecha. A posição em que cair no solo determina o destino da utilidade. Ficando com as patinhas para cima será para mulheres. Caindo de papo para baixo, pertencerá aos homens. O pajé tem processos secretos e especiais para “preparar” o uirapuru. Preparado, fica reduzido a uns dez ou mais curtos centímetros, quase negro pela fumaça, escurecido pela curuaruicica e avermelhado pelo carajuru, além das deformações a que o pajé o sujeitou. Dizem que o uirapuru falsificado é mais abundante que o verdadeiro. Explicação de sua ineficácia funcional. Daí o amuleto falhar. Não há reminiscência alguma do uirapuru fora do Amazonas nem mesmo trazidas pelos nordestinos de torna-viagem dos seringais e não conheço lendas amazônicas sobre ele. Sua virtude específica é proteger, depois de morto, jogadores, traficantes, contrabandistas conquistadores.
Triste destino da ave doce e melodiosa. O primeiro naturalista a registrar musicalmente o canto do uirapuru foi Richard Spruce, em 1848, nas margens do Rio Trombetas. Comparou-o com uma caixinha de música, tune-playing-bird.
O pica-pau (Picídeos) não trouxe para os afins brasileiros sua fama altissonante europeia onde antecedeu a Júpiter no governo do mundo (J. Rendal-Harris, Picus who is also Zeus, Cambridge, 1916). Corre a fama da folha do pica-pau, com que liberta os filhos quando aprisionados e quem a consegue tem um talismã invencível. No Rio Grande do Sul, o pica-pau é de mau agouro. Quem possua um cancão (Cyanocorax cyanoleucus), quem-quem, piom-piom, não sofrerá de puxado, asma.
O pitiguari (Cyclarhis cearensis guyanensis, Baird) canta avisando visitas: Olha o caminho que vem gente! (Pernambuco); Gente de fora vem! (Bahia); Olha pro caminho que já vem! (Rio Grande do Norte). Mário Melo (1884-1959) dizia-me terem feito em Pernambuco do pitiguari uma sentinela para avisar da proximidade das visitas e evitar tentativa de raptos de moças. Quando o peru anda com as asas baixas, caídas, arrastando no chão, é mau sinal e convém transformá-lo em assado, antes que continue chamando mortalha. Os periquitos-australianos, lindos, dão o maior atraso do mundo. Vá vê-los na casa alheia. Graúnas (Cassidiz oryzivora, Gm) e canários (Sicalis) dão sorte, legítimas mascotes na avifauna. Quem cria papagaio não cresce no ter.
Nas tradições dos pescadores e marinheiros, há muitas aves que prenunciam tempestade e bom tempo. Uma delas é o palmípede procelária, alma-de-leste ou alma-de-mestre (Thalassidroma wilsoni), alcião. Voando para o mar, é sinal de bom tempo. Voando para a terra, traz borrasca, na certa. Os jangadeiros dizem que é o espírito de um velho mestre de barcaça, vivendo naquele corpo, dando aviso aos companheiros do tempo de agora. Outrora voltavam à praia encontrando a alma-do-mestre no caminho da costa. O tempo estava se armando lá fora. Na Baía de Guanabara, as gaivotas voando baixo, à flor da água, dizem que o tempo está firme. Voando alto, em rodopios, chuva de vento.
Nesses assuntos, como dizia o Padre Antônio Vieira, não louvo nem censuro; pasmo com as turbas...