1

Voz do povo, voz de Deus

O vox populi, vox Dei parece referir­-se à opinião pública, ao consenso da cidade, unânime ou em maioria decisiva num determinado julgamento. Vale a sentença ditada pela coletividade.

Creio tratar­-se de outra origem, mais diretamente ligada a um processo de consulta divina, sendo o povo o oráculo, a pítia da transmissão.

Hermes, o Mercúrio de Roma, possuía em Acaia, ao norte do Peloponeso, um templo onde se manifestava, respondendo às consultas dos devotos pela singular e sugestiva fórmula das vozes anônimas. Purificado o consulente, dizia em sussurro ao ouvido do ídolo o seu desejo secreto, formulando a súplica angustiada. Erguia­-se, tapando as orelhas com as mãos, e vinha até o átrio do templo, onde arredava os dedos, esperando ouvir as primeiras palavras dos transeuntes.

Essas palavras eram a resposta do oráculo, a decisão do deus. Vox populi, vox Dei, na sua expressiva legitimidade.

Teófilo Braga expõe a superstição em Portugal: “A voz humana tem poderes mágicos; um feiticeiro: – Para saber se uma pessoa era morta ou viva, dizia à janela: – Corte do Céu, ouvi­-me! Corte do Céu, falai­-me! Corte do Céu, respondei­-me! Das primeiras palavras que ouvia na rua acharia a resposta” (Sentenças das inquisições, ap. Boletim da Soc. de Geografia). Na Foz do Douro, costumam as mulheres andar às vozes para inferi­rem pelas palavras casuais que ouvem do estado das pessoas que estão ausentes. D. Francisco Manoel de Melo, nos Apólogos dia­logais (mais precisamente no Relógios falantes, 24 da edição brasi­leira de 1920), refere esta superstição: “e com o próprio engano com que elas traziam a outras cachopas do São João às quartas­-­feiras, e da Virgem do Monte às sextas, que vão mudas à romaria, espreitando o que diz a gente que passa; donde afirmam que lhes não falta a resposta dos seus embustes, se hão de casar com Fulano ou não; e se Fulano vem da Índia com bons ou maus propósitos; ou se se apalavrou lá em seu lugar com alguma mes­tiça filha de Bracmene”. As vozes também se escutam da janela e a pessoa que se submete a esta sorte prepara­-se com esta oração:

Meu São Zacarias,

meu santo bendito!

foste cego, surdo e mudo,

tiveste um filho

e o nome que lhe puseste João:

Declara­-me nas vozes do povo se eu...

Da Ilha de São Miguel, escreve Arruda Furtado (Materiais para o estudo dos povos açorianos, 42): “Quando qualquer pessoa quer saber notícias que lhe hão de vir de um amante, vai de noite num passeio até o adro da igreja em que está o Santo Cristo, rezando umas contas e com outra pessoa atrás para ir ouvindo melhor o que se diz pelo caminho e dentro das casas, e isto sem que nenhuma delas diga uma só palavra. Quando voltam, vêm combinando o que ouviram e dali concluem que novas hão de vir” (O povo português etc., II, Lisboa, 1885).

J. Leite de Vasconcelos (Tradições populares de Portugal, Porto, 1882) registrara identicamente. Quando se quer saber qualquer coisa, chega­-se à janela, à hora das trindades (outros dizem que a qualquer hora) e diz­-se: “Meu São Zacarias, meu santo bendito! foste cego, surdo e mudo, tiveste um filho e o nome que lhe puseste João: Declara­-me nas vozes do povo se eu...” (formula­-se aqui o que se deseja saber). Em seguida cor­rem­-se às ruas, sem parar, recolhendo­-se os ditos que se ouvem, e aplicando­-os ao fim, no que eles têm de aplicável. A fórmula diz­-se três vezes, e a cerimônia dura três noites seguidas (Minho). No Porto, antes de se correrem às ruas, vai­-se rezar à Senhora das Verdades (ao pé da Sé), e enquanto anda pelas ruas, não se fala com ninguém. A isto se chama ir às vozes. (O Sr. Martins Sarmento, que me deu a informação do Minho, acrescentou­-me: cf. Vox populi, vox Dei.)

No Brasil as vozes são especialmente dedicadas a Santa Rita. O Barão de Studart escreveu sobre essa superstição: “Para adivinhar o futuro, reza­-se o Rosário de Santa Rita, ao mesmo tempo que se procura ouvir na rua ou da janela a palavra ou frase que será a resposta ao que se pretende saber. Reza­-se o Rosário de Santa Rita, substituindo­-se os Padre­-Nossos do rosário comum pe­las palavras: ‘Rita, sois dos Impossíveis, de Deus muito estima­da, Rita, minha padroeira, Rita, minha advogada’, e substituindo as Ave­-Marias pelo estribilho: ‘Rita, minha advogada’” (Anto­logia do folclore brasileiro).

O Dr. Getúlio César testemunhou a contemporaneidade da crendice no Ceará: “No Ceará, na cidade de Granja, em uma noite de lindo pleni­lúnio, minha atenção foi desviada para uns grupos de senhoras que passeavam pelas ruas, aproximando­-se si­lenciosamente das pessoas que palestravam nas calçadas. Procuran­do saber do que se tratava, o hoteleiro me explicou: – São pessoas que desejam saber notícias dos parentes distantes, no Amazonas. Fazem oração (o Rosário de Santa Rita) e esperam ouvir dos que conversam a resposta desejada. Um pode ser, talvez, nunca, muito breve, sim, não etc., são palavras e frases que vêm dar respostas à pergunta que fizeram quando rezavam o rosário. Afirmam ser isso positivo e recorrem ao rosário com absoluta confiança. As senhoras quando querem ter uma resposta segura para algum casamento em perspectiva ou demorado, ou quando desejam saber notícias de alguém que longe está, lançam mão do recurso fácil e positivo: o Rosário de Santa Rita. E, assim, nas noites escolhi­das, de ordinário ao luar, porque há muita gente passeando pelas ruas, saem elas em grupos silenciosos, rezando em um rosário. Nos Padres­-­-Nossos dizem: – Minha Santa Rita dos Impossíveis, de Jesus muito estimada, sede minha protetora, Rita, minha advogada: valei­-me pelas três coroas com que fostes coroada, a primeira de solteira, a segunda de casada, a terceira de freira professa, tocada de divindade. E nas Ave­-Marias: – Valei­-me, Santa Rita do meu amor, pelas cinco chagas de Nosso Senhor. Uma palavra qualquer dita por alguém que passa e que tinha uma ligeira conexão com o assunto da pergunta feita será, como atrás dissemos, a resposta que pode trazer tristeza ou alegria, mas que será recebida como se fosse uma mensagem celeste” (Crendices do Nordeste, Rio de Janeiro, 1941).

Durante meu curso de Direito no Recife, 1924­-1928, ouvi inúmeras vezes alusões às vozes e à eficácia das consultas. As igrejas mais preferidas eram São José de Ribamar e Santo Antô­nio. Rezavam, ignoro se o Rosário de Santa Rita ou se a Salve­-Rainha até o nos mostrai, diante dos altares e saindo procuravam ouvir uma palavra dita por um transeunte, aplicando­-a à pergunta mental que se fizera. A denominação é a mesma: – ir às vozes, consultar as vozes, ouvir as vozes. Era comum e natural. A dona da pensão em que me hospedara na Rua do Imperador era devota. Ia sempre a São José de Ribamar, ficando no adro, à espera das vozes anônimas do povo.

O Prof. Raffaele Castelli menciona a mesma superstição na Itália, notadamente na Sicília. A mãe da noiva, depois de orar, oculta­-se detrás de uma porta de igreja e a primeira palavra ouvida é a resposta sobre o futuro da filha. Em Palermo algumas igrejas eram populares por essa tradição. Uma reminiscência clássica, que indica a persistência do costume, ocorre decisivamente na vida de Santo Agostinho (354­-430), quando professor de retórica em Milão. Debatia­-se numa crise espiritual, passeando num jardim. “Estando nisto, ouvi uma voz da casa que estava ali perto, como se fosse não sei se de menino ou menina, com uma canção que dizia, e repetia muitas vezes: – toma, , toma, ; e eu, mudado o rosto, entre a considerar se porventura os meninos costumavam cantar semelhante cantiga em algum jogo; e não me lembrava de a ter ouvido em parte alguma; e reprimindo o ímpeto das lágrimas, me levantei, não entendendo ser me mandada outra coisa divinamente, senão que abrisse o livro e lesse o primeiro capítulo, que se me oferecesse” (Confissões, livro VIII, cap. XII). Leu então a Epístola de São Paulo aos Romanos e converteu­-se. A voz anônima cantando o tolle, lege, tolle, lege fora aviso celestial.

Dessa antiguidade de aplicar as vozes aos fatos imediatos e pessoais, há delicioso registro do ¿Don Quijote de la Mancha (II, LXXIII): “A la entrada del cual, según dice Cide Hamete, vió Don Quijote que en las eras del lugar estaban riñando dos mu­chachos, y el uno dijo al otro: – No te canses, Periquillo, que no la has de ver en todos los días de tu vida. – Oyólo Don Quijote, y dijo a Sancho: – ¿No adviertes, amigo, lo que aquel mu­chacho ha dicho: ‘no la has de ver en todos los días de tu vida?’. – Pues bien: ¿qué importa – respondió Sancho – que haya dicho eso el muchacho? – ¿Qué? – replicó Don Quijote – ¿No ves tú que aplicando aquella palabra a mi intención, quiere significar que no tengo de ver más a Dulcinea?”. Do século XV é o depoimento da velha Celestina, provecta alcoviteira, enumerando entre os bons agouros deparados quando ia para casa da moça Melibeia: ¡La primera palabra que oí por la calle fué de achaque de amores!” (La Celestina, ato IV).

Há na noite de São Pedro (29 de junho) a famosa Adivinhação de São Pedro, que é uma consulta às vozes. Passa­-se um copo de água pela chama da fogueira, reza­-se: “Pedro, confes­sor de Nossa Senhora, Jesus Cristo, Nosso Senhor vos chamou e disse: – Pedro, tomai estas chaves do Céu, são vossas! Por elas vos rogo, glorioso São Pedro, que se isto tiver de acontecer (faz­-se o pedido) três anjos do Céu e três vozes do mundo digam três vezes: Amém! Amém! Amém! Não tendo de acontecer, três vozes do mundo digam três vezes: – Não! Não! Não!”. Fica­-se com água na boca, numa janela ou porta, esperando a resposta das vozes da rua.

Em Portugal, pelas festas do Natal, com água na boca, aguar­dam, atrás duma porta ou janela, o nome do futuro esposo. No Brasil, há semelhantemente durante o São João.

Cervantes registra o mesmo na comédia Pedro de Urdemalas (1610­-1611), fazendo­-o declamar: ­

Ha de esperar hasta el día.

señal de su casamiento;

sé tú primero en nombrarte

en su calle, de tal arte,

que claro entienda tu nombre.

Certamente esse processo de consultar a vontade divina através das vozes dispersas da multidão podia ter determinado a frase Vox populi, vox Dei, lembrada por Martins Sarmento, o grande arqueólogo de Guimarães, e não a indeterminada convergência intemporal da opinião pública. A voz do povo é a voz de Deus, o Deus dos cristãos, como o fora de Hermes ou Mercúrio, agora na intenção das fórmulas rogativas de Santa Rita dos Impossíveis, ou do profeta Zacarias, ou do apóstolo São Pedro. O oráculo de Acaia é a mais antiga forma dessa técnica.

Consulta­-se a Deus e o Povo responde, transmitindo a mensagem. Voz do povo, voz de Deus, evidentemente nessa acepção.