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Quem empresta nem para si presta

Espingarda de caça,

Cachorro de raça,

Mulher de estimação,

Não empreste não!

Veio­-nos de Portugal a desconfiança pelo objeto emprestado, sempre incompleto pela ausência real do sentimento de posse integral.

Indígenas e escravos africanos não tinham esse critério psi­cológico. Cada objeto impregna­-se do espírito da pessoa que o possui. Participa de todos os fluidos e forças anímicas. Na mão dos feiticeiros um objeto de uso é um elemento propício para todos os encantos, porque prolonga a própria individualidade do possessor. Saint­-Hilaire, em 1819, notava em Mato Grosso encontrar sempre joias de ouro quebradas quando expostas à venda. Quebrando a joia, interrompia­-se a continuidade mágica do con­tato. Poderiam passar às mãos de qualquer outra entidade sem os prejuízos da conservação personalíssima. Assim, uma peça de roupa, superficial ou íntima, é uma parte do indivíduo. Sobre esse material é possível exercer­-se uma força contrária e maléfica, com a transmissão inevitável ao antigo dono.

É a critério mágico do totum ex parte, que Sir George James Frazer enunciou: “As coisas que estiveram outrora em contato e cessaram de estar, continuam tendo, uma sobre a outra, a mesma influência como se o contato houvesse persistido”. Por isso um fragmento de roupa, cabelos, unhas, saliva, sangue, suor, uma joia, um lenço, um retalho de papel úmido de qualquer secreção humana será alvo precioso num trabalho de feitiçaria, branca ou negra, às esquerdas.

As devotas ensinam que os terços ou rosários não devem servir quando obtidos por empréstimo, porque os valores místicos ocorrerão para o legítimo dono e não para quem reza por ele momentaneamente.

Toda arma emprestada é suspeita, porque está fora da mão do dono, condição favorável ao êxito.

Com as armas emprestadas

Não se ganha a valentia!

Nos velhos “romances” do século XV, remodelados na centúria posterior, menciona­-se o juramento de não emprestar armas de combate ou cavalo de sela. No romance de Dom Gaifeiros, versão de Trás­-os­-Montes, Gaifeiros pede ao tio Roldão cavalo e armas para libertar a esposa, prisioneira dos Mouros.

Minhas armas não te empresto,

Que as não posso desarmar;

Meu cavalo bem vezeiro

Não o quero malvezar.

No romance Melisendra, Dom Roldão responde ao sobrinho:

Em São João de Latrão

Fiz juramento no altar,

De a ninguém emprestar armas

Que m’as faça acovardar.

Noutra mão, mesmo do sobrinho lidador, o cavalo ficaria mal avezado e as armas covardes. Tal era a Lei de Cavalaria. Cada Cavaleiro com suas armas, sua montada, sua Dama.

No cerco de Troia, Aquiles emprestou suas armas a Pátroclo, mas Heitor venceu­-o, arrebatando­-as (Homero, Ilíada, XVI). As armas forjadas pelos deuses perdiam as forças quando em mãos alheias.

Mil cento e oitenta anos antes de Jesus Cristo nascer, quem lutava com armas emprestadas não obtinha sucesso.

Esses são os fundamentos da tradição, obscura e teimosa no espírito popular.

Quem empresta,

Nem para si presta!