A primeira mulher que eu vi nua foi a primeira pessoa que eu vi morta, ele conta a Anna. Eu tinha doze anos.
Why? What happened?
Ela estava morta num matagal. O corpo cheio de perfurações. O sangue já tinha coagulado. Perto de onde eu e meu amigo fomos. Um lago. Na cidade onde eu vivia. Na cidade do interior do Brasil, onde eu nasci e vivi até os doze anos. Eu estava brincando com meu amigo. Tropecei. Caí. Tropecei no corpo dela. Da mulher. Assassinada.
Who was she?
Não sabíamos quem era. Não a conhecíamos. Nunca a tínhamos visto. Ela era linda. Loura, como você. Alta e grande, como você. Um dos seios dela estava…
Prefere omitir a mutilação.
Se eu fechar os olhos agora, ele tampouco lhe diz, eu ainda posso sentir o sangue dela grudado nos meus dedos.
Os seios eram grandes e pesados. Como os seus. Mas os mamilos eram escuros, não rosados como os seus, Anna.
Beija-os, com delicadeza. Acaricia os suaves pelos claros que cercam os lábios rosados de seu sexo. Puxa os quadris dela para junto dos seus. Estão nus sob os cobertores. Roçam, encantados, suas peles de tons e continentes diferentes.
Por semanas e meses não conseguira encontrá-la em nenhuma das vezes em que a procurara no escritório da Anistia Internacional. Deixara recado após recado. Sem resposta. Até se lembrar que estava assinando Paulo. Então pediu, sob o número de telefone do Hotel Grunert, em inglês truncado: Please call your Brazilian boy between ten of the night and six of the morning e assinou Nelson, the singer, not the admiral.
Anna era a mulher mais bonita de toda sua vida. E seria, até o fim.
Você é a mulher mais bonita de toda a minha vida, ele lhe diz, num ímpeto.
Ela ri.
De toda a minha vida.
Nelson, ela sussurra, roçando os lábios em seus ouvidos. Nelson, repete, my sweet Brazilian boy.
Não sou mais um boy, Anna. Deixei de ser garoto naquela manhã de abril. Minha infância acabou no momento em que encontrei o corpo ensanguentado de Anita.
Anita? Was that her name?
Anita. Aparecida.
You said neither of you knew who she was.
Anita e Aparecida. Usava um nome que não era dela. Mas nós não sabíamos, quando encontramos o corpo. Meu amigo viu primeiro. Mas quem tropeçou no corpo fui eu.
Who was that friend? Quem era ele?
Eduardo. O sobrenome era Massarani.
Massar?
Massarani. Os avós eram imigrantes italianos, eu acho. Eduardo Massarani. Era meu melhor amigo. Era meu único amigo.
Your only friend?
Ele me dava palavras.
Words?
É. Palavras. As palavras que eu não sabia o que significavam. Ele ia ao dicionário, anotava o significado em tiras de papel e me dava.
Palabras. Like in Spanish.
Não, Anna. Palavras com v, como em Viktor.
Pa-la-vrras.
Sim. Palavras. Quase todo dia ele me dava uma palavra. Ou mais. Várias, às vezes. “Embate.” “Metafórico.” “Resplandecer.” “Ventríloquo.” “Estupro.” “Incesto.” Tantas palavras. Que me ajudavam a definir, até hoje me ajudam a definir, definir não, a dar uma forma, consistência ao que há em volta de mim, o que entendo, o que não entendo, tudo. Palavras, Anna. Na minha língua.
Pa-la-vrrass.
Eduardo era a única pessoa da escola que tinha um dicionário em casa. Quando fomos expulsos da cidade, levei as tiras de papel. E um exemplar de David Copperfield que ele tinha me emprestado e não quis de volta. Ficaram comigo até a noite em que a polícia entrou no meu apartamento. Rasgaram tudo.
You lost it all? Perdeu tudo? Tudo? The book, the strips of paper, everything?
Nunca mais voltei ao apartamento. Me levaram para a prisão, mais tarde me largaram na fronteira. Fui para o Chile. Depois vim para cá. Nunca mais voltei ao Brasil.
Where is Eduardo?
Não sei onde Eduardo está. Perdi o contato. Perdemos o contato. Não sei por quê. Eu me mudei. Ele se mudou. Eu fui para o Rio, ele foi para São Paulo. Para uma cidade no interior de São Paulo. Não me lembro qual. O pai dele foi transferido. Era ferroviário. Foi forçado a se transferir. O meu ganhou um emprego no Rio, num ministério. Compraram o açougue dele e lhe deram um emprego de funcionário público. As pessoas que mataram Anita fizeram isso. Os assassinos de Aparecida. Um emprego para o meu pai, a transferência para o pai de Eduardo. Um aceitou, o outro não teve opção. Fomos forçados a ir embora de lá. Eduardo e eu. Sem saber o que tinha acontecido com Ubiratan. Um velho. Aliado nosso. Um velho e dois meninos. Investigando um crime. Como fomos ingênuos. Chamava-se Ubiratan. Tinha sido preso político na época de outra ditadura. Torturado. Na ditadura de Getulio Vargas. Nos anos 1940. Eu não poderia imaginar que um dia eu também…
Calou-se. Não queria lembrar-se das imagens que começavam a ressurgir. O capuz, a caminhada descalço sobre o mármore frio do local de tortura, a voz metódica do médico explicando o que lhe fariam, os fios enfiados em sua uretra, os…
O lago. Pensa no lago. O lago azul, brilhando ao sol daquela manhã morna de abril de 1961. Ele e Eduardo saindo da estrada asfaltada e deixando suas bicicletas deslizarem pela estrada forrada de cascalho. O ruído do cascalho sob os pneus. O grito das maritacas no bambuzal.
Sabe o que são maritacas, Anna? São como papagaios. Porém maiores. Mais coloridas. Não falam, como os papagaios. Dão uns gritos. Altos. E fazem ninhos no alto das árvores do meu país. Em bambuzais. Havia muitas perto do lago. Maritacas. E plantações de manga. Você gosta de manga? Como eram doces aquelas mangas. Como são doces as mangas do meu país. E as bananas. E as jabuticabas. Como eu posso te explicar o que são jabuticabas?
Ela ri, uma risada límpida e curta. Ele não tinha notado que lhe falava em português.
Você está rindo porque acha que eu falo muito? Ah, Anna, há quanto tempo não sou assim. Tão… falastrão. Eduardo deve ter me ensinado essa palavra também.
Se ele tentar me encontrar, hoje, não conseguirá. Não terá como. Ele vai procurar por Paulo Roberto Antunes e Paulo Roberto Antunes não existe mais. Eu não existo mais. Meus documentos foram destruídos. Minha certidão de nascimento, meus registros escolares, minhas fichas de emprego, tudo. Queimaram, rasgaram, picaram, sumiram com tudo o que havia em nome de Paulo Roberto Antunes. Eu fui extinto.
Don’t say that. Não fale assim. Você está aqui. Eu estou aqui. You are here. I am here. This is real.
Sim, Anna, ele diz com gratidão, sim, o que tenho com você aqui, neste momento, é real. Aqui, com você, eu volto a existir.
Desvia os olhos para a janela. Lá fora continua nevando, constata. É apenas novembro e o inverno sueco já se instalou.
Falastrão, exclama.
Falastrão, repete, alto.
Falastrão papagaio tagarela palrador sem papas na língua, diz, em português, buscando todos os sinônimos de que é capaz de se lembrar. Quer diverti-la. Consegue. Ela ri de novo. De novo acaricia seus cabelos. Ele se arrepia. Ela passa o dedo em suas sobrancelhas, ele fecha os olhos, ela corre a ponta dos dedos sobre seus cílios negros, depois sobre seu nariz, em torno de seus lábios. Ele abre os olhos. Percebe riscos escuros irradiando-se da íris sobre a placidez de seus olhos azuis.
Eu não conversava com os outros meninos. Eles me achavam esquisito. Talvez eu fosse, mesmo. Eu me sentia esquisito. Eu não podia contar o que acontecia na minha casa. A maneira como meu pai me tratava. A violência dele. Como me batia. Como me xingava. O que me dizia. Você não presta, ele me dizia. E eu achava, mesmo, que não prestava.
What did your mother do about it? Não te protegia dele?
Minha mãe não existia mais. Não conheci. Não sei o que aconteceu com ela. Eu achava que ela havia morrido. Hoje já não tenho certeza. Talvez ela tenha fugido. Sozinha ou com outro homem. Nunca soube. Nunca saberei.
Do you have brothers? Sisters?
Não, ele disse, após uma curta hesitação, escondendo a verdade que o envergonhava. Não tenho. Nem irmãs, nem irmãos. Éramos só meu pai e eu.
But you had Eduardo.
Tinha. Sim, eu tinha Eduardo. Eu confiava inteiramente nele. E ele em mim. Eu contava tudo para ele. Quase tudo. Teve uma coisa que eu nunca contei.
You hid something from him?
Não escondi. Não falei porque era algo que eu não gostava sequer de admitir para mim mesmo. Meu ódio, Anna. Um ódio imenso. Avassalador. Um ódio que me enchia de culpa e me mostrava que ele tinha razão. Que meu pai tinha razão, quando dizia que eu não prestava. Que eu tinha sangue ruim, como a família de minha mãe. Um ódio que, eu temia, um dia ainda me faria matá-lo. Matar meu pai cruelmente. Esfaqueá-lo, furar seus olhos, esmigalhar sua cabeça com uma pedra, queimar seu corpo. Um ódio que eu não entendia, não conseguia entender, Anna. Essa é a primeira vez que falo disso. Desse ódio. Talvez porque eu esteja longe de lá, talvez porque confie em você sem saber o que me leva a isso, talvez porque ache o inglês que falo tão precário que espero que você não entenda direito a confissão que estou lhe fazendo e, assim, não se horrorize, não me despreze, não se afaste de mim.
Enfia o rosto entre seus seios. Anna o abraça.
No silêncio que se segue, ouve claramente as batidas do coração dela.
Gostaria de prolongar aquele momento. Gostaria que aquele momento não acabasse. Mas dali a pouco, dali a alguns minutos, poucos ou muitos, não importava quantos fossem, daqui a meia hora, uma hora talvez, mesmo que fosse daqui a duas horas ou três, esse momento teria de acabar. Ele teria de levantar-se, vestir-se, deixar o apartamento dela, descer as escadas, tomar a rua, caminhar até a estação do metrô, de volta ao centro de refugiados, perto de outros brasileiros escorraçados do próprio país, como ele, todos à espera do dia, em um futuro imponderável, em que poderiam voltar às casas, aos bairros, às famílias deixadas para trás. Um dia. Se houvesse esse dia. Não para ele. Ele não tinha para onde voltar. Ele não tinha para quem voltar. Ele havia encontrado seu refúgio e era ali, nos braços dela, entre os seios dela. Hoje. Agora.