Percebe que ele fala cada vez mais devagar. Há longas pausas entre uma frase e a seguinte. Sua voz por vezes se perde entre os ruídos da rua 53 e os barulhos do trânsito e das sirenes da Décima Avenida (chegam pela janela aberta; o ar-condicionado está desligado, apesar do calor fora de época deste novembro; Indian Summer é como os americanos chamam aquelas temperaturas altas em pleno outono).
Ele tem pneumonia, mais uma vez. Está sentado no sofá. A próxima perna a ser amputada será a esquerda.
— Uuurrú, como eu dançava, e dançava, e dançava — ele conta à mulher magra, que entra trazendo o cesto de plástico com as roupas recém-lavadas e secas na lavanderia do subsolo do prédio. Fala como se a conversa com Barbara não tivesse sido interrompida quarenta minutos atrás. — Adorava dançar. Claro que não ia a esses lugares só para dançar. Of course not. Eu ia por causa dos clientes também, você entende, não é, queridona?
Ela já ouviu essas histórias outras vezes. Muitas outras vezes. Nos últimos dois anos, e especialmente nos últimos meses, Silvio se repete. Ela imagina que seja efeito dos remédios: são cada vez em maior número, e diferentes a cada internação.
— Eu não era um trick, um hustler, entende? Não transava com aqueles homens mais velhos por dinheiro. Eu já tinha minha pequena loja de flores na Charles Street, dava para viver e pagar as contas, para mim bastava. Mas à noite… a noite era minha. Só minha. Totalmente minha. Eu era lindo. Parecia aquele ator francês. Melhor. Com meus olhos verdes e minha pele morena… Uuurrú… Eu era alto, tinha coxas grossas, bem brasileiro, ah, eu era rei nas pistas, queridona. Como eu dançava. Eles ficavam loucos por mim, os americanos, especialmente os casados. Os enrustidos de Long Island, de Nova Jersey, de Hoboken, do Brooklyn, de White Plains, os out-of-towners, principalmente. Executivos, médicos, advogados, comerciantes, publicitários, todos eles. Não havia mal nenhum em aceitar os presentes que me davam. A ajuda financeira que me davam. Era um pagamento? Era, sim, de certa forma. But I was worth it. Eu valia. Cada centavo. Depois de uma noite comigo, eles podiam voltar para suas vidas respeitáveis de pais de família. Até me encontrarem novamente. Até me encontrarem de novo. Até reencontrarem Silvio Bergher, the beautiful, irresistible Brazilian fucking machine. Estou com frio. Põe um outro cobertor em cima de mim, please? Thank you, queridona.
Nos últimos tempos ele vem tendo febre constante. Baixa, mas constante. E tosse. Nem por isso deixa de fumar. Como está fumando agora.
— Eu era jovem. Eu era bonito. I was beautiful! Todos me achavam parecido com um ator francês, famoso no mundo gay na época. Por isso adotei o sobrenome Bergher. Silvio Bergher. Bem melhor do que Pereira. Que nenhum americano consegue pronunciar, anyway.
Ele a observa dobrando as roupas, formando pilhas e, em seguida, colocando-as nas gavetas e no armário de portas espelhadas, na tentativa inútil de dar ilusão de mais espaço ao apartamento mínimo que o hospital lhe destinou gratuitamente. A tevê está ligada (ela ligou ao chegar), com o som baixo. Nenhum dos dois presta atenção ao noticiário econômico da cnn. (A nenhum deles interessa o anúncio da fusão entre a alemã Daimler-Benz e a americana Chrysler.) Silvio pressiona alguns botões do controle remoto, passa por algumas soap operas, acaba por desligar o aparelho.
— Eu o vi, algumas vezes — retoma —, esse ator francês. Esse Bergher. Era como se estivesse me olhando no espelho. Assim como eu me vejo agora. Não assim, não como agora, claro. Éramos parecidos de verdade. A mesma altura, o mesmo cabelo alourado liso caído na testa… A diferença é que eu tinha pele morena e olhos verdes. Ele era branquelo, com olhos azuis desbotados. As pernas dele eram compridas, não finas, mas… Eu tinha coxas grossas. Grossas mesmo. Grossas de tanto futebol que jogava nas areias da praia de Copacabana. Enchia as calças. Enchia com o volume do que estava por trás da braguilha, também. Eu e esse ator francês uma noite nos encontramos no The Saint. Era um clube no East Village. Na Segunda Avenida. No mezanino, onde sempre era possível um quick blow job… Você compreende, não é mesmo? Tivemos uma… coisa. Sem limites. Uma loucura. A música tocando, as luzes piscando, as sombras, a penumbra e… ele e eu, frente a frente. Como num espelho. O outro e eu. Aliás, eu e eu.
Ele delira, ela pensa. Ele evitava falar palavrão na sua frente, agora nem percebe o que diz. Já não raciocina com clareza. Os remédios somem com as muitas dores, mas apagam suas vontades. Já não ouve os poucos CDs trazidos do apartamento antigo, não liga a televisão, nem mesmo abre as revistas de escândalos de celebridades que lhe compra no supermercado.
Silvio está sumindo, ele próprio dissera.
— Pedacinho por pedacinho, Barbara. Cada vez tiram uma parte podre de mim. Você acredita em Deus?
Sempre teve esse jeito inquieto de pular de um assunto a outro. Deus apareceu e tem sido tema recorrente desde a mais recente amputação. Ela não responde, não sabe o que responder, e ele geralmente passa a outro tópico. O mais recente rumor sobre estripulias sexuais de Bill Clinton em meio ao julgamento do impeachment, o fim de alguma boate do Meatpacking District que foi moda nos anos 1980, para dar lugar a um condomínio de novos-ricos da Bolsa de Valores, a fortuna deixada por Frank Sinatra, a cara de brasileira da jovem atriz de lábios carnudos filha de Jon Voight (“Sexy, sexy, still a veeeery sexy man”), a turistização da rua 42, alguma fofoca sobre Tom Cruise ou John Travolta.
Desta vez, insiste.
— Acredita, Barbara?
Ela se esquiva.
— Eu rezo.
— Não foi isso que eu perguntei.
— Eu rezo toda noite.
— Mas acredita?
— Minha mãe me levava a uma igreja. Aprendi o pai-nosso.
— Mas você acredita?
— Acredito? Como assim? Eu rezo.
— Stanley me dizia que tinha medo de não acreditar. Aí nada faria sentido.
— Sei também a ave-maria.
— Stanley me deu o apartamento que você conheceu quando começou a trabalhar para mim.
Tem dificuldade para acompanhar o fluxo de associações de Silvio. Tampouco quer saber o nome de mais um homem da vida dele. Não sabe como interrompê-lo. Tenta:
— Mas não rezo a ave-maria. Não sei por que não rezo a ave-maria. Também sei o credo. A ave-maria eu podia rezar, mas nem me lembro de rezar. Só rezo o pai-nosso. Sempre o pai-nosso.
— Também foi o Stanley que comprou o espaço na Charles Street e financiou tudo o que eu precisei para montar a loja de flores.
— Outra que sei: “Com Deus me deito, com Deus me levanto, com a graça de Deus e o divino Espírito Santo.” Sei muitas orações. Nem sei por que sei.
— Eu nunca paguei. Ele nunca cobrou. Ele tinha dois filhos. Um já era rapaz. Trabalhava com ele na confecção, na Sétima Avenida. Acho que a mulher sabia que o Stanley era entendido, mas preferia não falar nada. Moravam numa mansão em Long Island. Vi fotografias. Da casa, da mulher, dos dois filhos. Um rapaz e uma garota. Stanley me mostrava. Só o Stanley escapou do campo de concentração. Era criança. Uma mulher católica escondeu ele, quando os nazistas levaram os pais. Não sei se foi na Polônia ou na Checoslováquia. Deus se esqueceu de nós, o Stanley dizia. Ele preferia acreditar que Deus tinha abandonado os judeus a acreditar que Deus não existia. Você não disse se acredita ou não acredita.
— Em Deus?
— De quem mais estamos falando? Monica Lewinski? Nicole Kidman?
— Acredito. Se não, para que ia rezar?
— Você pede?
— Peço o quê?
— Eu que perguntei: você pede?
— A Deus?
— Não ia ser ao Stanley, não é mesmo? Ele sumiu. Puft! Vanished! Gone! Forever! Gone with the wind!
Ele se cala. Ela aguarda. Mas Silvio se mantém em silêncio. Fecha os olhos. Passam-se cinco, dez, quinze, vinte minutos sem que nenhum dos dois dirija a palavra ao outro. Ela se dedica a todas as pequenas atividades que compõem seu trabalho e a distraem do indesejado sentimento de piedade por saber que as duas únicas escolhas dele são as dores ou o embaralhamento provocado pelos medicamentos.
Observa-o, entre uma ação e outra. Seus olhos continuam cerrados. A respiração é quase imperceptível. Mergulhou, imagina, em novo round de imagens vagas e lembranças desfocadas. Dormita, talvez. Melhor assim.
— Stanley desapareceu porque morreu — ele lhe diz, como que acordando. — Só fui saber mais de um ano depois. Tomou vários comprimidos para dormir, enfiou um saco plástico na cabeça e se deixou sufocar. Puft!
Silvio acende um cigarro, o quinto ou sexto desde que ela chegara.
— Este fim de semana arrumou um namorado? Ou se trancou dentro de casa novamente?
Ela enrubesce.
— Ah, não me diga que passou o domingo fechada dentro de casa.
— Trabalhei sábado. Estava tão cansada no domingo que preferi…
— Queridona, assim não dá. Você não pode continuar vivendo em Nova York sem um marido, um namorado, um noivo, um companheiro. Será que não há homens no Queens?
— Eu não preciso de…
— Precisa — ele corta, subitamente alerta —, precisa, sim. Todo mundo precisa de alguém, queridona.
— Não sou assim. Eu não…
— Não estou falando de sexo. Aquele seu noivo, nunca mais deu notícia?
— Não era meu noivo.
— Aquele que te trouxe para cá. Aquele de Framingham, aquele de Massachusetts. Leonardo, não era? Aquele que mandou você para Nova York, com promessa de depois…
— Luís Claudio nunca me prometeu nada — agora é ela quem interrompe —, Leonardo é o irmão dele.
— Cadê esse tal de Luís Claudio?
— Se casou com uma americana. Eles têm um filho.
Silvio desvia os olhos, dá uma baforada, bate a cinza.
— Desculpe, Barbara — acaba por lhe dizer, apagando o cigarro. — Desculpe. É que eu estou muito cansado. Confuso e cansado. Não consigo mais raciocinar direito. Não sinto dores, mas uma fadiga. Permanente.
— Tudo bem. Não fiquei ofendida — ela responde, sinceramente.
— Eu fico preocupado com você.
Que absurdo, ela pensa. Silvio está cada vez mais debilitado e se preocupa comigo?
— Está tudo bem comigo.
— Está?
— Está. Claro. Por que não estaria?
— Quando eu… se eu, um dia, morrer… você vai ficar sem… se um dia…
Acende mais um cigarro.
— Você está fumando além da conta, Silvio.
— Não mude de assunto. Nós estávamos falando de você.
— Não estávamos, não.
— Você passa os fins de semana trancada dentro daquele maldito apartamento no Queens, não vê ninguém, não fala com ninguém, não sai, não se distrai, não namora, não se interessa por homem nenhum, nem mulher nenhuma, o tempo vai passando e você continua sozinha aqui em Nova York, não é possível, Barbara, não está certo, você é muito moça para… para… para se aposentar da vida.
— Que frase cafona, Silvio. Parece novela brasileira.
— Há quantos anos você está aqui?
— Em Nova York?
— Nos Estados Unidos.
— Sete anos e nove meses. Desde fevereiro de 1991.
— Quantos anos você tem?
— Você sabe.
— Esqueci.
— Vinte e quatro.
— Você tem 24 anos! — ele se espanta.
— Faço 25 daqui a dois meses.
— Vinte e quatro anos, Barbara! Vinte e quatro! Você está no auge da juventude! Vinte e quatro anos, Barbara! O que está esperando para sair por aí aproveitando esse… esse… — aponta o corpo sem relevos, coberto por uma blusa descolorida e calças jeans, em busca de palavras. — Essa juventude toda? Solte esses cabelos! Passe um batom! Onde está a sua bolsinha de maquiagem?
— Não trouxe. Não uso. Você sabe.
— Pegue a minha, então.
— Você jogou tudo fora.
— Barbara, 24 anos é…
— Vou fazer 25.
— Vinte e cinco, 24, não importa, você está no auge, Barbara. É o máximo da juventude. Você pode tudo. Tudo é possível para quem tem 24, 25, 26 anos. Quando eu tinha essa idade, ah, Barbara, eu aprontava todas. Transava com quem eu queria. Transei com todos os homens e todas as mulheres que quis. Homens, principalmente. Todos. Casados, solteiros, viúvos, todos. Tinha um lugar no East Village, uma boate, meio teatro, meio clube de dança chamado The Saint. Era uma loucura. Tinha uma parte de cima, um mezanino…
Ele conta a mesma história do ator francês, com o mesmo entusiasmo de meia hora atrás.
— Como se eu estivesse diante do espelho, entende? Mas eu tinha as coxas mais grossas, ele abriu minha braguilha e…
O futebol nas areias de Copacabana, a loja de flores na Charles Street, seu poder sobre homens casados, os presentes, o prazer, a dança, a troca do sobrenome brasileiro, repete e repete, sempre com pausas prolongadas entre as frases. Até que fecha os olhos.
Adormeceu, ela pensa.
Vê que se encolhe.
Ela pega a escada de quatro degraus, sobe, retira outro cobertor na parte superior do armário, desce, vai até ele e o cobre.
— Por que você não volta para o Brasil? — ele lhe pergunta, baixinho, ainda de olhos fechados.
Ela não ouve e volta para a roupa que estava guardando.
Um carro de bombeiros passa pela Décima Avenida. O som da sirene cresce, domina os outros barulhos, vai diminuindo até se misturar aos ruídos comuns do Centro da cidade.
— Hein, Barbara?
— Hum?
— Eu te fiz uma pergunta.
Ela está distraída. Acredita que ele ainda delira.
— Hein, Barbara?
— Hum?
— Por que você não volta para o Brasil?
Ela para, a pilha de camisetas nas mãos, surpresa. Silvio repete:
— Por que você não volta para o Brasil?
Ele está lúcido. Tem os olhos verdes bem abertos. A frase foi dita sem nenhuma hesitação.
— Por quê? — ela se ouve dizer, chocada, pega de surpresa pela questão que nunca lhe ocorrera.
— Onde está sua mãe? — ele pergunta, como um adulto se dirigindo a uma criança traquinas.
— Ela se mudou para Goiânia. Eu te disse.
— Eu esqueço tudo, você sabe. Os remédios. Você fala com ela?
— Às vezes.
— Vai morar com ela.
— Não posso.
— Não pode ou não quer?
— Não posso.
— Ela não quer?
— Que diferença faz?
— Volte para o Brasil, Barbara. Vá embora daqui. Não fique aqui. Não fique velha aqui, fazendo faxina. Volta para o Brasil. Vai, estuda, tira um diploma, se forma em alguma coisa, se casa, tem filhos, volte para lá. Volte para São Paulo, volte para Goiânia, volte para um lugar onde você tenha uma tia, um parente, qualquer lugar. Volte para o Brasil. Você não tem ninguém aqui, Barbara. Por que você não volta?
— Por que eu não volto? — ela tenta ganhar tempo, sem saber como dizer o que jamais terá coragem de confessar. — Por quê? Por que eu não volto para o Brasil? — ela mesma pergunta, quase indignada, elevando a voz, virando-se para ele. — Por que eu não volto para o Brasil, Silvio? Por que eu não…
Ela se cala. Abre os braços. Tenta, sem conseguir, trazer para ali, naquele momento, muito mais do que seria capaz. Vira-se, fica de novo de costas. Pega a pilha de roupas. Separa-as. Junta-as. Fecha a porta do armário. Abre-a. Fecha. Abre-a. Coloca parte da pilha lá dentro. Vira-se de novo para Silvio. Sacode a cabeça. Enrubesce.
Ele compreende.
— Você ama alguém aqui. Oh, my God, você está apaixonada. Por isso você fica.
Sim, ela pensa, você está certo, Silvio. A razão de minha permanência não é a indiferença da minha mãe ou seu novo marido. Nem a inexistência de um endereço aonde eu possa chegar, colocar minhas malas, tirar meus sapatos, deitar no sofá e adormecer, sem medo e sem aflição. A razão de eu ficar em Nova York está aqui mesmo, Silvio. Neste cômodo. Bem aqui à minha frente. Mas você nunca saberá.