Anna se levanta quando ele entra no apartamento. Espera que chegue perto, então o abraça. Paulo sente seus seios, começa a se excitar, enfia as pernas entre as dela.

— Não, Paulo, não, agora não — diz, sorrindo, afastando­-se. — My sweet Brazilian boy sempre me quer — fala, lisonjeada, misturando inglês e sueco, como sempre faz, desde que se mudou para o apartamento dele, nos arredores de Estocolmo.

Paulo puxa-a novamente para perto de si:

— Quero você muito. Agora — sussurra em seu ouvido, enquanto a empurra em direção à mesa, pensando em deitá-la e possuí-la ali.

— Daqui a pouco — ela se esquiva. Mostra uma garrafa de vinho e duas taças. — Antes temos de comemorar.

— Você comprou essas taças. Não tínhamos taças aqui em casa.

— Sim.

— Comemorar o que às sete da manhã?

— Que dia é hoje, Paulo?

— Domingo. O dia em que você vai à sua igreja luterana e reza pelos nossos pecados.

Ela ri e sua gargalhada cristalina termina por excitá-lo ainda mais. Paulo se esfrega nela, esquecido da fadiga da noite sem dormir, como porteiro no Hotel Grunert.

— Amor não é pecado. Mesmo o amor de uma mulher velha por um menino brasileiro.

— No meu país o que nós fazemos é pecado. Muito pecado. Você não é velha — agora é ele quem ri, enquanto apalpa seus seios. — Você é balzaquiana.

A palavra é incompreensível para ela.

— Bal-za-qui-a-na — Paulo repete. — Mulher bonita com mais de trinta, no meu país, é chamada assim — explica, e logo começa a cantarolar em português uma canção, surpreso por se lembrar:

Você mulher,
que já viveu,
que já sofreu…

— Por favor, traduza.

— É sobre mulheres que viveram e tiveram experiências que as mais jovens não conhecem.

Anna ri, desviando o corpo. Acaricia com a mão muito branca o rosto moreno de Paulo, sentindo a aspereza de sua barba por fazer. Pega garrafa e abridor, dá nas mãos dele. A rolha sai com facilidade. Paulo serve as duas taças com a experiência de quem, entre tantas outras atividades no Chile, trabalhou de garçom.

— O que estamos comemorando?

My sweet Brazilian boy, você não se lembra mesmo.

— De quê, Anna?

Nos olhos dela percebe lágrimas se formando.

— Magoei você? Estou esquecido de alguma coisa importante de que deveria me lembrar?

— Não — responde, uma primeira lágrima escorrendo pelo canto direito do olho, logo outra. Beija os lábios dele, com delicadeza. — Não me magoou. Nada. Nem um pouco. Estou comovida por você. Com você.

Bate, levemente, a taça de vinho na dele, toma um gole pequeno.

— Toda a felicidade do mundo para você, meu doce menino brasileiro — ela brinda —, neste domingo, 11 de janeiro de 1975, dia do seu vigésimo sexto aniversário.

Só então Paulo se dá conta da data. Continua com a taça na mão, mas não bebe. Não se move. Não sabe o que fazer.

— Não sei o que dizer.

Anna leva a mão à taça de Paulo. Delicadamente ela a conduz aos lábios dele, até que beba. Desabotoa seu casaco, desenrola o cachecol em seu pescoço. Para. Ele tenta sorrir. Ela sorri de volta, lembrando-se de uma manhã tão ou mais fria do que a deste domingo. A primeira vez que o despiu. Nevava, como hoje, como sempre neva nesta época do ano. Ele usava roupas doadas, largas demais para seu corpo. Podia perceber suas costelas, por baixo da pele escura. Menos de um ano atrás. Não sabia, nem jamais saberia, por que se aproximou dele na reunião da Anistia Internacional. Ao atravessar o salão, lotado de adultos e crianças do Brasil, da Argentina, do Chile e do Uruguai, foi ao canto para onde ele recuara desde a chegada. Estendeu-lhe a mão e se apresentou. Talvez uma hora depois, talvez mais, talvez menos, conduzia-o para fora dali, para a rua, para a estação de metrô, para seu apartamento. Em que momento decidiu fazer isso? Não imaginava que se apaixonaria por aquele rapaz sete anos mais moço, terno, assustado, magro, isolado dos outros exilados de seu país, falando mal inglês e nada de sueco, sem passado nem documentos, exceto uma declaração do próprio punho em que afirmava chamar-se Nelson. “Como o almirante britânico?”, ela lhe perguntou então. “Não”, ele respondeu, “como o cantor.”

— Não diga nada, Paulo. Não é necessário.

Abraçou sua cintura. Paulo, por sua vez, envolveu os ombros dela, com cuidado para que não respingasse vinho em seu vestido. O que sentia? Não atinava. A surpresa dera lugar ao embaraço, como alguém involuntariamente a apresentar um documento de identidade equivocado, logo ele, que utilizara tantos falsos. Um aniversário, por que lembrar um aniversário e ser cumprimentado por isso? O seu, sim, claro, o seu aniversário. Mas se em 26 anos a data fora tão insignificante quanto uma quarta-feira de agosto ou março, por que hoje seria diferente? Entretanto… Entretanto…

— Anna, eu nem sei… nem sei como… Gosto, aprecio você ter lembrado, mas… em nenhum momento da minha… em nenhum momento da minha vida eu…

Ela coloca o dedo sobre seus lábios, pede silêncio.

— Sei que jamais celebrou seu aniversário, my sweet Paulo. Eu sei. Não mais. De hoje em diante, não mais. De hoje em diante, nunca mais seu aniversário vai passar em branco, meu doce menino brasileiro. Deste 11 de janeiro em diante, todo 11 de janeiro nós vamos comemorar você estar vivo, você ter sobrevivido a tudo o que sobreviveu, você estar aqui, você estar construindo uma outra forma de vida… Vamos comemorar até você ter aprendido a falar sueco fluentemente.

Ele a abraça com mais intensidade.

— Vamos comemorar com um piquenique.

É sua vez de rir agora. Aponta para fora:

— Na neve?

— Não — Anna responde, saindo do abraço, pegando uma toalha xadrez vermelha e branca, abrindo-a e estendendo-a no chão. — Piquenique aqui dentro. Sente-se. Aí, mesmo.

Paulo obedece, divertido.

— Comprei algumas coisas que nós raramente comemos — acrescenta, pegando prato por prato e passando para ele, que os coloca sobre a toalha, enquanto enumera:

— Queijo brie, queijo camembert, queijo roquefort.

— Nunca comi nada disso — diz Paulo.

— Eu tampouco, até ir para a França.

Traz uma cesta com diversos tipos de pães, talheres, guardanapos. Em seguida, a garrafa de vinho e as taças.

— Hoje vou lhe ensinar o que aprendi com meu namorado francês em Paris.

— Tenho ciúmes.

— Não tenha. Ninguém nunca me deu prazer como você. Nunca amei tanto.

— E ele?

— Mathieu Molinari, arquiteto, dez anos mais velho, cínico, fascinante.

— Você?

— Moça sueca de 24 anos, noiva, vai pela primeira vez a Paris no inverno de 1967. Conhece Mathieu, se apaixona, termina noivado, fica em Paris toda a primavera, conhece refugiados de muitas ditaduras, continua em Paris no verão, vai com Mathieu à Grécia e Turquia, volta a Paris, conhece mais refugiados, trabalha em organizações que os apoiam, conhece estudantes, passa o outono, passa o inverno, chega maio de 1968. Moça sueca vai para as ruas, joga pedras, apanha de cassetete e tem as roupas rasgadas pelos flics, termina namoro com arquiteto, volta para a Suécia.

Senta-se de frente para Paulo. Corta um naco de queijo camembert, dá a ele, serve um pedaço a si mesma.

— Quer que eu conte a origem de cada queijo?

— Não precisa.

— Gostou?

— É… diferente.

— Também estranhei da primeira vez. É um gosto adquirido, vem com o tempo. Tome um gole de vinho.

Ele toma.

— Agora prove esse. Chama-se brie.

Paulo prova.

— Gostei mais desse do que do outro.

— Tome mais um gole de vinho e experimente mais este.

O sabor agrada a Paulo.

— É o queijo roquefort.

— Bom. E o pão parece com o pão francês do Brasil. Só que mais fino e mais comprido.

— Isto é uma baguete.

— Os franceses almoçam e jantam esses queijos?

— Queijos são como sobremesas para os franceses. Eles comem ao final da refeição. Depois da salada.

— Eu como tudo junto, salada, carne, arroz, massa…

Ela ri.

— Eu sei. Eu vejo. Seu prato é sempre uma mistura. É muito feio!

Riem os dois. Brindam. Ele se deita, fecha os olhos. Pensa: nada do que jamais imaginou, ou sequer imaginou, era tão bom quanto aquilo, quanto aquele momento pacífico e banal.

Anna se deita a seu lado. Ele a ouve cantarolar, num sussurro. Não entende as palavras. É uma canção que nunca ouviu, numa língua que não reconhece. Poderia ouvi-la para sempre.

— O que você está cantando? — finalmente pergunta.

— Uma canção sobre você.

— Você fez uma música para mim? — Paulo se surpreende.

Ela ri, novamente. Levanta-se, vai à estante que trouxe na mudança, onde estão discos compactos e um toca-discos portátil, semelhante a uma mala. Tira da prateleira um disco pequeno. Mostra a ele.

— Conhece?

A foto na capa mostra uma mulher pálida, de cabelos curtos, escuros como os olhos negros, quase oblíquos. Um rosto que Paulo nunca vira.

— É a autora da sua música.

— Francesa?

— Francesa, judia, cantora e compositora, amiga de Jacques Brel.

Percebe o vago olhar de Paulo.

— Você não conhece Jacques Brel?

Ele acena negativamente com a cabeça.

— Nunca ouviu “Ne me quitte pas”?

Novo aceno negativo.

— “Moi je t’offrirais des perles de pluie” — Anna cantarola. — “Venues de pays où il ne pleut pas…”. Nunca ouviu?

— Nunca.

— Você é da geração dos Beatles e dos Rolling Stones…

Paulo concorda.

— Não sabe quem é Jacques Brel, mas deve conhecer as músicas de Johnny Hallyday, Sylvie Vartan, Françoise Hardy, Adamo, Christophe…

A cada nome Paulo respondia com uma negativa.

— Nem Gilbert Bécaud?

— Não.

Mon dieu — ela reage, forçando um sotaque jocoso. — Não tocam música francesa no Brasil?

— Não sei. Talvez. Não me lembro.

— Que tipo de música você ouvia no Brasil?

— Todo tipo.

— De quais você gostava?

— Não me lembro.

— Você cantou uma para mim, quando nos conhecemos.

— Ah… Foi.

— Uma canção do almirante Nelson.

Riem, juntos.

— Nelson Gonçalves. Era uma música do Nelson Gonçalves.

— Seu cantor favorito?

— Não sei. Ouvia música sem pensar nisso.

— Quem você gostava de ouvir?

— Acho que ele: Nelson Gonçalves.

— Só ele?

— Vou tentar lembrar. Ele. Um outro Nelson, o Nelson Cavaquinho. Pixinguinha. Noel Rosa. Maria Bethânia cantando Noel Rosa. Altemar Dutra. Geraldo Vandré. Milton Nascimento…

— Bossa nova?

— Muito chata. Quem é essa mulher morena na capa do disco?

— Chama-se Barbara.

— Barbara, sem sobrenome?

Barbarrá — ela pronuncia, exagerando e arrastando o erre.

Barbarrá — ele repete.

Oui, mon doux Brazilian boy. Barbarrá. Ouça.

Anna coloca o compacto 45rpm no prato da vitrola, aciona o braço, leva a agulha até a faixa inicial.

A música abre com notas ao piano. Então, suavemente, surge a voz da mulher. Barbara. Barbarrá, como lhe ensinou Anna há pouco.

Il avait presque vingt ans
Fallait, fallait voir
Sa gueule, c’était bouleversant
Fallait voir pour croire

Sua voz não se parecia à de nenhuma cantora que ouvira antes. Era… rascante. Como seu nome.

A l’abri du grand soleil
Je ne l’avais pas vu venir
Ce gosse, c’était une merveille
De le voir sourire

— O que ela diz?

— Ela fala de você, ainda que não seja você. Mas, para mim, a canção descreve você, Paulo. A letra diz: “Ele tinha quase vinte anos/ era preciso ver/ como sua cara era desconcertante/ era preciso ver para crer;/ Ao abrigo do sol forte/ eu não o vi chegar/ esse garoto, que maravilha/ vê-lo sorrir.” É o que diz a canção. É como eu me sinto, com você.

Paulo quer acreditar no que Anna lhe diz. Sabe que ela é sincera e direta, agora que a conhece melhor. Mas as palavras que ela traduz para ele lhe parecem… demais para ele.

Il avait presque vingt ans
Et la peau si douce
J’ai cueilli du bout des dents
La fleur de sa bouche
Et j’ai feuilleté pour lui
Un livre d’images
Qu’était pas du tout écrit
Pour les enfants sages

— Você tem quase vinte anos — Anna prossegue — e a pele tão doce. Colhi com a ponta de meus dentes a flor de sua boca. E para você eu folheei um livro de imagens que não foi escrito para meninos bem-comportados.

Ele não sabe se agradece ou se se desculpa pelo engano.

— Essa canção já foi muito triste para mim — ela diz, voltando a sentar-se junto dele. — Parecia falar dos filhos que eu não tive.

Beija a testa dele.

My sweet, sweet

Paulo se acomoda junto aos seios dela.

— Eu estava grávida em maio de 1968.

— A violência da polícia fez você perder a criança?

— Não. Preferi o aborto. Não contei para Mathieu que esperava um filho dele. Voltei para a Suécia e tirei o bebê. Hoje eu penso que…

Não prossegue. Paulo aguarda. A voz da cantora francesa prossegue, sem que ele saiba o que confessa.

Tant de jours et tant de nuits
Donne, mais je te donne
Lui pour moi, et moi pour lui
Et nous pour personne
Mais il fallait bien qu’un jour
Je perd mes charmes
Devant son premier amour
J’ai posé les armes…

Anna desce e coloca a cabeça no colo de Paulo. Ele enfia as mãos em seus cabelos bastos, acaricia seu crânio, lembra-se de uma palavra há muito esquecida, diz em voz alta:

— Cafuné…

Ela parece não ter ouvido. Agora ele quer dizer um verbo que nunca usou. Quer lhe dizer algo que nem mesmo sabe direito o que é, mas que vem, e vem, e vem sem parar em sua mente. Reconhece com pudor e vergonha que é o verbo amar. Apenas repete:

— Cafuné.

Novamente Anna parece não ouvi-lo. Segura a mão dele, beija-a.

— Um dia você voltará para o Brasil.

— Isso é uma pergunta, Anna?

— Você voltará. Os exilados voltam às suas pátrias. Eu estarei muito velha para ir com você.

— Não.

— Não voltará?

— Não sei. Mas sei que não quero viver sem você a meu lado. Aqui, lá, em qualquer lugar.

Anna mete os dedos entre os botões da camisa dele. Sente a pele morna, os pelos duros de seu peito.

— Mesmo que você parta sem mim — murmura —, algo seu ficará.