As sacolas estão espalhadas pela sala. Uma bem junto de seus pés, logo à entrada do apartamento da rua 62, perto da Terceira Avenida; é preta, estampada com a marca em branco da loja de departamentos Barneys. Há um pé de sapato dentro, o outro está largado sobre o tapete de motivos persas que delimita a área de estar.
Ouve vozes femininas no quarto ao lado. Toca a campainha, ainda com as chaves na mão. Diz, alto:
— Alô, cheguei.
As vozes continuam a conversa, entremeada de risinhos. Ninguém vem checar quem entrou. Não a conhecem, mas sabem que a faxineira viria naquela tarde, incluída no preço semanal do apartamento mobiliado, de dois quartos, alugado a elas, turistas brasileiras, por Nadja Nardel. A ex-atriz carioca aproveitou a ebulição do mercado imobiliário, obteve novo financiamento para a hipoteca do apartamento onde morava, comprou dois menores, vendeu-os e acabou por financiar mais um para si mesma e aquele onde agencia as esposas de Newark, as suas (como ela chama) Brazilian girls. Fez novo empréstimo, a juros mais baixos, dando como garantia o apartamento das girls, adquiriu um no segundo andar desse prédio razoavelmente elegante, igualmente financiado em trinta anos. As diárias, pagas por turistas brasileiros em dinheiro vivo, sem recibo, são mais baratas do que as de hotéis três estrelas e cobrem, folgadamente, as prestações. O próximo passo será dar este e o das Brazilian girls como garantia para o financiamento de dois imóveis em Miami, outro destino cada vez mais procurado por brasileiros.
Fecha a porta. Vai colocar a bolsa na cadeira ao lado, estilo Luís XV, dourada, forrada de veludo carmim, mas ela já está ocupada por duas outras sacolas. Reconhece o nome do costureiro que, segundo Silvio, trocara o sobrenome judeu por um bem americano. Seu amplo estabelecimento, aberto há pouco no Upper East Side, fica, assim como a Barneys, próximo do apartamento e é dos primeiros endereços que as brasileiras visitam.
O outro é a Bloomingdale’s, a loja de departamentos mais perto ainda, de onde saem carregadas de cosméticos, perfumes, lingerie, roupa de cama, toalhas, meias, roupões, tailleurs, echarpes, óculos, cintos, bolsas, botas, luvas, casacos de couro, sobretudos e agasalhos pesados que nunca terão oportunidade de usar no Brasil (turistas do Sul garantem o contrário), mas que adquirem assim mesmo, porque têm os bolsos cheios dos dólares de seus maridos e amantes, eufóricos com a estabilidade do real e o alto valor da nova moeda brasileira, mais a veloz multiplicação de seus investimentos na Bolsa de Valores a cada nova privatização, nova entrada de moeda estrangeira, nova associação com espanhóis ou compra de empresas nacionais por eles e também por chineses, portugueses, suíços, alemães, coreanos, argentinos, mexicanos, angolanos, sauditas e quem estiver a navegar a maré alta da prosperidade deste fim de século.
Sobre o sofá de veludo cor de mostarda estão uma sacola pequena de uma joalheria francesa e outra, maior, da loja de cinco andares de um costureiro italiano assassinado em Miami, ambas localizadas na Quinta Avenida, a muitos quarteirões dali. Brasileiras não gostam de andar tanto, ela sabe. As hóspedes para quem Nadja alugou o apartamento devem ter contratado um motorista. Também brasileiro. Vão fazendo as compras, deixando no carro.
— Alô, cheguei! — repete.
A conversa para. Uma mulher loura (quase todas as brasileiras que chegam aqui são louras), de cabelos longos, lisos (todas as brasileiras que chegam têm cabelos muito lisos), e rosto inerte após muitas cirurgias plásticas, surge no umbral.
— Olá, vim para…
— Comece a faxina pelo banheiro — a mulher sem idade a interrompe. — Depois arrume o outro quarto. Não mexa em nada. Quando sairmos para jantar você arruma este.
— Quando a senhora sair para jantar — ela responde, no tom mais neutro que consegue, dando as costas e dirigindo-se à cozinha sem janelas —, eu já terei ido embora.
O som da conversa logo continua, abafado pelo ruído da água da torneira da pia. Prefere lavar à mão os copos, as xícaras, os talheres e os pratos sujos deixados pelas hóspedes de Nadja sobre a bancada de aço, em vez de usar a máquina. Está irritada, como sempre fica quando tem de lidar com esse tipo de brasileira, e quer mostrar que a ordem como exerce a faxina é dela. Limpará o quarto e o banheiro por último. E já estará no metrô, a caminho de casa, ou preparando o próprio jantar na acanhada cozinha do apartamento no Queens, quando elas saírem para algum restaurante considerado chique pelos brasileiros, onde eles gostam de se encontrar com outros brasileiros em visita a Manhattan, para, na volta ao Rio, São Paulo ou Brasília, comentar com amigos sobre os vinhos (escolhem os mais caros), as celebridades na mesa ao lado (geralmente inventadas, mas quem saberá?) e a comida (apenas beliscada pelas brasileiras de rosto paralisado, sempre em dieta).
Essas mulheres recentemente enriquecidas, de cabelos alisados e tingidos, idades apagadas por bisturis e injeções, faces e corpos alterados cirurgicamente, cobertas de penduricalhos, vestidas e calçadas de marcas famosas, carregando bolsas estampadas com nomes de costureiros, sapateiros e fabricantes de malas, formam um grupo com denominação própria, Nadja lhe dissera. São As Peruas. Ao contrário do que imaginou, não se ofendem de serem chamadas assim.
Já As Cachorras, Nadja também lhe informara, detestam o apelido. Também costumam se hospedar em apartamentos da ex-atriz, porém chegam em quartetos, quintetos, sextetos, para dividir o preço da diária. Não se incomodam de dormir na mesma cama ou sofá, desde que isso poupe dólares. Os corpos são mais arredondados, com grandes seios e nádegas volumosas, alterados com menos sutileza por cirurgiões plásticos menos hábeis e mais baratos do que os das Peruas.
Igualmente louras, igualmente de cabelos alisados, As Cachorras são mais jovens, porém menos bem-sucedidas do que As Peruas. Não conseguiram se casar com empresários endinheirados, no máximo se tornaram amantes eventuais. Umas têm casos com bicheiros, fisgados em ensaios de escolas de samba. Outras ainda acreditam na possibilidade de casamento com algum jogador de futebol ou da nova classe ascendente dos cantores sertanejos. Viajam de classe econômica, com passagens pagas a prestação. O primeiro endereço que pedem não é o de nenhuma das lojas preferidas das Peruas:
— Onde fica a Canal Street?
Na rua mais movimentada de Chinatown enchem sacolas com imitações de bolsas, relógios, roupas e calçados ostentados pelas Peruas, compradas por uma fração do valor dos produtos originais. De volta ao Brasil usarão algumas, venderão outras por até dez vezes o preço nas academias de ginástica e salões de beleza onde exibirão, orgulhosamente, as contrafações dos mesmos sapateiros, maleiros e costureiros de suas semelhantes mais abastadas.
As Peruas mal se dirigem a ela. É invisível, como são as empregadas delas no Brasil.
As Cachorras lhe fazem muitas perguntas. A maioria ela não sabe responder.
— Qual é a boate mais badalada de Nova York?
— Que restaurante está na moda em Nova York?
— É muito caro?
— Tem loja de produtos para musculação aqui perto?
— Quanto custa um Rolex de verdade?
— Quanto custa uma bolsa Chanel de verdade?
— Os executivos vão a que bares?
— Os gatos frequentam que bares?
— Já viu alguma celebridade aqui por perto?
— É verdade que o Harrison Ford mora neste bairro?
— E a Madonna?
— Em que hotel ficam os artistas brasileiros?
— Tem bar no hotel onde eles ficam?
— Essa academia de ginástica na outra quadra é bacana?
— Tem muitos gatos lá?
— Tem celebridades lá?
— Tem muitos executivos lá?
— É verdade que a Nadja já foi garota de programa?
Se foi, não é da sua conta. Nada é da sua conta. O que fazem As Cachorras e As Peruas com seu dinheiro, ou como o obtêm, não lhe diz respeito. Suas expedições compristas não lhe dizem respeito. A súbita prosperidade dos brasileiros não lhe diz respeito. O passado de Nadja não lhe diz respeito. Gostaria que seu próprio passado não lhe dissesse respeito.
Mas não consegue.
O passado volta de muitas formas. Todas perniciosas. Quando menos espera, quando está distraída no apartamento de mobília barata, ou a passar o aspirador debaixo de uma poltrona, ou na plataforma de uma estação do metrô, na fila do supermercado, na lavanderia, aguardando o sinal abrir ou atravessando a rua, ouve vozes que já não sabe de quem são (Leonardo mandando que ela fosse embora de Framingham? A empregada da mansão onde seu pai trabalhava dizendo: “Não chore, Deus não nos ouve”? Silvio a gemer de dor enquanto desfiava nomes de homens?). Elas se parecem, em seu tom vago e impalpável. Não duram muito. Mas são o bastante para tirá-la da neutralidade em que conseguiu se proteger. As vozes lembram que ela não é apenas mais uma mulher, agora já não tão jovem, a atravessar uma avenida de Nova York, quando a luz verde do sinal comanda: walk. Ou a faxineira invisível a aspirar o pó acumulado durante uma semana sob a poltrona da Ikea.
Você é a excluída do Brasil, é o que elas, sem o dizer, lhe dizem. Lá não há mais lugar para você, é o que elas realmente dizem. Ninguém te espera. Lá você não tem mais casa, você não tem mais família, você não conhece mais as esquinas. Não sabe mais que tipo de calor faz nas noites de janeiro e fevereiro. Onde se compra o melhor pão. Por quais times vibram os vizinhos. O picolé preferido pela garotada. O sabor da margarina, a marca de sabão em pó, o refrigerante e a cerveja mais procurados nas prateleiras dos supermercados e nos balcões dos bares. A nova sensação no mundo da música. O programa de auditório mais visto. A telenovela favorita da audiência. O novo galã. As canções que arrancam lágrimas, trazem lembranças amorosas, levam a sacudir os quadris. Quais gírias identificam e separam as gerações.
Você era a jovem que ia estudar medicina, ou biologia, ou inglês para se tornar secretária bilíngue, as vozes insistem em lembrar, e hoje limpa apartamentos, faz unhas e depilação em Nova York. Quando você decidiu ir embora de São Paulo, deixar a mãe, os parentes, ou poucos amigos, era esse o futuro almejado? A vida em um país cuja língua até hoje não consegue falar ou entender direito? Um apartamento de três cômodos (sala-quarto, cozinha, banheiro), mobiliado com móveis do Exército de Salvação?
As vozes ela afasta. Aprendeu como: cantarola, internamente, a única canção guardada da infância.
Pela estrada afora,
Eu vou bem sozinha
Levar esses doces
Para a vovozinha.
A estrada é longa,
O caminho é deserto,
E o lobo mau passeia aqui por perto.
Mas à tardinha,
Ao sol poente,
Junto à mamãezinha
Dormirei contente.
O medo maior são as imagens. Uma, mais que as outras. O corpo do pai, na gaveta refrigerada do Instituto Médico Legal.
A cabeça quase separada do corpo, pelos tiros que levou na nuca.