— Chegou cedo — Paulo diz a Ernesto e acrescenta, após olhar o relógio na parede atrás dele. — Quase meia hora antes do seu turno.
A rendição é às seis da manhã. Os dois, mais José Nelson, se alternam, além de um asilado curdo, como porteiros/vigias/faxineiros/caixas do hotel modesto no Centro de Estocolmo. A Anistia Internacional arruma trabalhos simples como aqueles para quem não fala a língua do país, ou não fala bem o suficiente para ocupar cargo semelhante ao que exercia no país de origem. No Hotel Grunert o pagamento é semanal, tal como a organização dos horários entre os três brasileiros, de acordo com o interesse de cada um.
Paulo prefere sempre as madrugadas. Sai direto para a universidade, onde toma o farto café da manhã que vai sustentá-lo para as aulas dos cursos de pedagogia e economia. Ali também almoça, antes do emprego da tarde, temporário e igualmente obtido por meio do organismo de ajuda aos refugiados. Entre os empregos mais recentes, auxiliou em reparos de linhas do metrô, abriu covas em cemitério, montou mesas e cadeiras em uma fábrica de móveis, empacotou roupas e alimentos enviados para vítimas do terremoto em Kinnaur, no norte da Índia. Já poderia se candidatar a empregos melhores. Fala sueco com razoável destreza, resultado das aulas que continua frequentando, ao contrário da maioria dos compatriotas asilados, e das longas conversas com Anna. Mas precisa das madrugadas no emprego sem muitas exigências, para pesquisar e estudar.
— Fui levar Regina à Centralstation — Ernesto justifica. — O trem para a França saiu às cinco horas.
A voz de Ernesto está arrastada. Ele se mantém de pé.
— Surgiu uma oportunidade lá. De trabalho.
Apoia-se no umbral. Os olhos vagam pela saleta forrada com papel de parede convencional e fora de moda.
— Vai dar aulas de química em uma escola secundária em Montpellier.
Um emprego regular para estrangeiro, aqui ou em qualquer país europeu, é raro, Paulo sabe.
— A escola é de padres dominicanos ligados ao movimento da Teologia da Libertação no Brasil — explica o ex-professor católico.
O casal voltará a se encontrar nas férias. Regina pode se movimentar sem problemas nas fronteiras. Não está fichada como terrorista, ao contrário de Ernesto, e o acompanha desde o Chile pelo mesmo afeto e admiração que lhe dedica desde os tempos em que eram estudantes na PUC de São Paulo.
— Faz calor o ano inteiro em Montpellier — Ernesto comenta, como se as altas temperaturas no sul da França fossem a razão principal para Regina aceitar o emprego. — Se quiser pode ir embora, Paulo.
— Não adianta, é muito cedo.
— Quer dormir um pouco? Sempre tem um quarto vago.
— Estou sem sono.
— Parece que Montpellier é muito bonita. Antiga. Mais de mil anos. Quem sabe um dia irei lá, visitar Regina?
Deixa-se cair na poltrona ao lado do balcão da recepção, puxa um maço azul de cigarros franceses do bolso, oferece a Paulo, que recusa, acende um.
— Tem a escola de medicina mais antiga da Europa. Montpellier. Do século XII. O que estariam fazendo nossos índios Tupinambás no ano 1181, enquanto os montpellerianos aprendiam a mexer nas tripas de seus concidadãos? Regina é descendente de índios. Tupinambás, Tupis, Tapuias, não sei. Ela me disse, mas não me lembro. E agora a descendente dos antropófagos que devem ter devorado muitos huguenotes aportados no Novo Mundo vai dar aulas de química para os meninos da elite de Montpellier. Talvez descendentes desses colonizadores franceses. Tem uma ironia nisso… Ou não tem? Fico me perguntando se… se…
Paulo aguarda. Ernesto termina o cigarro e o apaga. Logo acende outro.
— Tomei uns conhaques depois que o trem partiu. Vários. Estou meio… meio assim…
— Quer um café? Uma água? Um…
— Nada, Paulo. Obrigado, nada — repete, levantando-se, o cigarro no canto da boca. — Vou ali ao banheiro vomitar e lavar o rosto. Já volto.
Não demora muito. Retorna um pouco mais pálido, porém composto. A gola da camisa está levemente molhada.
— Aceito aquele café agora.
Paulo serve na tampa da garrafa térmica. Ernesto toma todo o café.
— Péssimo. Você que fez?
— É de ontem. Já estava aqui quando cheguei.
— Os suecos fazem o pior café do mundo.
— Acho que é de chicória.
— Café de chicória… Caramba, a que ponto chegamos — suspira, mudando de assunto. — Ontem recebi umas coisas do Brasil. Meu pai mandou por uns amigos que foram a Paris.
Mostra uma sacola do Magasin Printemps.
— Como bons brasileiros, foram às compras.
O nome da loja de departamentos parisiense nada significa para Paulo. Nunca esteve na capital francesa nem conhece a intensidade consumista da classe média com fundos suficientes para viajar ao exterior, pagando as caras passagens dos voos da Varig que partem de São Paulo e Rio e comprando moeda estrangeira, especialmente dólares, marcos alemães e francos franceses no câmbio negro. Com eles, adquirem o maior número possível de long-plays, cosméticos, perfumes, isqueiros, roupas, sapatos, canetas, talheres, patês, queijos e vinhos impossíveis de obter no fechado mercado brasileiro.
— Dessa vez minha mãe não mandou goiabada cascão. Não deve ter intimidade com esse casal — ri, enquanto puxa um envelope pardo quase tão grande quanto a sacola. Retira dele vários jornais, revistas, cartas.
Os envelopes das cartas estão fechados. Não os abriram nem nas agências dos Correios do Brasil, nem nas representações diplomáticas, o que teria sido inevitável se fossem enviados aos exilados por meio delas. Só na bagagem de viajantes insuspeitos, como o casal de dentistas amigo do pai dentista de Ernesto, é possível escapar da proibição de divulgar notícias indesejadas pela ditadura militar (informações sobre prisões e torturas, notas desfavoráveis à situação econômica), colocando a correspondência para os expatriados em fundos falsos de malas, entre capas duplas de cadernos, em forros de casacos, ou sob qualquer outro disfarce para driblar a Censura.
Após folhear os vários envelopes, Ernesto decide-se por um. Rasga a lateral, puxa várias folhas de papel dobradas em três. Desdobra-as. Estão datilografadas.
— A letra do meu pai é péssima. Se não escrever a máquina não entendo nada.
Cala-se. Mergulha na leitura. Alguns jornais escorregam de seu colo, caem. São exemplares de O Estado de S. Paulo de semanas e meses atrás. Na capa de vários deles as notícias estão misturadas a poemas. É o aviso aos leitores de que naquele espaço havia uma reportagem proibida pela Censura. A decisão do que pode ou não ser publicado cabe geralmente a militares e ex-militares aboletados nas redações. Sua ingerência não se limita à política e economia. Inclui também sugestões, imposições e edição de entrevistas ou reportagens sobre cultura e esporte, crônicas e até mesmo notas de colunas sociais.
Entre os exilados, de Argel a Praga, de Havana a Berlim, de Lisboa a Cidade do México, de Buenos Aires a Roma, Moscou, Paris, Haia, Estocolmo, onde quer que houvesse brasileiros, formara-se uma rede nem sempre atualizada, por vezes alimentada por medo e paranoia, mas sempre levando aos que viviam longe, transportadas por amigos, parentes, conhecidos ou estranhos da maioria, as informações que cada um fosse capaz de amealhar por carta, bilhete, cassete, microfilme ou o que quer que conseguisse escapar das vigiadas fronteiras do Brasil.
Ernesto termina a leitura da carta do pai, dobra-a, coloca-a de volta no envelope.
— Os boatos sobre uma abertura política com o general Ernesto Geisel ficaram mais fortes — cita, monocórdio, o que o pai escrevera. — Voltaram a falar em anistia. Os militares da linha dura não estão gostando. O acordo nuclear com a Alemanha pode dar a bomba atômica ao Brasil. Gabriela cravo e canela virou novela, a nova estrela é uma morena chamada Sônia Braga. Santos, São Paulo e Portuguesa vão decidir o campeonato paulista e meu pai, que é corintiano, está decepcionado. Minha tia Marina ficou viúva e como não tem filhos foi morar com minha mãe. Minha irmã caçula ficou noiva. Beth ficou noiva de um cara que também é dentista. A comemoração foi num lugar chamado O Beco, em São Paulo. Viram show de Wilson Simonal. Minha irmã mais velha está grávida pela terceira vez. Meu cunhado torce para que finalmente venha um menino para herdar o sobrenome Abifadel. Ele trocou o Chevette por uma caminhonete Chevrolet Caravan zero-quilômetro.
Guarda a carta e todo o restante da correspondência e publicações na sacola. Lerá depois, ao longo de suas seis tediosas horas por trás do balcão, de onde Paulo o observa neste momento.
— A vida no Brasil continua, Paulo.
Acende outro cigarro, recosta a cabeça na poltrona.
— Sem nós.
Fuma, em silêncio. Paulo tampouco fala. Cada um reflete sobre o país que não veem e de que apenas sabem à distância. Só quando esmaga o cigarro no cinzeiro é que Ernesto pergunta:
— Seu pai lhe escreve?
— Não.
— Nunca?
— Nunca.
— Ele sabe o nome que você usa? Sabe onde você está?
— Deve saber.
— Antonio teria contado?
Desde os tempos no Chile, Ernesto e José Nelson sabem da existência de Antonio e das ligações do irmão de Paulo com a repressão política. Ele mesmo contou. São os únicos em quem Paulo confiou.
— Talvez.
— Você gostaria que seu pai lhe escrevesse?
— Não — responde, após breve hesitação.
— Tem certeza?
— Não.
— Então gostaria.
— Não sei.
— Gostaria.
— Não sei.
— É seu pai. É sua família, afinal.
— É?
— É, claro que é.
— Não sinto.
— Que seu pai é sua família?
— Nada.
— Nada, como?
— Não sinto que eu tenha um pai. Uma família.
— Uma família é como um país: é para sempre. Está dentro da gente. Mesmo quando não é bom. Mesmo quando nos traz sofrimento.
— Não sinto que tenho.
— Família?
— Família no Brasil, pai, nada.
— Nada?
— Nada… Quer dizer… Não do jeito que você sente.
— E como você sente?
— Fragmentos.
— Como assim, fragmentos?
— Pedaços que não se encaixam.
— O que não se encaixa?
— O Brasil para mim é você. É o José Nelson. É o que vocês me dizem do que querem para o Brasil.
— E então?
— Mas é também o Antonio. É também a dor da tortura. Eu não esqueço a dor da tortura.
— Nunca?
— O Brasil de que você e o José Nelson falam e o Brasil do Antonio e daquelas dores não se encaixam.
— Nunca, Paulo?
— Nunca.