(Até que enfim, queridona, Silvio talvez dissesse.)

Talvez.

Porém Silvio não existe mais.

Não existe ninguém com quem possa partilhar essa luminosa manhã e essas descobertas da cidade onde mora há dez anos e dois meses.

Deixou o píer de cabeça baixa, andando pela margem do rio Hudson, as lágrimas escorrendo pelos cantos dos olhos. Quando os ergueu, finalmente — nem se deu conta quantos minutos depois, cinco, dez —, engoliu em seco, pasma.

Ziguezagueando sem perceber por avenidas, ruas e vielas do sul de Manhattan, chegara aos pés dos 110 andares dos dois prédios do World Trade Center.

Sentiu-se pequena.

Sentiu-se zonza.

Parou.

Baixou os olhos.

Viu bancos de granito branco, compridos e sem encosto, à volta de uma escultura esférica de metal dourado, pousada sobre um espelho d’água. Foi até eles.

Sentou-se.

Era a única pessoa na praça. Alguns turistas fotografavam, de longe.

Retomou lentamente o fôlego.

Uma sensação de prazer, semelhante à que a tomara no domingo da descoberta da catedral da Grand Central Station, invadiu-a.

Respirou fundo.

Foi subindo o olhar, andar por andar das Torres Gêmeas, contando cada um deles, mas perdeu-se após o quadragésimo sétimo.

Deitou-se no banco.

Uma nuvem passou devagar, no espaço azul entre as duas torres.

Fechou os olhos.

Imaginou-se, logo ela, tão pouco dada a devaneios, no topo do World Trade Center, girando e vendo a cidade como do deque de um navio, da ponta da frente (popa? proa?) até a ponta de trás (proa? popa? estibordo? bombordo?).

Farei isso um dia, pensou. Vou vir aqui uma outra vez e dessa vez eu vou tomar coragem e vou subir até a parte mais alta e Nova York vai aparecer inteira, pequenininha lá embaixo, e quando eu estiver lá eu vou fazer uma fotografia, e quando eu fizer, eu vou mandar essa fotografia para… vou mandar para… para…

Não é que eu não tenha para quem mandar.

Até tenho.

Podia mandar para a minha mãe, podia mandar para a minha avó, podia mandar para alguma colega de quem eu ainda tenha o endereço, se eu quisesse até para o Luís Claudio eu podia mandar, para mostrar a ele que eu estou bem e que ele não precisa se preocupar comigo, se é que ele se preocupa, deve se preocupar, se estou bem, se estou mal, se voltei para São Paulo, se fiz como ele e casei e tive filho.

Até podia.

Mandar.

Mas não preciso.

Nem quero mandar.

Quando eu tirar. A fotografia. Peço para ampliar e ponho num porta-retrato no meu apartamento e pronto.

Basta.

Não preciso mandar essa fotografia para ninguém.

Aqui é bonito e eu estou aqui. Basta.

Basta hoje.

Quero ir lá em cima, no alto do andar número cem. Não agora.

Não hoje.

Num outro dia.

Quero vir aqui um outro dia, decidiu, levantando-se e saindo à procura da estação de metrô mais próxima.

Voltou para o Queens em meio a devaneios, ainda esquecida de si mesma.

Mas então viu-se em casa.

De volta ao conjugado da calle 43.

De volta ao silêncio dos domingos.

De novo quieta e calada, a se perguntar: há quanto tempo estou quieta e calada? Desde que horas? Desde que acordei? Desde que comprei a passagem de volta para cá? Quando pedi um token ao vendedor por trás do balcão na estação do City Hall?

Não pedi.

Não lhe disse nada, nem ele a mim.

Estendi uma nota de um dólar, duas moedas de dez cents, uma de cinco cents, e ele, ou era uma mulher, ela, me deu o token.

Sentou-se, levantou-se, foi à janela, voltou a deitar-se e a sentar-se e a levantar­-se e a chegar à janela, e outra vez fazer tudo de novo, com uma ida à geladeira para pegar água, ou ao armário, de onde tirou uma caixa de biscoitos ricos em fibra, que passou a carregar, sem comer, mais uma vez daqui para ali, e outra vez de novo, de novo à janela, à cadeira, ao sofá-cama, os pés nos chinelos de feltro verde-escuro sobre o carpete em tons de grafite, sem fazer barulho, sem incomodar os vizinhos enquanto perambulava daqui para lá e de volta, em passos leves, calada, calada e calada, tem quanto tempo? Quanto tempo?

As tardes intermináveis dos domingos.

Os domingos são longos demais.

As tardes intermináveis dos domingos.

Os domingos são dias sem utilidade.

As tardes intermináveis dos domingos.

Os domingos são insuportáveis.

As tardes dos domingos são longas demais, sem utilidade para nada, as tardes dos domingos são… são…

Parece. Às vezes. Que. Não. Consigo. Respirar.

Não consigo aguentar.

Não consigo.

Não consigo.

Recorreu, então, à mesma boia de tantos outros nova-iorquinos sufocados pelo isolamento do dia mais longo da semana: trabalho.

Pediu a Nadja para trocar para domingo a faxina habitual dos sábados, de limpeza minuciosa e mais demorada, capaz de resistir até metade da semana.

A ex-atriz não estranhou, nem se importou. No domingo o apartamento ficava vazio mesmo. Era o dia off de suas Brazilian girls. Dedicado aos maridos e filhos, ao churrasco no backyard com amigos e vizinhos, a passeios pelos malls e compras nos outlets de Nova Jersey e Long Island.

Barbara passou a finalizar as caminhadas dominicais rumando para o apartamento de East 62nd Street.

O silêncio, ali, não a incomodava.

Não era seu.

E podia aplacá-lo com os ruídos inevitáveis da lavadora de louças, do aspirador de pó, da máquina de lavar roupas e da secadora instaladas há poucos meses — no espaço antes ocupado pelo armário de casacos —, forma encontrada por Nadja para evitar descidas com os lençóis e toalhas usados pelas meninas e clientes à lavanderia do subsolo, comum aos moradores do prédio.

Em sua nova rotina, Barbara cruza o lobby do Greenwich Building vazio, exceto pelo sonolento porteiro dos fins de semana, no início da tarde fria do segundo domingo de setembro, toma o espelhado elevador vazio até o quarto andar sem se olhar, atravessa o corredor vazio tirando a touca (não precisava, nem está tão frio assim, mas teme a volta da sinusite), o cachecol (ventava um pouco no Queens), as luvas de lã (saíra com elas, igualmente desnecessárias naquela temperatura) e o casaco (é leve), chega ao apartamento 412, enfia a chave, abre a porta, encontra o vazio silente que não lhe pertence e, portanto, não a assusta.

Está muito quente.

Sempre está muito quente lá dentro. Descontrai os clientes; as meninas vieram de cidades de temperaturas altas e lhes agrada assim.

Vai ao termostato, diminui a temperatura do aquecedor, dirige-se à cozinha.

Está colocando copos e pratos na lavadora quando ouve um som. Um gemido. Mas hoje não é dia de trabalho. Nadja não gosta nem permite.

Um novo gemido. De uma única voz. (Alguém desobedecendo à ordem de Nadja? Deve parar a faxina? Interromper o trabalho? Voltar para a rua? Até que horas? Continuar? Ignorar o que estão fazendo no quarto?)

Põe os talheres na máquina, fecha a porta, vai ligar a lavadora de pratos quando um novo gemido, mais forte, chega até ela.

Não é de prazer, lhe parece.

Para o que está fazendo.

A mulher (a voz é de uma mulher) geme, longa e continuamente.

Deixa a cozinha.

A porta do quarto mais próximo da sala está aberta.

Os gemidos parecem vir dali.

Caminha, sem certeza de estar fazendo a coisa certa, até o quarto.

Vê.

Susana está sobre a cama, nua. Tem os olhos, a boca, o rosto inchados.

Vê.

Há sangue escorrendo de suas pernas abertas.

Parece inconsciente.

Barbara corre à mesa de cabeceira, pega o telefone, começa a discar o número de emergência. Antes que o complete, Susana segura sua mão.

— Não, Barbara — murmura, com dificuldade.

— Vou chamar o nine-one-one. Vou pedir uma ambulância.

— Não…

— Você precisa de ajuda.

— Por favor, não.

— Você está machucada, está ensanguentada, está…

— Não, Barbara.

— Um médico, um paramédico, enfermeiro, você precisa de…

— Não, Barbara. Nem o nine-one-one, nem a Nadja, ninguém. — Susana pega o fone, coloca-o no gancho. — Me leva daqui, Barbara. Me leva para sua casa.