Acordou como passaria a acordar sempre, não importava onde tivesse adormecido — leito de hotel, a própria cama, a poltrona de sua futura biblioteca, cabines de trem, assentos de avião —, daquela manhã em diante: com dor no peito, buscando ar, os pulmões, o fígado, os intestinos pressionados contra as paredes do corpo que os continha. Não conseguia abrir os olhos. Tentou erguer-se, mas o tronco pesava demais sobre as pernas, como se ele estivesse dobrado. Fez novo esforço, ainda uma vez forçando as pálpebras, que resistiam a abrir-se. Percebeu que seus braços doíam. Suas pernas doíam. Seu peito doía. Seus lábios doíam. As orelhas doíam, e as mãos, as palmas das mãos, os pés, as solas dos pés, o pescoço, em volta do cu, o saco, o pau, os mamilos, os dedos, as pontas dos dedos, as unhas. Cada parte do seu corpo doía, cada uma de forma diferente. Nunca imaginou que fosse possível sentir tanta dor. Uma mais aguda, outra mais penetrante, outra ardente, outra mais ardente ainda, junto a muitas, a todas as pequenas dores que se reuniam para fazer de seu corpo uma dor única.
Precisava se levantar.
Parecia que estava amarrado, os braços às pernas, a cabeça para baixo.
Precisava se erguer.
O corpo não obedecia.
Esforçou-se para levar as mãos aos olhos e abri-los.
Elas, tampouco, se mexiam.
Os dedos, então. Abri-los. Fechá-los. Qualquer coisa. Alguma coisa.
Tossiu. A dor surgida nos pulmões percorreu imediatamente o corpo inteiro. Um gosto azedo subiu até a garganta e invadiu as narinas. Sentiu ainda mais dificuldade para respirar. Se ao menos conseguisse erguer o tronco. Se ao menos conseguisse. O tronco. O peso. Sobre as pernas. Se soltasse as mãos. As mãos. Os pés descalços. Sujos. Inchados. Era sangue, aquilo? No peito do pé e nos dedos?
Abrira os olhos, então.
Via os pés descalços, sujos, inchados, manchados de sangue.
Via os pés porque estava de cabeça para baixo.
Via os pés e o piso de cimento porque estava de cabeça para baixo.
Via os pés e o piso de cimento e os coturnos engraxados e brilhantes.
Dois pares de coturnos.
As pernas das calças de uniformes de duas pessoas usando coturnos.
De cabeça para baixo.
Ele estava de cabeça para baixo.
Ele estava com as mãos amarradas nas pernas.
Ele estava pendurado em um… um…
As dores que sentia, as fisgadas que sentia, as cólicas que sentia, as ardências na pele que sentia: aquelas pessoas usando coturnos e uniformes as tinham causado.
Esta madrugada.
Ontem.
E anteontem.
E na noite anterior.
E na tarde anterior.
E na manhã anterior.
E na madrugada antes dela, logo depois de invadirem o pequeno apartamento conjugado em Copacabana, mobiliado com apenas uma cama de solteiro e uma estante feita de tábuas de pinho apoiadas em tijolos vazados, derrubada antes de rasgarem e pisarem seus livros de história e ciências sociais e o exemplar de David Copperfield que o acompanhava desde a expulsão da cidade em que Anita fora assassinada.
Estava debaixo do chuveiro quando ouviu a campainha. Continuou soando, insistentemente. Saiu, pegou a calça sobre a cama, vestiu-a sobre o corpo mal enxugado, correu e abriu a porta, esperando receber os três colegas da faculdade que vinha treinando a utilizar o Método Paulo Freire de alfabetização de adultos.
Um homem colocou o cano da pistola em sua testa e o empurrou para o lado, escancarando a porta pela qual entraram outros quatro.
Pouco depois o algemaram, encapuzaram, ignoraram seus pedidos para vestir-se e se calçar, empurraram-no para dentro do elevador, para fora do prédio da rua Bolívar, jogaram-no dentro de algum veículo, onde ficou encolhido no que deduziu ser o piso junto ao banco traseiro de uma caminhonete como as utilizadas pela polícia e pelas Forças Armadas. Possivelmente sem identificação. Um dos homens manteve os coturnos sobre seu peito nu.
Levaram trinta, quarenta minutos para chegar ao local onde pararam. Gritaram que saísse do veículo.
Arrastou-se para fora, até sentir o chão áspero sob os pés descalços. Um pátio? De cimento?
Mandaram virar à direita e caminhar em frente. Assim fez, em incertos passos curtos, até tropeçar em um degrau baixo. Alguém o pegou pelo braço, antes que caísse. Anda, disseram. Em frente, falou outra voz.
Seguiu, com mais cautela. Pouco mais adiante a ponta do pé esbarrou em outro degrau. Subiu-o. A textura era outra, outra a temperatura. Agora fria, lisa, plana. Mármore, pensou.
Ao redor, silêncio. A alguma distância — quanta? —, além das paredes — grossas? construção antiga? janelas fechadas? —, ruído de trânsito. Pouco. Seriam umas nove e meia da noite, dez horas. Ônibus? Estariam na Vila Militar? Em um prédio da Aeronáutica, no Galeão? No Centro da cidade do Rio de Janeiro, onde o Dops funcionava em um prédio antigo desde o Estado Novo?
Um gemido. Um gemido? O eco de um gemido? Um grito. E o eco do gemido.
Contou um, dois, seis passos até ouvir: escada.
Subiu.
Contou 29 degraus. Cada um lhe pareceu mais frio que o anterior.
Chegou a outra superfície plana. Ouviu vozes, conversas indistintas, passos a seu lado. E novamente algo como ecos de gemidos. Se cada degrau tem cerca de vinte centímetros em prédios antigos, raciocinou, lembrando-se de alguma informação sobre a Biblioteca Nacional — onde costumava pesquisar, reunir-se com outros estudantes e passar boa parte da tarde —, estamos no primeiro andar de um local em que o pé-direito tem uns seis metros de altura.
Para a direita — alguém comandou.
Andou, em linha reta, treze passos.
Direita — foi a nova ordem.
Novamente contando, pisou dezessete degraus.
Chegou a outra superfície plana.
Uma textura diferente. Morna. Macia. Tapete?
Esquerda — lhe disseram.
Caminhou quinze passos.
Pare — comandaram.
Seus braços foram segurados, de cada lado: mãos diferentes os apertavam. Ruído de trinco. Uma das mãos o puxou para a frente, a outra o empurrou. O chão sob seus pés era duro, novamente, mas não frio. Taco? Tábua corrida?
A porta foi batida atrás de si.
— Caminhe à sua frente — disse-lhe uma voz grave, em tom neutro.
Assim Paulo fez, até esbarrar em um móvel.
— Abram as algemas dele.
Abriram.
Imediatamente, instintivamente, levou as mãos ao capuz para retirá-lo. Uma dor aguda entrou por seu flanco e percorreu seu corpo como se o rasgasse. Caiu. Começou a se levantar, apoiado em uma das mãos, enquanto com a outra puxou sem sucesso o saco que envolvia seu rosto, quando sentiu uma pancada entre o pescoço e o ombro, seguida de um chute na cabeça. E logo, pelo outro lado, o toque frio de metal nas costas, seguido de uma descarga elétrica que repetiu a sensação de esgarçamento de cada músculo de seu corpo. Que dor era aquela? O que a causava? Por que faziam aquilo com ele?
— Levante-se. Com calma. Isso. Ainda está tremendo porque esse é o efeito do bastão de choques que você nos obrigou a usar. Demora a passar.
Paulo agora estava de pé.
— Tire suas calças.
Paulo não se mexeu. Não usava nada por baixo delas, não se despiria.
— Tire.
Ele ficou imóvel, ainda tremendo. Houve um silêncio curto, na sala. E logo uma nova pancada, mais forte que a primeira, no mesmo local entre o ombro e o pescoço.
Paulo gemeu. Levou a mão ao pescoço. Sentiu um líquido grosso e pegajoso brotando da pele esgarçada. Doía.
— Dispa-se.
Levou as mãos até o cós. Parou ali.
— Tire a roupa — repetiu a voz, sempre no mesmo tom indiferente.
Paulo abriu o botão do cós e os outros. Deixou as calças escorrerem, pisou nelas.
— Vá até o móvel em que esbarrou ao entrar aqui. À sua esquerda. Isso. Toque nele. Sabe o que é?
Pareceu a Paulo que tocava o espaldar de uma cadeira.
— Sente-se.
Paulo sentou-se. A superfície era de metal.
Seus pulsos foram pegos e presos com algum tipo de correia aos braços do móvel.
— Você está aqui por recomendação do Capitão Molina.
Ataram os tornozelos de Paulo às pernas da cadeira.
— Mas por que estou aqui? Por que entraram no meu apartamento? Por que…
— Você sabe quem é o Capitão Molina?
— Não, não sei. Nem por que me trouxeram para cá, nem por que…
— Você não conhece o Capitão Molina, mas ele conhece você. Sabe que você pode nos passar as informações que impedirão novos sequestros e novos derramamentos de sangue de agentes da lei como Irlando de Souza Regis.
— Não sei quem é Irlando. Não conheço nenhum Capitão Molina.
— Claro que sabe. Irlando era o agente da Polícia Federal assassinado dois dias atrás, em 11 de junho, pelos sequestradores do embaixador Ehrenfried Ludwig von Holleben. Um pai de família. Um bom brasileiro. Ah, esqueci de me apresentar. Sou o doutor Sérgio. Sou médico e psiquiatra. Vou supervisionar o seu interrogatório.
— Mas por que me interrogam? Sou estudante, não tenho nada a ver com…
— Estou aqui para impedir que seus interrogadores passem do ponto. Não queremos que você morra. Não se não for necessário. Assim foram as ordens do Capitão Molina. Queremos apenas informações. Não tente fingir que está morrendo, ou que não está aguentando, porque eu examinarei você a cada momento. Sabe onde está sentado, não sabe? Você está sentado naquilo que se convencionou chamar de cadeira do dragão. Percebe que há metal embaixo da sua bunda? É zinco. Os braços dela também são revestidos de zinco, não sei se chegou a notar. Zinco é um bom condutor de eletricidade.
— O senhor é médico e vai permitir essa… — Paulo não conseguia dizer a palavra tortura. Reconhecer aquela situação tornava-a ainda mais assustadora.
— Vou detalhar como será o interrogatório, para que o senhor tome uma decisão, antes mesmo que ele se inicie, se vai nos revelar o que precisamos saber.
Percebeu que o médico se aproximara dele. Falava ao seu ouvido.
— A cadeira onde o senhor está sentado está conectada a um dínamo capaz de gerar uma corrente elétrica de dez amperes. O que o senhor está sentindo ser colocado pelos interrogadores em sua língua e amarrado em torno de suas orelhas, os dedos de seus pés e de suas mãos, são fios. Este próximo vai doer um pouco.
Mãos enluvadas seguraram o pênis de Paulo. Ele recuou na cadeira.
— Não resista. Será pior. É necessário colocar o fio dentro da uretra do senhor.
Paulo gemeu e se mexeu, sentindo o metal fino a penetrar e rasgar sua carne.
— Esses fios, conectados ao dínamo de que lhe falei, quando ligados, vão lhe causar choques e dores como o senhor nunca imaginou que fossem possíveis. Semelhantes ao que sentiu há pouco, quando tentou retirar o capuz. Só que mais agudos. Muito mais agudos. Percebeu que as correias que o atam à cadeira são forradas de espuma de borracha? A espuma absorve e retém a água. Para melhor conduzir a eletricidade, os interrogadores vão jogar água no senhor. O mesmo bastão que o conteve, minutos atrás, será utilizado para dar choques em seus mamilos e seu saco escrotal. O senhor vai se mijar até mijar sangue, vai se cagar até cagar sangue, vai vomitar até vomitar sangue.
Calou-se. Paulo tentava não gemer. Nada se mexia na sala.
— Ou não — ofereceu doutor Sérgio. — A escolha é sua. Basta nos dar os nomes dos elementos de sua célula subversiva. E o local onde estão escondendo o embaixador alemão.
— Mas eu não sei de nada! Não sou da luta armada! Não tenho nada a ver com esse sequestro! Não conheço, não sei, não tenho como saber!
Houve um novo silêncio. Ouviu que o médico se afastava.
— Joguem água nele.