Ela abre a fechadura com cuidado para não fazer barulho. Silvio ainda deve estar dormindo. É cedo, ele voltou do hospital ontem, depois de outra internação. Tem acontecido cada vez com mais frequência. Quatro anos atrás, quando começou a fazer faxina para ele, Silvio ainda caminhava. Ela não sabia de sua doença, muito menos que desde os anos 1980 vinha sendo cobaia de tratamentos experimentais num grande hospital do Upper East Side. Graças a eles sobrevivera, Barbara acreditava. Todos os amigos dele tinham morrido. Silvio fora seu primeiro cliente ao chegar de Framingham, atônita e acuada, num dia abafado do verão de 1991. Um brasileiro, indicado pela amiga brasileira de Leonardo.
O apartamento era outro, atulhado de móveis, fotos, bugigangas e roupas que nunca o vira usando. Ficava no quarto andar de um prédio de tijolos vermelhos, sem elevador, ao sul de Manhattan, numa rua estreita e curta, sem uma árvore sequer, perdida entre a Houston e a Canal, próxima ao túnel Holland. Ela se esqueceu do nome da rua. Nunca se preocupou em memorizá-lo. Não acha necessário: se vai uma vez, sempre achará o caminho. Para que decorar nomes e números de ruas, avenidas, linhas de trens ou estações de metrô, se mais dia, menos dia, vai acabar indo embora? Esta é uma vida provisória, ela acredita. Tem de ser uma vida provisória, precisa acreditar.
Silvio não caminha mais. As seguidas amputações dos dedos dos pés foram dificultando seu equilíbrio, mesmo apoiando-se em muletas. Estão acabando comigo em pequenos pedaços, ele lhe disse uma vez. Usa cadeira de rodas nas raras vezes em que se movimenta pelo apartamento. (À rua não desce mais, apesar de morar em um edifício de construção recente, com portas, corredores e elevadores amplos, rampas e corrimãos.) Uma organização beneficente fornece suas refeições. No ano em que começara a trabalhar para ele, Silvio tinha passado o carnaval no Brasil. Foi a última vez. Na única foto trazida de lá, aparece sorridente, com vários colares de flores de pano em torno do pescoço. O semicírculo azul ao fundo era o mar de Copacabana, ele lhe explicara. Ela desejou ter conhecido Copacabana, antes de partir do Brasil. Ela deseja acreditar que um dia conhecerá Copacabana. Tem medo de pensar que jamais conhecerá Copacabana.
Fecha a porta devagar, com um clique surdo. Vira-se. O apartamento está às escuras, mas distingue uma figura deitada de costas para ela, na cama estreita, sob a janela com a cortina abaixada. Só a cabeça de Silvio está fora das cobertas. A farta cabeleira, como ela ainda tinha conhecido, e da qual Silvio parecia tanto se orgulhar, tornara-se grisalha, depois embranquecera, antes de desaparecer completamente sob efeito dos medicamentos.
Não há nada pendurado nas paredes, ao contrário do outro apartamento, coalhado de porta-retratos, cartazes, quadros com capas e recortes de revistas de cinema, pratos e toda espécie de pequenos objetos trazidos de viagens. Não sabe se optou por não pendurá-los aqui ou se é parte das exigências para ocupar o lugar. Seu conjugado, como a maioria dos apartamentos no edifício de 22 andares na rua 53, é de propriedade do hospital e abriga pacientes como ele, médicos estrangeiros, estagiários de outros estados, visitantes, parentes de clientes vindos de fora.
Lembra-se de ter visto duas caixas amontoadas com aqueles objetos lá, ainda. Mas nem elas nem os móveis foram trazidos para cá. Exceto por três ou quatro peças, tudo neste apartamento pertence ao hospital.
Caminha pé ante pé até a bancada de madeira falsa da cozinha integrada, coloca a sacola de compras e a bolsa sobre ela, retira as luvas e as enfia, junto com as chaves, no sobretudo, logo pendurado em um dos ganchos de plástico já abarrotados com as mesmas peças de roupas que estavam ali na semana anterior, e na outra, e por meses, sem que ele as vista. Os enfermeiros, quando o vinham buscar, levavam-no com o que usa sempre dentro daquele espaço exíguo: calças de moletom (sempre cinza), camiseta (cinza), algum agasalho por cima. Só os troca às quartas-feiras, o dia em que ela faz a faxina.
Desenrola o cachecol, pendura-o.
— You may turn on the lights — ouve-o dizer, sem se virar.
— Acordei o senhor?
— Ah, queridona, é você. Bom-dia — ele cumprimenta, sempre de costas. — Pensei que fosse alguém do Meals on Wheels. Em geral trazem comida para mim a esta hora. I have always depended on the kindness of strangers. Já é meio-dia?
— São sete e meia. Desculpe acordar o senhor.
— Eu não estava dormindo. Pode acender a luz.
— Vou abrir a cortina.
— Não, a cortina não. Não aguento mais ver a parede em frente.
Ela acende a luz na parte de baixo do armário da cozinha, a mais suave do apartamento.
— Hoje é quarta-feira?
— É.
— Como sabia que eu tinha voltado do hospital?
— Eu venho limpar mesmo quando o senhor não está. Toda quarta, se lembra? E o senhor deixou recado na minha secretária eletrônica, ontem, avisando que tinha voltado.
— Hum… Às vezes esqueço. Os remédios. Me fazem esquecer. Tem café? Por que está me chamando de senhor?
— Vou fazer — ela responde, já colocando água na vasilha de vidro, despejando-a na cafeteira. — Desculpe, mas estou acostumada a chamar as pessoas de…
— Chama as pessoas mais velhas de senhor?
— Desculpe.
— Em inglês é melhor. Todos são chamados de you. Sem idade. Como sabia que eu estava em casa?
— O recado.
— Ah, claro.
Silvio aguarda, em silêncio.
— Mas só esqueço coisas recentes — observa, após algum tempo. — Lembro tudo de antes. All the good stuff. Some of the bad, too. Tudo de antes. O ruim e o bom. Aqui, deitado, dia e noite, no hospital também, noite e dia, hora após hora, após hora, após hora, when I’m not spaced out, quando não estou doido pelo efeito dos remédios, mesmo sem fazer esforço, mesmo sem puxar por elas, as imagens passam pela minha cabeça. Todas. Tudo. Os rostos, os risos, os nomes, o drinque que Mick mandou para mim no Studio 54, o drinque que Bianca jogou na minha cara, as roupas, os brilhos, o som da música, as letras das canções, o bouncer porto-riquenho na porta, os leões de chácara que repassavam a cocaína trazida pelos dealers, a lourinha do midwest que recolhia os casacos na rouparia, era louca por mim, e depois virou estrela de filmes de terror B em Hollywood, até se casar com um milionário iraniano, tudo, tudo, all of it, passa incessantemente pela minha cabeça. O bom e o ruim. Principalmente o bom. Assim me seguro. Como uma boia, entende?
Ela não responde.
— Entende?
Ela serve o café em uma caneca estampada com a imagem de uma cachoeira e a frase Souvenir from Niagara Falls 1990. O ano em que ela decidiu sair do Brasil. Um dos lugares dos Estados Unidos que ela gostaria de conhecer, assim como o Grand Canyon e Las Vegas. A caneca é um dos poucos objetos que Silvio trouxe do outro apartamento. Ela a coloca numa bandeja de plástico verde, põe ao lado o açucareiro verde e uma colher de plástico verde. Todos têm a logo do hospital. Pergunta, abrindo a geladeira:
— Leite?
— Oh, God, no. I hate milk. Sempre detestei leite.
— O senhor gosta de café com leite, às vezes.
— Senhor?
— Você.
— That’s better.
— Desculpe.
— Gosto às vezes. De tarde. Quando você faz para mim torradas com blackberry jam.
— Quer que eu faça?
— Não, queridona, obrigado. Não tenho fome.
Ela chega ao lado da cama. Ele se vira. Está maquiado. Ela nota. Ele percebe sua surpresa.
— Ah… um pouco de blush. Para levantar a cara. E uma base leve, para disfarçar as olheiras. Estava muito abatido.
Ela estende a bandeja, ele pega a caneca das cataratas do Niágara.
— Um cubo de açúcar? Dois?
— Três, por favor.
Um a um, eles absorvem o líquido preto e afundam. Ela gira a colher, até desaparecerem completamente. Ele agradece. Toma um gole, com prazer. Deixa na borda da caneca a marca rosada de batom.
— Só para um realce — justifica, observando o trajeto do olhar dela. — Além disso…
Toma outro gole.
— Além disso, os rapazes que entregam as refeições do Meals on Wheels são very cute. Não quero nada com eles. Nem posso. Mas queria estar atraente, entende?
Ela enrubesce. Silvio nota.
— Desculpe. Não tive a intenção de chocar.
— Não estou chocada.
— Está, sim. Tudo é chocante para você. Ainda não se acostumou com meu jeito de ser, mesmo já me conhecendo há… há quanto tempo?
— Quatro anos. Quatro anos e sete meses. Desde julho de 1991.
— Sim, exatamente. No apartamento de downtown. Aquela sua amiga que morava no Queens trouxe você. Vocês estavam ensopadas.
— Pegamos uma chuvarada quando saímos da estação do metrô. Primeiro corremos, depois desistimos.
— Me dê um guardanapo, por favor.
Ela vai até o armário, pega alguns, leva até ele. Silvio limpa os lábios.
— Pronto. The same old me is back again. Não sou uma bicha louca. Nunca fui. I just didn’t want to look so bad today, você entende? Fico com vergonha quando esses rapazes do Meals on Wheels chegam aqui e me veem assim. Pareço um moribundo. Nos últimos tempos, cada vez que volto do tratamento estou mais abatido. Não tenho mais coragem de me olhar no espelho, você entende?
Ela entendia. Mas não sabia como responder.
— Um pouquinho de blush não faz mal.
Ela quer começar logo a faxina. Ela prefere não conversar. Ela percebe o sofrimento de Silvio e teme ser arrastada a regiões em si mesma com as quais não quer entrar em contato. Não pode. Sua vida está construída sobre esta separação: os tumultos internos não devem nem podem interferir com o acordar de cada dia, com os cinquenta e tantos minutos da estação em que embarca no Queens, pela Lexington Avenue Line ou pela Broadway-7th Avenue Line, até as diferentes estações em que desembarca em Manhattan, de segunda a sábado, desde 21 de julho de 1991, para limpar apartamentos ou fazer trabalho de manicure e ganhar uns dólares a mais utilizando uma habilidade mal e mal desenvolvida no salão de beleza da mãe, falido com o Plano Collor, depois no Andrade Sisters Beauty Salon, em Framingham, eventualmente ouvir confidências, como as quatro brasileiras, todas casadas, todas mães de filhos, todas moradoras das cercanias de Newark, discretas prostitutas das nove da manhã às cinco da tarde, quando voltam para seus lares, agenciadas por uma ex-atriz carioca em apartamentos a poucas quadras da Bloomingdale’s.
— Um blush, um café e… — sorri, inclinando a cabeça para o lado, buscando conivência. — Um cigarro. Pega para mim, queridona? Estão aqui, embaixo.
— O senhor não pode fumar. O pessoal do hospital põe o senhor para fora do programa, se descobrir.
— Senhor é Deus nas alturas. Finjo que não fumo, eles fingem que não sabem. Nesse ponto que o tratamento chegou, que diferença vai fazer? Pegue para mim. E me dê mais um café, ok, baby?
Ela o serve mais uma vez. Abaixa-se, enfia a mão sob o colchão do sofá-cama, pega o maço vermelho e branco, abre a tampa e o estende.
— O senhor não devia fumar — comenta, sem convicção.
Um cigarro, ou muitos, não faria diferença. O declínio dele se acelerara, claramente. Quando o conhecera, Silvio tinha especial prazer em caminhar pela beira do rio Hudson e, às vezes, pedia que o acompanhasse. Ela nunca aceitou. Atrasaria seu trabalho. Tinha uma segunda faxina às quartas, num apartamento próximo, na Greenwich Street, de uma abastada estudante paulista da New York University.
Ultimamente Silvio tem cada vez menos apetite. Naquela época comia fora todos os dias. Buscava não repetir o lugar, andando pelo bairro ou indo até o Greenwich Village, o Chelsea, Chinatown, Little Italy, as delis do Lower East Side e os diners de Tribeca. Mesmo no inverno, flanava pelos meandros do sul de Manhattan, pelos becos sombreados e pelas ruas com nomes de pessoas havia muito desaparecidas e esquecidas, terminando sempre no subsolo do World Trade Center, onde tomava um expresso e pegava o metrô de volta, duas estações apenas até a da Houston Street, pelo prazer de se misturar às pessoas que, ao contrário dele, eram obrigadas a trabalhar todos os dias. Vivia de quê?, ela por vezes se perguntava, até o dia em que ele revelou ter ganhado aquele apartamento de um amante. Graças à generosidade de outros homens, sempre mais velhos, quase sempre casados e pais de família em cidades próximas a Manhattan, foi comprando conjugados no Rio, no bairro de Copacabana, alugados por temporada para turistas. Tinha dois. Um sobrinho administrava e lhe mandava o dinheiro.
— Ele rouba um pouco, mas não me importo. Live and let live, esse é o meu lema — repetia, com seu forte sotaque carioca, no inglês claudicante aprendido como lavador de pratos, primeiro, depois como garçom e, em seguida, barman de uma boate gay na Christopher Street, onde formou, como dizia, uma clientela.
Gostava, particularmente, de ir ao Film Forum, um cinema perto de onde morava, para assistir a velhos filmes de atrizes cujos nomes eram desconhecidos para ela, como Marta Toren, Ida Lupino ou Maria Montez, belas mulheres em poses afetadas e fotos intensamente retocadas, distribuídas pelas paredes do apartamento presenteado pelo dono de uma confecção de uniformes.
Não mais.
— Pega o cinzeiro para mim, baby. Aqui embaixo, também.
Ela se abaixa, novamente. O cinzeiro está cheio de tocos de cigarro. Oito, ela conta, antes de jogá-los na lixeira da quitinete, limpar o cinzeiro e levá-lo de volta.
— Você me acha ridículo?
— Não, de maneira alguma. Claro que não.
— Estou horrendo, não estou?
— Não. Não está. Está apenas… abatido.
— In other words, horroroso. Entendi. Forget it. Compra um pacote de cigarros para mim e…
— Não posso.
— Claro que pode. Cigarros e aqueles biscoitos de chocolate redondos, com recheio de baunilha. É o que estou com vontade de comer hoje.
— Trouxe legumes e peito de frango. Vou fazer para o senhor almoçar.
— Oh, girl, you are impossible!