— Ele está acordado?

Aquela voz…

— Saiam.

Aquela voz. Conhecia aquela voz.

— Eu fico com ele.

Está pendurado no pau de arara, sujo de sangue, fezes, urina e vômito. A posição não lhe permite ver o rosto de quem ordena a saída de seus torturadores, mas a voz autoritária, segura, essa ele conhece. Vem de um outro tempo.

— Sim, senhor.

— Voltaremos quando o senhor chamar.

Ouve-os saindo. Ele e o homem ficam sozinhos na sala.

— Em que merda você se meteu agora…

Era a voz de… Não podia ser. Não podia. Não ali. A voz que reconhecia não podia pertencer àquele homem de quem via apenas as calças do uniforme de campanha e os coturnos. Não podia ser. Ali, naquele lugar, não. Não podia.

— …Neguinho?

— Antonio — ele balbucia.

— Que cagada.

— Antonio? — repete, incrédulo.

— Bem que o pai dizia que você não prestava.

— Antonio… — sussurra, pasmo.

— Sangue ruim.

— Antonio — exclama, sem conseguir dar sentido à situação.

Delirava? Sofria os efeitos de tantas pancadas na cabeça?

O homem que lhe fala movimenta-se. Vai até um dos cantos da sala.

A distância permite vê-lo melhor. O tronco amplo. Os cabelos louros, agora cortados em estilo militar. A pele clara. Como a de seus antepassados visigodos.

— Sangue ruim. O pai sempre disse.

Reconhece, perplexo, o homenzarrão em roupas militares.

— Antonio — repete, debilmente.

Não se veem desde que Paulo saiu de casa, seis anos atrás. Nunca se procuraram.

— Aqui não tem nenhum Antonio.

— O que está acontecendo, Antonio? O que você está..?

— O pai sabia que você não ia dar em nada. Tu é mesmo um merda, Neguinho.

— Antonio, o que…

— Aqui não tem nenhum Antonio, já disse.

— Me trouxeram para cá, me…

— Meu nome aqui é Capitão Molina.

— Antonio… Por quê…? O quê…?

— Capitão Molina.

Pareceu-lhe que as dores se tornavam ainda mais agudas.

— Bateram muito em mim, Antonio.

— Capitão Molina.

— Tá doendo muito, Antonio.

— Capitão Molina.

— Me tira daqui, Antonio.

— Capitão Molina, seu neguinho de merda.

— Por favor, me tira daqui.

— Você sabe onde está?

— No Dops? No Galeão? Na Vila Militar?

— Nem vai saber.

— Você…

— O senhor.

— Por que vo…

— O senhor. Capitão Molina.

— Aqui… Me trouxeram…

— Este lugar não existe. Não há registro da sua entrada.

— Bateram tanto em mim.

— Iam te matar.

— Mas…

— Essa era a ordem.

— Mas, por quê...?

— Seu codinome é Nelson. Nós sabemos. Você ia servir de exemplo para esses seus amigos comunistas.

— Eu não sou…

— Você, Paulo Roberto Antunes, codinome Nelson, e seus amigos de codinome Úrsula, Gerson e Helio usaram o disfarce de alfabetizadores de adultos para se reunir e planejar o sequestro do embaixador alemão. Vocês são parte do grupo que inclui Vera Lúcia Thimóteo, Júlio Cesar Covello, Lucia Velloso Maurício e Alex Polari.

— Antonio, eu não…

— Capitão Molina.

— Nenhuma dessas pessoas eu…

— Seu grupo roubou quatro carros. Um Opala, uma Rural Willys, dois Fuscas. O Opala é de cor azul. Nele seu grupo transportou o embaixador alemão Von Holleben.

— Eu não sou…

— Não deixei nem quebrar teus dentes. Iam te matar de porrada. Como exemplo. Eu não deixei. Devia ter deixado.

— Eu nunca fui…

— Uma nota com seu codinome e endereço estava entre os objetos deixados para trás no cativeiro do embaixador, em Cordovil.

Não é possível. Antonio está enganado. Ou mente. Não pode haver nenhuma referência a ele. Alex Polari, Lúcia Thimóteo, Júlio Cesar Covello, Lucia Velloso Maurício, aqueles nomes não lhe dizem nada. Não sabe quem são aquelas pessoas. Não as conhece. Do sequestro do embaixador alemão só tomara conhecimento pelo noticiário. Seus colegas do grupo de alfabetização de adultos são contrários à ditadura, sim, como tantos outros estudantes da Faculdade Nacional de Direito, mas nenhum deles está envolvido com os grupos de luta armada. Nunca se metera com os radicais do grupo acadêmico. Era um equívoco. É um equívoco. Tem que ser. Tinha que ser. Ou pior:

— Mentira.

— Mentira, Neguinho?

— Não conheço essas pessoas. Não entendo por que…

— Não tem nenhum envolvimento com elas? Com Gerson, Helio, Úrsula?

— Sim, mas eles, nós, nós fazemos parte do grupo que…

— Grupo de alfabetização pelo Método Paulo Freire, proibido desde 1964.

— Sim, mas…

— Uma fachada para a composição de grupos de oposição armada ao governo.

— Não, Antonio…

— Capitão Molina.

— Nós, nosso grupo, nós somos estudantes da Faculdade Nacional de…

— Úrsula é o codinome de Helena Lysias, nascida em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 5 de janeiro de 1950 — Antonio leu nos papéis que tinha na mão —, prima do subversivo Bernardo Linhares, foragido desde 13 de dezembro de 1968. Gerson é paulista, nascido em 19 de abril de 1947, em Araçatuba, onde foi registrado com o nome de Mauro Luís Dolinski de Oliveira. Fichado como agitador. Veio para o Rio em janeiro de 1969. Helio é carioca mesmo, e novo no grupo. Chama-se Airton. O pai, Diomedes Valladares, foi dirigente no Sindicato dos Estivadores, preso em abril de 1964, depois preso novamente em agosto, e uma terceira vez em janeiro de 1965. Desde janeiro de 1969 está no Chile, conforme relatório de nossos funcionários na Embaixada do Brasil em Santiago.

— Não é possível. Nós nunca…

— Respeite minha inteligência, moleque. Você sempre se achou melhor, porque ficava lendo livros e essa merda toda, mais essa porra dessa faculdade de direito e o caralho a quatro, enquanto eu era o burrão que só podia mesmo entrar para o Exército. Pois quem está por cima agora, Neguinho?

— Antonio, eu não tenho nada a ver com…

— Antonio foi quem te salvou. Mas quem está falando com você é o Capitão Molina. Você podia foder com a minha carreira, seu puto. Acabar com a minha reputação. Destruir tudo o que eu construí, desde que saí daquela merda daquela casa de subúrbio que bastavam para você e o pai. Mas não vai me foder, Neguinho. Não vai, não.

— Antonio, tenho tantas dores, não consigo entender nada mas posso te garantir que…

— Cala a boca. Quem fala sou eu.

Paulo ouve, sem ter certeza de estar entendendo, sem ter certeza de não estar alucinando. Não está, como se recordará, anos mais tarde e em muitas noites insones.

— Você vai ser solto — Antonio lhe diz — depois que essas marcas desaparecerem do seu corpo. Você não vai ter chance de mostrar para ninguém o que aconteceu aqui. No Brasil não tem tortura, não há tortura no Brasil, entendeu? Você não esteve aqui. Não há nenhum registro. Nenhum documento. Esse corte comprido aí, perto do pescoço, vai virar apenas uma cicatriz. Será uma boa lembrança desses dias. Você vai ser solto — Antonio repetiu. — Mas você, Neguinho, não existe mais. Sua certidão de nascimento, sua carteira de identidade, seu certificado de reservista, seus registros escolares, de lá daquela merda daquela cidade do interior de onde você veio até essa merda dessa faculdade no Rio de Janeiro, tudo, todos os documentos de Paulo Roberto Antunes foram apagados. O babaca que vai ser solto não é meu irmão, nem tampouco filho do meu pai e da minha mãe. Você vai ser solto. Mas não aqui. Não no Rio. Você não pode ficar aqui. Não quero você aqui. Para cá você não volta mais. Se voltar, está morto.

— Eu sou um estudante, Antonio, eu não tenho nada com a resistência à ditadura, não pertenço a nenhum grupo de…

— Cala a boca, Neguinho. Ouve.

Cada frase fazia menos sentido que a seguinte. Que intenção havia nelas? Quem achavam que ele era? Com quem o confundiam? Um codinome? Dele? No refúgio dos sequestradores do embaixador alemão? Como? Se não era invenção de Antonio e dos interrogadores, por que agora seu irmão descrevia como o deixarão em uma estrada de terra batida no Paraná, com algum dinheiro e documentos com seu codinome, a poucos quilômetros de uma cidade, onde deverá tomar um ônibus e cruzar a fronteira? Para onde? Por quê? O curso de direito, os conhecidos, os colegas, o pai…

— O pai está cagando e andando para você, Neguinho. Aposto que você nem sabe para onde ele se mudou, nem mesmo em que bairro está morando.

Constatou: não sabia da mudança. Para onde? Desde quando não o via?

— Sou estudante. Nunca…

— Cala a boca. Me ouve e para com essas babaquices, Neguinho. Aliás, Nelson.

Antonio dissera Nelson? Antonio o chamara de Nelson? Por que Nelson? O que significava Nelson?

— Nelson, não — Antonio volta a conferir entre as páginas datilografadas. — Que codinome mais falso você foi escolher, Neguinho. José Nelson dos Santos. Isso lá é nome de alguém que pretende derrubar o governo?

Leu, mais uma vez:

— José Nelson Gomes dos Santos.

José. Nelson. José Nelson. José Nelson? José, Nelson. Nelson. José. José. Nelson. José… José… José!

Então Paulo entendeu a ligação entre as torturas que sofrera, as perguntas aparentemente sem sentido, as acusações de possíveis conexões com ativistas da luta armada. José Nelson Gomes dos Santos. José Nelson. José. O amigo de Úrsula. Ou seria Helena, como afirmava Antonio? O amigo que, a pedido de Úrsula, ou Helena, ficara alguns dias hospedado em seu conjugado em Copacabana. O sujeito magro, moreno, de cabelos crespos encaracolados como ele, com quem trocara poucas frases e a quem não fizera perguntas, tal como a amiga em comum pedira. Tinha uma cópia da chave e só entrava no apartamento de dia, quando Paulo saía. Nunca estava à noite, quando voltava. O único sinal de sua presença eram guimbas de cigarro Continental sem filtro. Até quando não mais as encontrou. O José Nelson chegado e sumido sem aviso. Parecido com ele. Tinham o mesmo tipo. Agora entendia. Sim, agora entendia. Tudo. O que acontecera e suas consequências. José Nelson, Úrsula/Helena, Gerson/Mauro Luís, Helio/Airton eram parte do grupo de apoio ligado, de alguma forma, ao sequestro do diplomata. Guerrilheiros. Subversivos, como os militares gostavam de classificar. Fichados. Tal como ele passara a ser. Agora, também, era um subversivo. Também fichado. Também interrogado. Também marcado para morrer.

Porém, salvo pelo irmão. Pelo irmão oficial do… Exército? Seria mesmo do Exército? Os interrogadores eram do Exército? Inclusive o médico? Da Aeronáutica? Dos Fuzileiros Navais?

— Você não tem dinheiro, conta bancária, mulher, filho, família, nada para deixar para trás — Antonio lhe diz, enumerando detalhe por detalhe o que Paulo deveria fazer desde a libertação, perto da fronteira do Paraguai, até chegar ao Chile, sem em nenhum momento alterar o tom da voz, sem se perder em informações adicionais, como quem conhece todas as etapas do percurso, ignorando as tentativas de perguntas do irmão, tal como o chefe de repartição sonolenta de um ministério público descreveria ao funcionário recém-admitido as tarefas a cumprir.

— Quando chegar a Santiago você se vira, com seus amigos comunistas que fugiram para o Chile. Vai dar aula, vai cantar nas esquinas, pede uma pensão de exilado, se vira, Neguinho. E foda-se.

Enfiou o capuz de novo na cabeça do irmão.

Paulo ouviu seus passos saindo da sala, a porta se abrindo e batendo..

Seria a última vez que veria seu irmão, pensava.

Estava enganado.