Daqui a pouco é Natal.
À medida que a data se aproxima, mais atarantada fica.
Quanto mais brilhantes se tornam as luzes a piscar nas árvores e portarias dos arranha-céus de Manhattan, tal como nas fachadas dos edifícios e nos jardins, gramados, janelas, portas, cercas, varandas, telhados e chaminés das casas do Queens, quanto mais as sincopadas canções natalinas tomam conta das lojas e os Papais Noéis surgem pelas esquinas com seus sinos e panelões em busca de donativos, quanto mais coruscantes se tornam as vitrines, menos Barbara sabe como se comportar em seu primeiro Natal fora do Brasil.
Esquecera que a data existia, que se repete todos os anos, e agora se vê diante de uma situação (mais uma) jamais cogitada: é Natal. Será Natal daqui a duas semanas (dentro de onze dias exatamente, uma terça-feira).
Não quer admitir para si mesma, nem quer que ninguém saiba: não tem para onde ir na noite de 24 de dezembro, nem no dia seguinte. Sente medo, por antecipação. Será um dia de silêncio e isolamento, como tantos. Mas este a intimida. Mais que os outros.
Para a maioria de seus clientes, essa é a época de novo endividamento, com prestações de passagens aéreas para reencontrar parentes em Varginha, Valença, Paracuru, Indaiatuba, Tubarão, Maringá, Santa Rita do Sapucaí, Anitápolis, Belo Horizonte, Fortaleza, Campo Grande, Porto Alegre, capitais e um monte de cidades cujos nomes nunca ouvira antes.
Chegarão sobraçando roupas e calçados para os pais e irmãos, brinquedos eletrônicos para os sobrinhos, vitaminas e suplementos encomendados pelos amigos, jogos de cama e mesa que não amassam, batons e esmaltes de cores e marcas impossíveis de serem encontradas no Brasil, toalhas e guardanapos com imagens de renas, trenós, sinos, flocos de neve.
Lenira, Susana, Glória e Wanda fazem as compras de Natal na rua 14 , onde os preços são mais em conta e os vendedores de origem hispânica entendem o inglês arrevesado falado por quem raramente se relaciona fora da própria comunidade. Não vão à rua 46, cheia de lojas e compradores brasileiros, por receio de encontrarem os vizinhos, serem reconhecidas por algum frequentador do apartamento ou mesmo darem de cara com o marido.
— Somos putas — Wanda deixara claro, logo no primeiro dia de faxina.
— Garotas de programa — corrigira Susana.
— Mas nossos maridos não sabem — acrescentara Lenira.
— A gente diz que vem aqui para Manhattan fazer o que você faz — explicara Glória. — Faxina, manicure, babá…
— Ela já entendeu — Susana constatara, diante do olhar admirado de Barbara.
— Não precisa ter medo, somos limpinhas, não transmitimos doenças — rira-se Wanda.
— Que idade você tem? — Susana quisera saber.
— Vinte e um — ela inventara.
— Parece menos — observara Susana.
— Fiz 21 mês passado — Barbara mentira, mais uma vez.
— Pelo sotaque, é paulista — dissera Lenira.
— É casada? Tem marido, namorado, amante? — indagara Susana. — Ou você gosta de meninas?
Barbara enrubescera.
— Isso não é da nossa conta. Se a Nadja mandou ela vir fazer a faxina é porque ela é de confiança — encerrara Wanda.
As quatro mulheres moram fora de Manhattan, em Newark, perto umas das outras, em um bairro com muitos brasileiros, mas evitam a convivência. Quanto menos contato tiverem, menos suspeitas despertarão. Evitam, igualmente, todos os indícios de sua atividade. Perucas vistosas, vestidos colantes, decotes agudos, maquiagem colorida, sapatos de salto muito alto e fino (“Fuck me shoes”, dissera Wanda) são usados apenas ali e nas proximidades do apartamento. A proprietária é uma ex-atriz brasileira, amiga de Silvio, que ajudou Barbara a conseguir mais este serviço.
Foram as primeiras prostitutas que Barbara conheceu. Nos anos seguintes conheceria outras — brasileiras, hispânicas, russas, americanas — e passaria a identificar as garotas de programa que regularmente chegam do Brasil, hospedam-se em vagas e pequenos apartamentos no Queens, faturam durante algum tempo, atendendo homens em hotéis ou dançando em clubes de striptease, e voltam para suas cidades de origem, onde completam cursos universitários, casam-se, têm filhos.
No trabalho em Manhattan, Wanda, Susana, Glória e Lenira usam nomes diversos, inspirados em cantoras, modelos e atrizes. Por vezes os trocam, ainda que prefiram ser chamadas de Andressa, Charlene, Cindy, Naomi, Veruska, Vanessa, Sharon, Natasha, Melissa, Glenda.
— São nomes que combinam mais com putaria — Wanda conta a Barbara.
— Não gosto quando fala palavrão — reclama Lenira.
— Não tenho vergonha de ser puta, como você e a Susana.
— Não sou puta — protesta Susana.
— Chupar pau, abrir as pernas, dar a boceta, dar o cu por dinheiro é o quê? Santidade?
— Que horror, Wanda. Já disse que não sou prostituta — irrita-se Susana. — Faço programa, só isso.
— Putaria é putaria. Não tem outro nome. Você é uma puta envergonhada. Eu, não.
— Não tenho vergonha. Não roubo, não faço mal a ninguém. Não tenho por que ter vergonha.
— Se não tem vergonha de ser puta, por que esconde do seu marido?
— Sou puta. Não sou burra – respondeu Susana.
— Viu? Admite que é puta.
— Não sou puta!
— E quem disse que seu marido não sabe?
— Seu marido sabe? — espanta-se Barbara, que em geral não interfere nas discussões do quarteto.
— Os maridos não sabem porque não querem saber — Wanda afirma.
— O meu não tem como saber — corta Susana. — Não tenho cartão de crédito, não compro nada para mim. A maior parte do dinheiro que eu ganho aqui vai direto para minha família. Já comprei casa para minha mãe e estou pagando a faculdade da minha irmã.
— Chupando muito pau e dando muito essa xoxota — diz Wanda, rindo. — Uma santa puta. Uma puta santa.
— Pare, Wanda, você está encabulando a Barbara — intervém Glória. — Ela está roxa, de tão vermelha. Não fique assim, não, menina. A gente está de brincadeira.
A reunião do quarteto é rara. Em geral trabalham em duplas, em dias alternados, cada uma em um dos quartos do apartamento. Elas mesmas se encarregam da limpeza básica do lugar no fim do expediente. A faxina mais pesada e a lavagem das roupas de cama e banho são tarefa de Barbara nas tardes de terças e sábados. Estão juntas hoje porque se cotizaram para pagar a van que as levará até Newark, com suas dezenas de bolsas e sacolas de compras de Natal. Voltarão a seus lares com o mesmo senso de dever cumprido de qualquer outra esposa e dona de casa dedicada. Que realmente são.
— Merry Christmas, bitch! — brinda Wanda, levantando a taça com refrigerante (são proibidas de tomar bebida alcoólica no trabalho) e saudando a todas, indistintamente.
— Merry Christmas, bitch! — elas retribuem, erguendo as delas.
— Não vai abrir seus presentes? — Wanda pergunta a Barbara, indicando as duas caixas embrulhadas em papel metalizado (um de listras vermelhas e verdes; outro, vermelho, prata e azul), ambas fechadas com larga fita dourada e amplo laço no topo.
Ela continua com a taça na mão, sem beber, ainda surpresa pelo mimo inesperado, embaraçada por não ter como retribuir. As caixas estão em seu colo.
— Gostou da embalagem? Eu que fiz — Wanda acrescenta, orgulhosa. — Como nos meus tempos de balconista em Belo Horizonte.
— Nós escolhemos juntas, viu, Barbara? — conta Susana.
— Pensando no seu futuro — diz Glória.
— Foi mesmo — Lenira confirma. — Abra.
Ela desfaz o laço e, com a ponta da unha cortada curta, delicadamente vai levantando a fita adesiva do embrulho menor, sem rasgar o papel. Desdobra-o. Encontra uma estojo de plástico preto brilhante, com a marca gravada em dourado sobre a tampa. Levanta-a. Na parte superior há um espelho. Na de baixo, um pincel de cabo curto está preso a uma reentrância, ao lado de vários retângulos com pós de cores e tons do vermelho mais intenso até um rosa pálido.
— Maquiagem pra você ficar mais feminina — Lenira se adianta, ao perceber a maneira desajeitada como Barbara segura o objeto.
— Eu nunca tive uma caixa assim. Eu não sei como…
— Nós lhe ensinaremos — oferece Susana.
— Eu não gosto de…
— Você tem que se maquiar, menina — interfere Wanda. — Do jeito que está parece uma fanchona triste.
Barbara nunca ouvira a palavra “fanchona”, não sabe o que significa e sua expressão traduz isso.
— Fanchona, lésbica, sapatão, paraíba, mulher-macho — desfia Wanda.
— A gente sabe que tu não és fanchona — contemporiza Lenira.
— Mas se for, também não tem problema — Susana se apressa a esclarecer. — Nós não ligamos. Só queremos que fique mais atraente. Agora, abre o outro presente.
O estojo de maquiagem é colocado ao lado. Com a mesma vagareza delicada com que desembrulhara a primeira caixa, abre o papel que envolve o segundo presente. Ao levantar a tampa da caixa de papelão cinza, encontra outro papel. Desdobra-o. Vê uma peça de roupa de tecido transparente azul-claro, ornada com rendas da mesma cor. Pega-a pela alça estreita, ergue-a diante de si. É uma camisola.
Lenira não consegue evitar o riso, diante da visão admirada de Barbara.
— É para usar naquelas noites especiais com o seu namorado! — comenta.
— Ah… Eu não…
— Não vai me dizer que você é virgem…
— Não, Wanda, não sou. Claro que não sou. Mas eu não tenho nenhum…
— Gostou? — Susana quer saber.
— É… É linda.
— E você vai ficar linda nela.
— Conhece a música da camisola? — Wanda pergunta.
— Acho que não.
— Tocava nos bailes da minha cidade. Era para dançar agarradinho.
Wanda cantarola, imitando voz masculina:
A camisola do dia,
tão transparente e macia,
que eu dei de presente a ti…
Lenira se recorda da canção que o pai ouvia e junta sua voz à de Wanda:
Tinha rendas de Sevilha,
a pequena maravilha,
que o teu corpinho abrigava…
Todas riem. Barbara, ainda com a camisola nas mãos, pela primeira vez desde que as conheceu se atreve a perguntar:
— O que vocês faziam antes… antes de virem para os Estados Unidos?
— Você quer saber se a gente já era puta no Brasil? — provoca Wanda.
— Não, não.
— Quem é puta já nasce puta.
Lenira finge irritação:
— Que é isso, Wanda? De jeito nenhum. Só se for o teu caso.
— Ah, é? E você fazia o que em Goiânia?
— Não sou de Goiânia, sou de Campo Grande.
— Aposto que você fez muito programa com aqueles fazendeiros de Campo Grande.
— Eu casei virgem, tá?
— Virgem? Duvido.
— Só tinha transado com meu marido. Com meu noivo.
— Jura?
— Juro.
— Não acredito.
— Nem sacanagem eu fazia.
— Nada? — foi a vez de Glória duvidar.
— Nada — diz Lenira.
— Nadinha de nada? Nem uma mãozinha no peito, nem um dedinho lá dentro? — insiste Wanda.
— Nada.
— Pois eu dei muito em Divinópolis — Wanda conta. — Saí de lá falada. Em Belo Horizonte também conheci muito homem. Por essas e outras é que não faço a menor questão que meu marido aprenda a falar português.
Outra informação nova para Barbara.
— Pensei que todas vocês fossem casadas com brasileiros.
— É libanês. Conheci em uma excursão a Foz do Iguaçu. Você já foi a Foz do Iguaçu?
— Eu era comerciária em Ribeirão Preto — recorda Lenira. — Meu marido é de lá. A gente se casou antes de vir para cá.
— Eu fui bancária, trabalhei no comércio, vendi cosméticos de porta em porta, lá em Minas, mas só virei puta aqui.
— Antes você nunca… — Barbara não sabia como fechar a pergunta.
— Dei por dinheiro? Nunca — Wanda confirma. — Nunca. Nem nunca imaginei que viraria puta um dia.
— Mas você acabou de dizer que quem é puta já nasce puta — lembra Lenira.
— E nasce, mesmo. Às vezes demora a descobrir que é puta. Eu demorei. Só depois que conheci a Nadja é que descobri que podia ganhar dinheiro fazendo isso. Não me importo de pagar metade a ela.
Barbara sabia que a ex-atriz funcionava como agenciadora, Silvio lhe avisara antes de apresentá-la. Mas desconhecia os detalhes que Susana agora expunha.
— Quem arruma clientes para nós é a Nadja. É ela quem vai a festas no Consulado, que frequenta os políticos em visita a Nova York, que conhece os representantes das agências de turismo e seleciona para nós, com cuidado. Ela comprou este apartamento, ela comprou os móveis, as roupas de cama, os telefones, os sabonetes, ela paga tudo. É a Nadja quem dá gorjetas para os porteiros e zeladores, foi ela quem comprou esses quadros, o aparelho de som, os tapetes, as cortinas, quem organiza nossa agenda.
— Sem falar que a Nadja também paga nossas consultas médicas — acrescenta Lenira.
— E pagou o silicone dos meus peitos — lembra Glória.
— Dos meus também — diz Wanda.
Susana segura os dela, cobertos por um casaco de lã pied-de-poule, parte do conjunto que compõe seu figurino de esposa bem-comportada de Newark.
— Eu nunca precisei.
— Vocês, nordestinas, são muito peitudas — observa a mineira Wanda.
— Não sou peituda. Sou normal. Vocês é que não tinham nada, só bundão.
— Americanos gostam de peitos grandes. Só por isso é que coloquei silicone — justifica Glória.
— Conselho da Nadja — afirma Susana, sem ser contestada.
Os seios aumentados, as roupas sensuais, as lingeries lascivas, as perucas volumosas, a atitude agressiva, meiga ou despudorada, adequada a cada tipo de cliente, até mesmo os nomes de guerra tinham o dedo, quando não a intervenção aberta, da ex-atriz que as reunira, uma a uma.
— Conheci a Nadja em uma festa — rememora Susana. — Pouco depois que cheguei aqui. Em 1987. Eu tinha vinte anos. Nem sei como surgiu o assunto de faturar fazendo programa com homens. Acho que eu estava meio altinha. Ou não estava, não sei mesmo, não me lembro. Só me lembro, só sei que, quando vi, ela tinha me convidado e eu resolvi experimentar. A Wanda e a Lenira já recebiam clientes e me orientaram. Ainda era no outro apartamento, na rua 87. Era um apartamento alugado.
— E você gostou! — ri Wanda.
— Para ser sincera, eu nem gosto de… disso.
— Não gosta de piroca? Que mentira.
— Deixe de ser grossa, Wanda. Não gosto. Nunca gostei.
— Mas é tão fácil, né?
— Não. Não é fácil. Não acho fácil. Não gosto — diz Susana.
— Não gosta de piroca?
— Pare de falar assim, Wanda! Deixe de ser grossa! Que linguagem horrível.
— Sou realista, meu bem. Se você não gosta de piroca, por que trabalha aqui com a gente?
— Não gosto de ficarem enfiando… aquilo… em mim. E me lambendo. Não gosto. Detesto.
— Ah, pelo amor de Deus, Susana! Faz programa e diz que faz contra a vontade?
— Não disse que faço contra a vontade. Eu disse que não gosto de ficarem enfiando dentro de mim.
Barbara mantinha-se calada. Não sabia o que dizer, nem se devia dizer alguma coisa. As quatro mulheres eram mais velhas e mais experientes que ela. Nunca testemunhara uma conversa naquele tom. Nunca partilhara uma conversa íntima com moças de sua idade. Sempre tivera uma relação formal com a mãe, nunca se permitira confidências nem com ela, nem com as poucas colegas de colégio ou do bairro.
— Então, por que faz programa? — irrita-se Glória.
— Porque senão ia terminar que nem essa aí — responde, apontando Barbara. — Fazendo faxina em apartamento de putas brasileiras.