MURILO MENDES HOJE/ AMANHÃ

O poeta elabora sua personagem,

nela passa a viver como em casa natal.

E não é a casa natal?

 

Faz a caiação da personagem,

cobre-a de azul celeste e púrpura de escândalo,

adorna-a de talha de ouro e asas barrocas,

burila-a, murila-a

(alfaiate de Deus talhando para si mesmo),

viaja com ela pelo universo.

 

O poeta cavalga o mito em pelo

— é o verso dele que informa.

Dirige-se com rédeas cristalinas

de razão mineira — incendiada? —

mas sempre vigente.

O caos toma sentido

visto da janela cosmorâmica

onde ele se debruça

para dentro para fora para o alto

para o fundo

para a organização do delírio

em código de poesia.

 

Criador manipulador participante

do espetáculo

ele próprio é o espetáculo em seus belos dias

de confidente de Mozart,

ouvindo de olhos fechados, e impondo silêncio,

o que só em silêncio desabrocha,

para sair depois, com o guarda-chuva do Quixote,

em guerra contra a burguesia e seus moinhos

literoprovinciais.

Peregrino europeu de Juiz de Fora,

telemissor de murilogramas e grafitos,

instaura na palavra o seu império.

(A palavra nasce-me

fere-me

mata-me

coisa-me

ressuscita-me)

 

Torre corcunda de Pisa ou de Babel

de gritos, de visões, de enigmas rutilantes

afinal subjugados à sentença

de um mural espanhol:

Deus trágico;

de uma fonte romana:

Deus pagão;

do sentimento plástico de Deus

refratado na invenção de seus secretários-artistas.

 

O ponto de vista anedótico,

a história sarcástica do Brasil,

Jandiras e Clotildes cariocas,

tudo desaparece em névoa de terceiro plano

para revelar o poeta

e sua depurada personagem

em completa realidade.

 

Ei-lo declarando, pelo verbo de Ungaretti:

Non sarai un antenato

per non avare avuto figli.

Sarai sempre futuro per i poeti.

 

Não só por isso. Por ter sido futuro, entre passados

e estagnados:

futuro intensamente, poeta

a nascer amanhã, sempre amanhã.