a lúcio cardoso
(na casa de saúde)

Entre visitas que perguntam,

no corredor, por tua vida

de artista recolhido à noite

sensorial, entre os amigos

que se inclinam preocupados

sobre a cisterna e não distinguem

teu reflexo brilhar no fundo,

entre os mais próximos e diletos

— não estou eu, porém de longe

mais perto me sinto e decifro

melhor teu perfil na sombra,

e perfil não só: tudo mais

que deu sentido a teu chamado

à rua dos homens: palavras

tramadas em papel, soando

em palco, problemas falantes,

movediços em preto e branco,

projeção em tela ou parede,

em cor quase som, mensagens

da mais subterrânea estação,

espectrais retratos do ser

para além de radiografias,

e um hálito de amor pedindo

espaços claros, praias de ouro

que se vão modelando em sonho

acordado, escrito, pintado.

Respiras, falas, comunicas-te

à revelia do corpo enfermo,

em tudo que é sinal. Contemplo

tua vida primeira e plena

a circular, transfigurada,

ó criador, entre vazios

sótãos de casa assassinada.