MANUEL BANDEIRA FAZ NOVENT’ANOS

Oi, poeta!

Do lado de lá, na moita, hem?, fazendo seus novent’anos…

E se rindo, eu aposto, dessa bobagem de contar tempo,

de colar números na veste inconsútil do tempo, o inumerável,

o vazio-repleto, o infinito onde seres e coisas

nascem, renascem, embaralham-se, trocam-se,

com intervalos de sono maior, a que, sem precisão científica, chamamos de morte.

Mas bem que gostavas de fazer anos, lembras-te?

de tirar retrato, de beijar moçoilas flóreas, de rir

um riso que filtrava todas as salsugens da experiência e do desencanto,

e não era ácido, era indulgente/infantil, era sumo da suma:

como pesa a alma, como é leve o corpo,

mesmo visitado de mortais micróbios!

 

Sempre respeitei teus silêncios-pigarro

e seus corredores frios.

Parava diante da campainha

sem saber: toco?

surpreendo?

pergunto, de gravador?

Hoje me sobe o desejo

de saber o que fazes, como,

onde:

em que verbo te exprimes, se há verbo?

em que forma de poesia, se há poesia,

versejas?

em que amor te agasalhas, se há amor?

em que deus te instalas, se há deus?

 

Que lado, poeta, é o lado de lá,

não me dirás, em confiança?

Como passas as manhãs,

a cor qual é de teu dia,

como anoiteces? (Perdoa

falar-te em termos horários,

sobre a extradimensão sem relógios.

Vezo terrestre.) Sorris.

Sorriso-tosse,

com reticências. Desisto.

 

É aqui, neste agora, no teu livro

que te encontro:

Manuel, profundamente,

poeta de vastas solidões

desabrochadas em curta, embaladora

(como esquecê-la?) surdinada canção.

 

Manuel canção de câmara, Manuel

canção de quarto e beco,

ritmo de cama e boca

de homem e mulher colados no arrepio

do eterno transitório: traduziste

para nós a tristeza de possuir e de lembrar,

a de não possuir e de lembrar,

a de passar,

mescla do que foi, do que seria,

simultaneamente projetados

na mesma tela branca de episódios

— em nós, vaga, soprada cinza,

em ti, o sopro intenso de poesia.

 

Isto nos deste, verso a verso,

e só depois o soubemos claramente,

na leitura da luz da vida inteira.

Foste nosso poeta, doaste som

de piano e violão e flauta ao sentimento

esparso, convulsivo, dos amantes,

dos doentes, dos fracos, dos meninos,

dos sozinhos, na praça ou sanatório:

Manuel-muitos-irmãos no gesto seco.

 

Novent’anos, será? ou és menino

também e para sempre

agora que viveste a dor da vida

e sorris no mais longe Pernambuco?