ALEGRIA, ENTRE CINZAS

Manhã de quarta-feira.

Santa Luzia e São José chamam as cinzas

em suas igrejas libertas de carnaval.

“Quando jejuardes

— naquele tempo disse Jesus a seus discípulos —

não vos entristeçais como os hipócritas…”

Por isso, das cinzas ainda quentes

do carnaval levantam-se os carnavalescos

e voltam ao trivial pressaboreando

a festa do ano próximo — alaúza!

 

Milhares e milhares e milhares

de passistas sambistas bateristas,

servidores de um rei que pula e não castiga,

tiram a pestana suficiente

para emendar a festa com o batente.

Pequeno Luís Rei de França do Salgueiro

despe a magnificência, pede a bênção

ao pai, bombeiro hidráulico, na oficina.

Meio-dia.

Clóvis Bornay bate o ponto no Museu.

Volta ao circo o elefante imperial

que transportava Dona Santa do Maracatu.

Volta o Municipal amarfanhado

ao seu silêncio de ópera sem partitura.

Volta a grama a crescer, ou custa um pouco

nos jardins massacrados? Por milagre

voltam os galhos verdes decepados,

para junto dos troncos, ou não mais

estes oitis serão como eram antes?

 

Que mortes vegetais o grão desfile

foi lavrando no corpo da cidade?

Que atropelos, atrasos, prejuízos

dançaram de ciranda-confusão,

para que açafatas e marqueses

surrealistas de uma noite

deslumbrassem turistas-privilégio

em arquibancadas equipadas

com sanitários fiberglass

que em lugar nenhum outro aos joões-brandões

atendem no momento de aflição?

 

Cinzas,

pó de penitência. Será mesmo?

penitência de quê — do não brincado

ou de folgança programada

a que falta a cedilha do espontâneo?

Dói a cabeça, a dor circula

o corpo inteiro, doendo em parafuso,

em looping, xadrez, diagonal.

Mas a última célula da memória

registra ainda o ranger de babilônias

em rouco marulhar de som e selva:

cataratas humanas de Iguaçu,

pavões, califas de Bagdá e Realengo

desfilam entre rainhas gaditanas

com torres de marfim no cocuruto,

pescadores portam jacarés

personalizados como cheques,

homens de Neandertal voltam à origem

e, emergindo do mar de plástico e sarrafos,

Iemanjá Dandalunda Janaína

crioula cor de prata

rabeia com tiques de sereia

perto do cartorial Palácio da Justiça.

Ou foi tudo pesadelo

de três-quatro noites mal curtidas?

 

Cinza, cinza redentora

de todos os pecados contra o gosto

cometidos e a cometer em nome da alegria

(essa senhora tão ausente

dos programas alegres).

Ainda de pareôs, sarongs, camisetas

suados de pular, hoje caídos

no chão cinza do quarto

ressonam meus irmãos.

Que bocejo de festa cansadeira

no bustiê de lenço drapejado.

Lamê enlameado na sarjeta.

Strass.

Stress.

Liza Minelli passou entre passistas?

Frank Sinatra não veio, como sempre.

O mundo-melhor de Pixinguinha

e o mundo-melhor dos utopistas

dissolvem-se na mesma inconclusão.

De qualquer modo, irmãos, amigos meus,

ouçamos a palavra que em Mateus

(VI-16) está gravada:

“Não vos entristeçais como os hipócritas…”

Há sempre uma promessa de alegria.