Nunca imaginei que meu nome fosse lembrado para falar sobre Joaquim Nabuco na casa que foi sua na época da fundação. Começo por me desculpar: afastado da vida acadêmica pelos acidentes de um percurso político atribulado, é uma ousadia fazer na Academia Brasileira de Letras uma conferência sobre Nabuco para celebrar o centenário de sua morte. No tormento angustioso da responsabilidade de falar sobre o homenageado procurei ler e reler o que pude, escrito por ele ou sobre ele. Entre os muitos textos voltei a algumas de suas conferências e quase desisti da ousadia de aceitar fazer esta conferência. Com que cuidado Nabuco preparava suas falas! Que fossem no Parlamento, nos comícios da campanha abolicionista e, sobretudo, nas universidades, de sua pena ou de sua voz saíam obras literariamente perfeitas. Mais do que isso: o raciocínio fluía cartesianamente, envolto na beleza das palavras bem escolhidas, com uma lógica que convencia e com uma maneira de escrever e dizer que seduzia. Na conferência que fez na Universidade Yale, sobre Camões,1 em texto escrito em inglês, chegou a entremear a aula com a declamação de trechos dos Lusíadas. À erudição, Nabuco acrescentava, a intervalos, a voz de jovem aluno americano, para melhor pronunciar os versos que ele próprio vertera para o inglês com perfeição. Tal proeza, para quem acreditava ter o espírito mais afim com a cultura francesa, mostra não só um domínio linguístico e literário incrível como o apuro no que é importante em qualquer oratória: o jogo de cena, do espaço, dos intervalos e dos silêncios.
Dirijo-lhes a palavra, não obstante, motivado por um misto de vaidade — a de ser ouvido nesta Casa — e de admiração por Nabuco. Ainda aluno na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da usp tive a oportunidade de trabalhar com Florestan Fernandes e Roger Bastide numa pesquisa sobre os negros em São Paulo, antes de haver sido assistente desses dois mestres. Na ocasião, li O abolicionismo2 e me tornei imediatamente entusiasta de Nabuco. Para nós, jovens sociólogos ansiosos por transformar o mundo e para lutar por um Brasil mais igualitário, o capítulo sobre “O mandato da raça negra” terá sido algo equivalente, se me permitem a pretensão em comparar, ao que foi Renan3 para Nabuco e tantos contemporâneos. Era nossa inspiração, com a diferença de que Nabuco não nos incutia a dúvida, o ceticismo, como Renan, mas certezas. Só podíamos concordar com sua previsão de que o manto negro da escravidão obscureceria o Brasil por décadas para além do dia da Abolição, como verificávamos em nossas pesquisas sobre os negros e sobre o preconceito de cor nos anos 1950, tanto tempo depois da Lei Áurea. Nutria-nos não o ceticismo, mas a confiança de que os efeitos negativos da escravidão na sociedade seriam mitigados no decorrer do tempo, como acreditava Nabuco. Ele depositava esperança no futuro, como nós também.
cidadania e raça
A ideia do “mandato” recebido pelos abolicionistas como uma delegação irrenunciável é expressiva da visão política de Joaquim Nabuco. Não terá sido por generosidade ou compaixão, nem mesmo religiosa, diz ele, que os advogados da causa emancipacionista a abraçaram. Abraçavam-na,
como homens políticos, por motivos políticos, e assim representamos os escravos e os ingênuos na qualidade de Brasileiros que julgam o seu título de cidadão diminuído, enquanto houver Brasileiros escravos, isto é, [abraçavam-na] no interesse de todo o país e no nosso próprio interesse.4
Nabuco concebia a luta contra a escravidão como uma luta pela cidadania. Junto com esta concepção havia outra muito forte, a de que, além da injustiça praticada contra o escravo-mártir, a emancipação significaria “a eliminação simultânea dos dois tipos contrários, e no fundo os mesmos: o escravo e o senhor”.5
Como quase todos os que se ocuparam de sua biografia sublinham, embora Nabuco fosse rebento excelso da aristocracia (que, no caso, era mais uma oligarquia burocrática) e tivesse gosto pelo estilo de vida próprio desta camada, seu espírito corria solto, como se exemplificasse o que Karl Mannheim, que, por certo, não negava a importância e o papel das classes e de suas lutas na história, acreditava ser o específico da intelectualidade: a capacidade de olhar o conjunto, apesar de sua condição de classe.
Ao ressaltar que a motivação para terminar com a escravatura não nascera de uma compaixão religiosa, Nabuco retomou a linha que fora desenvolvida por José Bonifácio. A leitura da famosa “Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura”, de 1823, mostra que o nosso Patriarca foi ancestral intelectual direto de Nabuco. Vai até mais longe do que prescrever os pormenores sobre o que fazer com os ex-escravos depois de sua libertação e como fazê-lo. Vêm de José Bonifácio também as preocupações com a educação moral e religiosa dos manumitidos, com o dar-lhes acesso à terra para trabalharem. A obsessão de José Bonifácio em abolir a escravidão estava diretamente ligada ao que a análise aguda e erudita de José Murilo de Carvalho,6 em seus Pontos e bordados, chama de “a razão nacional”. Não era outro o projeto político de Nabuco: como formar a nação, se ela está sendo carcomida pela degradação da escravidão? E, acrescenta José Murilo, em circunstâncias que, diferentemente do que ocorria nos Estados Unidos, nossa forma de vivenciar o preconceito contra o negro permitia a miscigenação racial e esta conduzia inevitavelmente à miscigenação política. Ou nos recuperávamos todos para a cidadania ou o projeto nacional continuaria capenga.
José Murilo de Carvalho acredita que nem sequer a influência da vertente filosófica teve entre nós o peso que teve em outras paragens. É certo que Joaquim Nabuco, como tantos de seus estudiosos mostram — e ele mesmo em seus escritos —, foi familiar com o pensamento político francês, norte-americano e inglês. No livro de Marco Aurélio Nogueira,7 O encontro de Joaquim Nabuco com a política, obra que vai além da biografia e analisa as ideias do personagem, há amplas referências às origens do liberalismo de Nabuco (bem como a suas limitações). Do mesmo modo, Vamireh Chacon8 em seu Joaquim Nabuco: revolucionário conservador resume a enredada teia de pensamentos político-filosóficos prevalecentes na época que eram de conhecimento de Nabuco, incluídos nela muitos dos autores que desenvolveram as ideias básicas da democracia, do liberalismo e mesmo do individualismo, quando não da pugna entre rousseaunianos e discípulos de Montesquieu. Tem razão José Murilo de Carvalho, contudo, ao insistir que a ideia de liberdade e a noção filosófica dos direitos naturais do indivíduo não aparecem como fundamentos da proposta abolicionista de Nabuco. Nesta, a “ternura” humana, por um lado, e o projeto de construção de uma nação, por outro, são mais importantes do que considerações religiosas ou filosóficas: é neste sentido que admite e propugna a integração do escravo como eleitor. Cito José Murilo, para resumir: “Até mesmo em Nabuco a razão nacional obscurece totalmente os argumentos baseados no valor da liberdade como atributo inseparável da moderna concepção do indivíduo, seja na versão religiosa, seja na filosófica”.9
Penso que José Bonifácio foi um pouco mais longe neste ponto. Ele escreveu que a “sociedade civil tem por base primeira a justiça, e por fim principal a felicidade dos homens. Mas que justiça tem um homem para roubar a liberdade de outro homem? E o que é pior, dos filhos deste homem e dos filhos destes filhos?”.10 Diz isso e se contrapõe à tese de que a liberação dos escravos ofenderia o direito de propriedade: a liberdade humana era para ele o valor maior. Ainda assim, tanto em José Bonifácio como em Nabuco, a “liberdade dos antigos”, isto é, de organização política e de preeminência dos valores da vida pública e dos direitos públicos, obscurece as preocupações com a “liberdade dos modernos”, isto é, com os que veem nos direitos inalienáveis do indivíduo o fundamento da democracia. Mais tarde, depois de suas viagens à Inglaterra e aos Estados Unidos, Nabuco descobriu algo dessa nova forma de liberdade, mas não foi a partir dela que fundamentou sua luta pelo abolicionismo.
Ao se ler Um estadista do Império ou mesmo sua correspondência e suas notas soltas, seus pensamentos breves, quem sabe ainda em Minha formação,11 talvez fique a impressão de que Nabuco teria sido o que hoje se chama de um cientista político e dos melhores: era arguto na análise das pessoas e dos interesses, sem se despreocupar das instituições. Entretanto, em O abolicionismo e respingando em muito do que deixou escrito, sem exclusão da análise política, subjaz o observador social. Poderia dizer “o sociólogo”, sem puxar a brasa para minha sardinha? Nabuco não via a política apenas como Maquiavel a apresenta, fruto da ambição, da cobiça, do egoísmo e da vontade de poder dos homens. Nosso homenageado se apaixonava por suas causas e nelas punha não só a razão, mas o coração, não tendo deixado, porém, de analisar sempre a trama das relações sociais que sustentavam as relações de dominação. Não usou argumentos puramente econômicos para defender a substituição do braço escravo pelo braço livre. Não queria apenas terminar com o instrumentum vocalis. Queria incorporar à nacionalidade e à cidadania homens livres, negros e brancos. Tinha visão distinta da sustentada por Maquiavel sobre a política.
Em outros países a motivação para o término da escravidão poderá ter sido diferente, pensava Nabuco. Entre nós, entretanto, desejávamos “a raça negra para elemento permanente da população [...] parte homogênea da sociedade”.12 Mesmo porque: “A raça negra, não é tão pouco para nós uma raça inferior, alheia à comunhão, ou isolada desta, e cujo bem-estar nos afete como o de qualquer tribo indígena maltratada pelos invasores Europeus”.13
A leitura desta última frase poderia induzir-nos a crer que, a despeito da grandiosidade com que Nabuco via a questão da escravidão e mesmo da raça negra, utilizava o conceito de raça, como era habitual então, como uma linha divisória com características específicas que as tornavam desiguais. É o que sugere o tom menos objetivo da última parte da frase ao falar de modo praticamente indiferente dos males que a conquista causava aos “homens das tribos isoladas”. a intenção era, contudo, outra: a de mostrar, uma vez mais, que nós, Brasileiros, com maiúscula como então se grafava, éramos negros, brancos e mestiços. Os negros nos eram próximos, eram parte do nós nacional. Em nosso caso, pregava Nabuco, o ex-escravo tornar-se-ia cidadão, pesaria no voto, deveria ser incorporado à cidadania tornando-se igual aos demais brasileiros perante a lei e os direitos, à medida que progressivamente cessassem os efeitos negativos da escravidão sobre a sociedade. O negro, o ex-escravo, formava parte da nossa sociedade. Os abolicionistas europeus, ao falar da liberação dos escravos, nem se preocupavam com a relação entre alforria e voto.
Daí que Nabuco, como reformista social, se preocupasse com a educação do ex-escravo, com o acesso à terra, propondo uma reforma agrária. A integração plena à sociedade seria um processo longo, tanto mais que a lei eleitoral de 1881 exigia que o eleitor fosse alfabetizado e ampliara os requisitos de renda mínima como condição para obter o direito ao voto. Por isso mesmo era preciso atuar logo, como propunha André Rebouças, não só emancipando os escravos, mas educando os negros.
as recordações da infância e o horror à escravidão
De onde proviria tanta empatia para com uma “raça” que na época mesmo os bem pensantes relutavam em deixar de considerar “inferior”, ainda que subliminarmente? Nosso homenageado já foi tão esquadrinhado por seus biógrafos, desde a filha, Carolina, passando pelo texto deliciosamente bem escrito de Luiz Viana Filho e tantos outros, entre os quais mais recentemente se incluem o perfil feito por Angela Alonso e os sempre interessantes e eruditos prefácios e comentários de Evaldo Cabral de Mello, que resta pouco de novo a contar sobre o ser humano Joaquim Nabuco. Quase tudo dele se tem notícia, desde seus amores e flertes, que foram muitos, sua elegância, sua beleza física — Quincas, o Belo, como foi alcunhado —, seu brilho nos salões, sua voracidade para conhecer os “grandes” da época (na política, na literatura, nas artes), sua dedicação aos amigos, suas rivalidades e generosidades (basta lembrar o episódio tão bem descrito por Luiz Viana no livro sobre Nabuco e Rui Barbosa a respeito da designação deste para a Conferência de Haia), e assim por diante, que não poderia ter escapado a muitos de seus biógrafos a relação humana especial que Nabuco desenvolveu com os escravos. Talvez se desvendem melhor os laços afetivos criados entre ele e os escravos na própria pena do autor, em Minha formação.
As páginas clássicas são as escritas no mais famoso de seus capítulos, sobre “Massangana”. Elas resumem tudo de Nabuco: o que de melhor podia escrever, seu compromisso moral na luta contra a escravidão, seu sentimento terno e humano para com os escravos que o circundavam, seu íntimo atormentado de senhorzinho que se sente acorrentado como escravo a uma ordem injusta que, não obstante, molda-o. Moldou-o tanto a ponto de escrever, quase ao estilo de Gilberto Freyre, que nas antigas propriedades os senhores foram capazes de absorver a doçura dos negros e as demais virtudes míticas atribuídas aos africanos. Tão longe se deixou embalar neste misto de reflexão e memórias sentimentais que, a despeito da aguda observação de que, no fundo, senhores e escravos se tornavam “os mesmos” pela relação cruel da escravidão, conseguiu olhar para este fato com o espelho reverso: os escravos contaminaram os senhores com amor, quase os absolvendo de suas culpas porque alguns deles se tornaram capazes de manter relações de afeto com os oprimidos, como se não fossem algozes.
Diz mesmo que a escravidão
espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade [...] insuflou-lhe uma alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte. [...] Quanto a mim, absorvi-a no leite preto que me amamentou; ela envolveu-me como uma carícia muda toda a minha infância; aspirei-a da dedicação de velhos servidores que me reputavam herdeiro presuntivo do pequeno domínio de que faziam parte... Entre mim e eles deve ter se dado uma troca contínua de simpatia, de que resultou a terna e reconhecida simpatia que vim a ter pelo seu papel.14
Curiosas reflexões partindo de quem foi o maior crítico da escravidão, a ponto de minimizar em suas análises institucionais as formas de governo e olhar como essencial o sistema de dominação: a verdadeira questão no final do século xix não teria sido a opção entre República e Monarquia, mas entre Escravatura e Abolição. Esquecera-se em seu entusiasmo pela causa abolicionista de que sem escravidão não haveria Trono, tão amalgamadas estavam as duas instituições como luminosamente mostrou o outro grande intérprete do século xix e especialmente da Monarquia, Sérgio Buarque de Holanda. Nabuco não para nos comentários acima transcritos. Vai mais longe e mostra ter alguma consciência do que lhe sucedera intimamente:
Nessa escravidão da infância não posso pensar sem um pesar involuntário... Tal qual o pressenti em torno de mim, ela conserva-se em minha recordação como um jugo suave, orgulho exterior do senhor, mas também orgulho íntimo do escravo, alguma coisa parecida com a dedicação do animal que nunca se altera, porque o fenômeno da desigualdade não pode penetrar nela.15
No mesmo parágrafo faz a ressalva de que tal tipo de relacionamento (ele fala mesmo numa espécie particular de escravidão) se teria dado apenas em propriedades muito antigas, nas quais se formaria uma espécie de tribo patriarcal isolada do mundo, onde poderia vicejar “o mesmo espírito de humanidade”.
Não reproduzo estes trechos para diminuir a grandeza de Nabuco. O momento e o local não seriam apropriados para exercícios vulgares de iconoclastia. Reproduzo-os tentando vislumbrar uma fresta ainda não completamente percebida pelos tantos que se dedicaram à sua biografia. Quem sabe pela fresta aberta por um texto menos importante possamos chegar à alma de nosso homenageado, ampliando o foco que ilumina o quanto a escravidão o tocou como pessoa. Quem sabe, pela imersão sentimental inevitável e inconsciente que cada um de nós faz na infância para dela retirar no decorrer da vida o que de melhor (e de pior também) construímos, seja possível entender com mais profundidade a relação que Nabuco estabeleceu com os escravos e com a escravidão. Isso, sem esquecer que a boa psicanálise sublinha que as pessoas se reconstroem no decorrer da vida, podendo eventualmente chegar a realizar, como escrevia Maquiavel sobre o Príncipe, “grandes feitos”. Os sentimentos, as inclinações, os traços psicológicos que desabrocham na infância, não são como flores que fenecem esmaecendo mas sem modificar sua essência. Os seres humanos se modificam, se refazem e, deixando no recôndito da alma as primeiras experiências, mesmo que elas os tenham levado a se conceber de uma certa maneira, podem acabar por atuar de outra. E, nos casos mais exitosos, alcançar grandeza, como Joaquim Nabuco alcançou.
um mergulho no íntimo
Em requintado ensaio sobre “Acaso, destino, memória”, publicado no livro Rumor na escuta, o psicanalista paulista Luiz Meyer16 retomou os textos famosos de “Massangana” e tratou de desvendar as relações entre Nabuco e sua madrinha, por quem foi criado até aos oito anos de idade. Ao retornar a Massangana, doze anos depois, encontrou um engenho que pouco tinha a ver com aquele em que havia vivido. No reencontro sentimental com seu mundo infantil, Nabuco descreve o falecimento da protetora, os escravos a seu serviço e os do engenho, a volta à família no Rio etc. No início do capítulo, escrevera:
O traço todo da vida é para muitos um desenho da criança esquecido pelo homem, mas ao qual ele terá sempre que se cingir sem o saber [...]. Os primeiros oito anos da vida foram assim, em certo sentido, os de minha formação instintiva ou moral, definitiva... [...] só eles conservam a nossa primeira sensibilidade apagada... Eles são, por assim dizer, as cordas soltas, mas ainda vibrantes, de um instrumento que não existe mais em nós [...]. Meus moldes de ideias e sentimentos datam quase todos desta época.17
Diante de tão luminoso insight, o psicanalista afirma que Nabuco foi freudiano, avant la lettre, antes que se desenvolvesse a psicanálise, o que não é pouco dizer. A crer que “o traço todo da vida” provém da experiência infantil, tomando-se ao pé da letra a memória de Nabuco, pergunto: de que experiência proviria o âmago de seu sentimento com relação às questões que nos preocupam? De um momento dramático, diz ele, quando um negro jovem se jogou a seus pés e suplicou proteção provocando sua compaixão e revolta pela descoberta do ultraje que era a escravidão. O fato dotara-o de força moral para lutar até o fim pela extinção de tão perversa instituição:
Eu estava uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa, quando vejo precipitar-se para mim um jovem negro desconhecido, de cerca de dezoito anos, o qual se abraça aos meus pés suplicando-me pelo amor de Deus que o fizesse comprar por minha madrinha para me servir. Ele vinha das vizinhanças, procurando mudar de senhor porque o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha fugido com risco de vida... Foi este o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava.18
Tão forte teria sido a experiência que logo em seguida Nabuco escreve frase desconcertante, dizendo que a extinção da escravidão o fez sentir que “podia pedir também minha própria alforria [...] e, no entanto, hoje que ela está extinta, experimento uma singular nostalgia, que muito espantaria um Garrison ou um John Brown: a saudade do escravo”.19
Para o sociólogo e mesmo para o historiador, a súbita sensação de opressão e desfazimento da pessoa humana pelo utilitarismo da escravidão seria razão mais do que suficiente para explicar o que convencera Nabuco do horror que era a escravidão, como ele próprio afirma, ao encontrar na súplica daquele escravo, gravada nas folhas perdidas da infância, os motivos que o levaram a combater tão fortemente a iniquidade da escravidão. O olhar treinado do psicanalista, entretanto, duvida de que a memória seja a transcrição literal das sensações do passado. Freud escrevera: “Nossas memórias de infância nos mostram nossos anos iniciais não como eles foram, mas como pareceram em períodos posteriores, quando as memórias foram despertadas [...], [elas] não emergem, como as pessoas costumam dizer, elas são formadas neste momento”.20 E mais, na técnica analítica, a recordação pode ser encobridora de outra experiência emocional, pode ser substitutiva, pode ter havido uma transferência de fragmentos de memória não necessariamente conectados uns aos outros ou pode mesmo haver uma reconstituição no presente das recordações do passado.
Neste passo Luiz Meyer retoma os textos de Nabuco quando, no mesmo capítulo, recordando-se de suas sensações ao voltar a Massangana, diz: “A noite da morte de minha madrinha é a cortina preta que separa do resto de minha vida a cena de minha infância”. Descreve a lamentação de todos. Escravos, libertos, moradores, para dizer que “era uma cena de naufrágio; todo este pequeno mundo, tal qual se havia formado durante duas ou três gerações em torno daquele centro, não existia mais depois dela: seu último suspiro o tinha feito quebrar-se em pedaços”.21
Em seguida, diante do que aconteceria com os escravos, proclama: “a mudança de senhor era o que mais terrível havia na escravidão”. Observação estranha, uma vez que em si a escravidão era terrível como ele próprio a descrevera. E acrescenta, referindo-se a seu próprio sentimento: “O que mais me pesava era ter que me separar dos que tinham protegido minha infância, dos que me serviram com a dedicação que tinham por minha madrinha, e sobretudo entre eles os escravos que literalmente sonhavam pertencer-me depois dela”.22
Ocorre que nem os supostos sonhos dos escravos nem os de Nabuco se realizaram: ele herdou uma casa no Recife e outras terras, de fogo morto, isto é, sem escravos, e Massangana passou, por sucessão, para um sobrinho da proprietária. Não só os escravos “perdiam” sua ama, como Nabuco perdia, no mesmo instante, sua mãe adotiva, que o chamava em carta a seu pai, o conselheiro Nabuco, de “meu filhinho”, bem como perdia o pecúlio que estava sendo acumulado pela madrinha para ele e que jamais chegou a suas mãos. Os servidores antigos, diz, consideravam-no herdeiro presuntivo de tudo, e quem sabe a criança semideserdada, que perdera aquela que considerava sua “mãe”, também se sentisse presuntivamente um senhor. Não foram só os escravos que pararam em mãos de estranhos: também ele foi viver, aos oito anos, com uma família até então estranha, com todas as dificuldades iniciais de relacionamento com a mãe biológica, como descrevem seus biógrafos.
Este quadro de perdas provavelmente consolidou mais a identificação de Nabuco com os escravos do que a súplica do negro que queria ser comprado por Massangana, e nutriu nele a visão da iniquidade de um sistema de propriedade baseado na escravidão. Era necessária uma alforria mais geral: dos escravos, dos senhores, dos deserdados, dos libertos e dos homens livres, todos imersos no mesmo mundo da escravidão. Assim, a despeito do episódio que Nabuco mencionou como o fator decisivo para dar-lhe força moral na luta pela Abolição, foi sua própria experiência existencial, de perdas sentimentais e materiais, que o fez perceber os horrores da escravidão de modo integral. A partir daí pôde organizar um projeto de vida que, se teve nas experiências seminais da infância um impulso motivador, não se explica só por isso, mas pelos condicionamentos da sociedade, por suas opções e por seu empenho em mudar as coisas. Foram suas reações diante da vida que o tornaram um reformador social, não apenas as experiências de infância, embora essas, tal como guardadas em sua memória, tivessem sido marcantes para a formação de sua personalidade.
Daí por diante a revolta contra tudo que a escravidão representava se instaurara na alma de Joaquim Nabuco. Seu comportamento adulto, mesmo sendo considerado um dândi, quase um estroina (em viagem à Europa logo no início da vida de solteiro, torrou o dinheiro obtido pela venda da pequena herança recebida), sua ambiguidade como homem “entre dois mundos” — tão bem apreciada no ensaio de João Cezar de Castro Rocha sobre Nabuco, como um intelectual entre culturas, em que retoma as interpretações seminais de Silviano Santiago —, nada disso obscurece a dedicação que devotou à libertação dos escravos: dedicou dez preciosos anos à luta abolicionista. Inflamou-se como orador, ganhou e perdeu eleições, imiscuiu-se nos meandros do poder monárquico-patriarcal, mas foi fiel ao sentimento básico de horror à escravidão.
vocação para a política?
Que sentido tem, diante de comportamento tão ativo na vida pública, escarafunchar suas hesitações entre dedicar-se às letras (e o fez com sucesso) e dedicar-se à política? É verdade que, para Nabuco, política, como já disse, sempre foi uma entrega “à causa”. Esta podia variar, do abolicionismo à monarquia, ou mesmo, já maduro e aceitando os “fatos da vida”, à república — que não apreciava —, ou ao pan-americanismo, pelo qual se entusiasmou quando embaixador em Washington. Não o fascinavam o dia a dia dos conchavos, as querelas internas de partido, os controles oligárquicos do poder. Podia deles se beneficiar, mas, atuando como personagem na cena pública, concentrava todo o seu espírito e sua energia na defesa de ideais: “Esse gozo especial do político na luta dos partidos não o conheci; procurei na política o lado moral, imaginei-a uma espécie de cavalaria moderna, a cavalaria andante dos princípios e das reformas; tive nela emoções de tribuna, por vezes de popularidade, mas não passei daí: do limiar”.23
Não foram poucos os críticos que ressaltaram sua “predileção para o estético”, até para o diletantismo. José Veríssimo, em crítica à primeira edição de Minha formação, considerava que “a ocupação da atividade política [de Nabuco] tomará sempre o aspecto de um tema estético e literário, de um exercício intelectual”.24 O próprio Nabuco em vários escritos e correspondências demonstrou sua inaptidão para as rusgas do combate político cotidiano. Já no fim da vida escreveu que “lutas de partidos, meetings populares, sessões agitadas da Câmara, tiradas de oratória, tudo isso me parecia pertencer à idade da cavalaria”.25
Olhando de outra perspectiva, só na aparência Nabuco se distanciara dos sentimentos da juventude que revelavam uma permanente ambiguidade entre a política e o estético. Ao fazer sua primeira viagem à Europa, disse que ela teve o efeito de “suspender durante um ano, inteiramente, a faculdade política que, uma vez suspensa, parada, está quebrada e não volta mais a ser a mola principal do espírito”.26 Em seguida, não obstante, reconhece que: “Apesar de tudo, eu tinha faculdades políticas inapagáveis, que poderiam, quando muito, ficar secundárias, subordinadas à atração puramente intelectual”.27
Disposições secundárias, cinzas no braseiro, mas não extintas. Era só soprar o vento de um ideal, e a velha paixão, embebida toda ela de visão intelectual, reacendia a chama, como já dito, no caso do abolicionismo, na defesa do espírito de moderação, na nostalgia monárquica ou na visão de um Brasil ativo no hemisfério americano. Como se jogou às lutas em momentos especiais que tinham sentido mais profundo do que as querelas do poder pelo poder, diz ele, “não trouxe da política nenhuma decepção, nenhum amargor, nenhum ressentimento”.28
Vendo no pai o suprassumo das virtudes do estadista, resumiu, depois de escrito seu grande livro, no que consistem elas: “Essa era a sua qualidade principal de político: adaptar os meios aos fins e não deixar periclitar o interesse social maior por causa de uma doutrina ou de uma aspiração”.29 Ou seja, a política requer, ao mesmo tempo, um ideal que subordine os meios utilizados para alcançá-lo e um realismo que coloque “o interesse social maior” como salvaguarda diante dos fundamentalismos, os quais o horrorizavam. A boa política, para Nabuco, seria sempre incompatível com o fanatismo, isto é, com a intolerância, qualquer que fosse.
Nabuco foi, sim, político a vida toda, no modo particular como concebia a ação política, como uma ação que liga o poder ao espírito por intermédio dos ideais propostos. Esteticamente, concedamos o qualificativo, é verdade, se apresentava à cena das lutas empunhando floretes, mais do que armas de gladiadores.
ambiguidades de nabuco
Poderá alguém ter sido tão radicalmente abolicionista, ter pregado a igualdade de todos perante a lei e ao mesmo tempo ter mantido conduta inegavelmente “aristocratizante” e ter sido monarquista, dirão alguns de seus críticos? Isso, que talvez mostre inconsequências e ambiguidades ideológicas e comportamentais, no fundo é o drama humano do intelectual que participa da política, se entrega a ela em dados momentos, mas não quer perder seus valores nem se deixar engolfar em posições que possam ser contrárias ao interesse social maior. No caso de Nabuco, o que mais diretamente contava em seu espírito — seu interesse social maior — eram seus sentimentos democráticos, transparentes na luta contra a escravidão, menos claros em outros momentos da vida.
Quem sabe se antevendo a crítica futura, Nabuco deixou registrado em seus Pensamentos soltos que “não é possível exprimir senão lados do pensamento, o pensamento, em seu conjunto, retira-se, mal percebe que o querem prender”.30 Horrorizava-o, portanto, um enfoque totalizador do pensamento, de todo o pensamento, quanto mais no caso do pensamento político. Repudiava uma visão que tornasse unívoca a relação entre o modo de viver e o fazer da política. Talvez antevisse nisso germens do que veio a ser o totalitarismo moderno, no qual o partido regula a ação da pessoa em toda parte, no trabalho, na vida, no lazer.
Nabuco exerceu ampla influência nos movimentos e círculos de poder de sua época e continua a exercer. Na evolução de suas crenças, Nabuco foi primeiro republicano, à sua maneira, depois monárquico, o que não o impediu de servir ao governo Campos Sales. Oportunismo ou devoção a “causas maiores”? Quem sabe se desde as experiências de infância — quando se sentia “senhorzinho” e abominou a escravidão — o que alguns chamariam de contradições e outros de condição humana já permeassem a vida de nosso homenageado? Viveu sempre envolvido por dilemas, que não eram psicológicos apenas, nem de incoerência pessoal, mas decorriam da trama social em que estava envolto. Ainda assim, Nabuco teria podido sustentar sinceramente valores “democráticos” a ponto de considerar os negros como iguais e desejar dar-lhes voz na vida nacional?
Se cabe algum paralelo para entender Joaquim Nabuco, é com Tocqueville. Este, nobre de antiga cepa, aristocrata dos autênticos, quando as hierarquias e privilégios se prendiam à posse da terra e ao controle dos homens por intermédio das mais distintas instituições, da corveia a outras formas de sujeição, também se surpreendeu e fascinou com a América democrática. Mais tarde destrinchou as causas da decadência do Antigo Regime, mostrando que, além do jacobinismo e dos ideais libertários e igualitários da Revolução de 1789, houve o cupim da burocracia centralizadora do rei minando o poder da antiga classe dirigente, a aristocracia. Quem sabe para Nabuco não teriam sido os cafeicultores capitalistas, alguns deles proprietários de escravos, que impediram que a Monarquia se mantivesse vigente, apesar da Abolição, como gostaria que tivesse ocorrido. Com uma diferença: famoso por seus livros sobre A democracia na América31 e sobre O Antigo Regime e a Revolução, Tocqueville era entranhadamente um conservador e subsidiariamente um liberal, enquanto Nabuco era mais de estilo liberal-conservador, ainda que tivesse escrito em suas memórias, referindo-se à fase inicial de sua vida, que não havia nada nele que pudesse tisnar seu liberalismo com traços de tradicionalismo.
Não passaram desapercebidas a alguns dos comentadores das ideias de Joaquim Nabuco as coincidências entre os dois autores, um falando sobre a primeira metade do século xix, outro, sobre a segunda e sobre os primórdios do século xx. É no livro de Vamireh Chacon sobre Joaquim Nabuco: revolucionário conservador que se encontram referências comparativas mais explícitas entre os dois pensadores. Embora reconhecendo que Nabuco não se refere a Tocqueville em Minha formação e o faz apenas quando biografa seu pai, o autor está convencido de que houve um diálogo intelectual direto entre os dois. Fernand Braudel, prefaciando outro livro de Tocqueville, Lembranças de 1848,32 diz que “a política interessa bem menos a Tocqueville do que a sociedade, sociedade que em seu conjunto ele percebe como uma realidade subjacente à realidade política, como fundamento da vida política”. Tocqueville lamenta que, depois da restauração monárquica dos Bourbon, tenha ocorrido o “triunfo da classe média” (da burguesia) graças à Revolução de 1830, que levou ao trono Luís Filipe, príncipe do ramo dos Orléans, quer dizer, descendente do irmão de Luís xiv e não diretamente de Luís xviii, derrubado precisamente em 1830. Diz que lamenta tal triunfo porque a nova classe dominante tinha um espírito ativo, industrioso e “frequentemente desonesto”. A Revolução de 1848, que, por sua vez, destituiu Luís Filipe, decorreu não só desses vícios que derivavam dos “instintos naturais da classe dominante”, mas do fato de que o rei reforçou tais vícios e se tornou no “acidente” que os transformou em enfermidade mortal. Por trás da crítica sociológica à dominação da burguesia e à indulgência do rei, surge o aristocrata arraigado à antiga ordem, a despeito de ser o visionário da nova. Os abusos e irresponsabilidades da aristocracia e, agora, da burguesia, sua falência como classe dirigente, fazem nosso autor sentir saudades da... Inglaterra. Esta, diz ele, “é o único país do mundo onde a aristocracia continua a governar”.
E não foi também a Inglaterra com sua Constituição não escrita que confirmou a inclinação de Nabuco pela monarquia? Mas há importantes diferenças de nuances entre Tocqueville e Nabuco. Por mais que o pendor tradicionalista deste último o levasse à paixão monárquica, ao tomar a Inglaterra como exemplo não se entusiasma, como Tocqueville, pela permanência da aristocracia no poder, mas pela função igualadora do Judiciário inglês. Justifica o ter deixado o ideal republicano de juventude pela descoberta, na maturidade, de que havia nele, mesmo quando sincero, muito de ressentimento das posições alheias, de inveja, de cujos sentimentos parte também o impulso revolucionário, que nunca o entusiasmou. Foi o contágio com o espírito inglês, diz ele, que o levou a identificar-se com a monarquia. Entretanto, enquanto Tocqueville apreciava a dominação aristocrática, Nabuco achava que “só há, inabalável e permanente, um grande país livre no mundo”, a Inglaterra. Nela o que lhe deixou a mais funda impressão não foi a aristocracia, mas a autoridade dos juízes, além da efetividade da Câmara dos Comuns, sensível às mais ligeiras oscilações do sentimento público.
Dirá em Minha formação:
Somente na Inglaterra, pode-se dizer que há juízes [...] só há um país no mundo em que o juiz é mais forte do que os poderosos. O juiz sobreleva à família, à aristocracia, ao dinheiro, e, o que é mais que tudo, aos partidos, à imprensa, à opinião; não tem o primeiro lugar no estado, mas tem-no na sociedade. [...] O marquês de Salisbury e o duque de Westminster estão certos que diante do juiz são iguais ao mais humilde de sua criadagem [...]. O sentimento de igualdade de direitos, ou de pessoa, na mais extrema desigualdade de fortuna e condição, é o fundo da dignidade anglo-saxônia.33
tocqueville e nabuco: conservadores?
Um verdadeiro conservador, Tocqueville, pelo contrário, explicitava ostensiva, orgulhosamente, seu antijacobinismo, antirrepublicanismo, mesmo antiorleanismo (pois era mais simpático aos legitimistas) e era contrário à impostura de Napoleão iii. Nada disso o impediu, eleito deputado em 1848, de observar com isenção o que vivenciou no período revolucionário de 1848 pelas ruas de Paris e de tomar posições críticas diante da monarquia. Nem tampouco de servir à república, depois da queda de Luís Filipe e da derrota dos setores radicais responsáveis pela revolta de fevereiro de 1848, pouco a pouco expulsos da cena pública, como Marx mostra melhor do que ninguém no 18 de Brumário, análise brilhante que mereceria uma comparação cuidadosa com o livro de Tocqueville sobre os mesmos acontecimentos. Os legitimistas tinham contra eles a antipatia da maioria do país e o desprezo do povo, enquanto os orleanistas despertavam a hostilidade nas próprias classes superiores e no clero, além de estarem separados do povo e de nada haver para garantir o triunfo desta dinastia. O ódio que os três partidos (os legitimistas, os orleanistas e os republicanos) nutriam entre si e a impossibilidade de formar-se uma maioria levaram Tocqueville a apoiar a república após o levante de 1848, dizendo, não obstante, que: “Não acreditava então, como não acredito hoje, que o governo republicano fosse o mais apropriado às necessidades da França; para falar com exatidão, o que eu entendo por governo republicano é o poder executivo eletivo”.34
Havia um consolo, porém, para o autor: a nova forma de governo seria exercida por quem “estava preparado para ocupar o lugar da república, porque já tinha o poder”,35 Luís Napoleão. O voto universal, acreditava ele, remexeria o país de cima a baixo, “sem trazer à luz qualquer homem novo que merecesse distinção”.36 Às assembleias chegam em geral os “homens comuns” e um pequeno grupo dos mais capazes, os quais, de qualquer maneira, com ou sem voto universal, teriam assento na mesa das decisões. O que contava para Tocqueville era que: “não são as leis em si mesmas que fazem o destino dos povos” ou que produzem os grandes acontecimentos, mas sim “o espírito do governo”. Para ele a antiga aristocracia francesa era mais esclarecida do que a nova classe média, a burguesia, era mais bem dotada de esprit de corps. Lamenta que a aristocracia tivesse acabado por achar “que era de bom gosto censurar suas próprias prerrogativas e clamar contra os abusos dos quais vivia”. Quando esta classe perdeu a virtude, que corresponderia a governar visando ao interesse de todos, abriu espaço para a nova classe dominante, que, por sua vez, se chafurdou na corrupção e nos negócios... Foi isso que justificou a escolha de Tocqueville: melhor que Luís Napoleão “ocupe o lugar” da república do que ter uma verdadeira república com soberania popular. Tocqueville temia a revolução, “um combate de classe”, escreveu, “uma espécie de guerra servil”,37 que, mais do que alterar a forma de governo, queria alterar a ordem da sociedade. Esta, na visão de um autêntico conservador, deveria ser preservada, ainda que por subterfúgios, golpes de Estado e simulacros de inovação na forma de governo.
o sentimento democrático em nabuco
Nabuco, apesar de suas contradições, de ter sentimentos íntimos presos às tradições e a despeito de seu liberalismo não ter sido tão completo como ele pensava, não foi apenas abolicionista, mas tinha de fato uma visão democrática da sociedade. Tocqueville, sendo um aristocrata assumido, era, neste aspecto, o intelectual distante que, embora compreendendo os novos tempos, pouca simpatia demonstrava pelos atores que surgiam. Nabuco, sendo um membro da elite imperial não completamente integrado nela, mais facilmente se identificou com os novos atores que estavam surgindo — os negros-cidadãos — e que deveriam ter peso na formação da nacionalidade.
Tocqueville se apercebeu das mudanças que se avizinhavam com o advento da “era americana”, nos costumes, na economia e na política, ao haver escrito sobre elas décadas antes e mesmo com maior profundidade e menos nostalgia do que Nabuco. Não podia nutrir nostalgia porque continuava a sentir-se muito bem no papel de aristocrata que entendia o processo social, mas tudo fazia para que as forças novas não perturbassem o equilíbrio tradicional das coisas. Analisou como ninguém o porquê da democracia na América (o “espírito de liberdade”, que permitia a associação das pessoas para realizar fins coletivos independentemente da autoridade, a religiosidade agregadora dos protestantes, a força das comunidades locais e ainda a liberdade de imprensa). Em seu íntimo, contudo, nunca deixou de ser um homem “do antigo regime”. Via na democracia de massas o perigo do autoritarismo, a igualdade induziria a uma forma de tirania. Já Nabuco se irmanou intimamente com o negro e se tornou simpático às características democráticas da nova sociedade, embora nunca tenha aceitado as formas republicanas no Brasil e tivesse confundido o “poder pessoal” do imperador, tão duramente criticado por Sérgio Buarque, com uma forma branda de exercer o Poder Moderador e de provocar a alternância democrática. Deixou que o lado tradicionalista de sua alma o impedisse de ver a inconsistência que havia em ser tão radicalmente abolicionista, tão favorável à integração do negro na cidadania, e venerar a monarquia.
Se a visão política de Joaquim Nabuco não chegou a ser a de um revolucionário propriamente dito, embora conservador (como no título da obra citada acima, ideia extraída de Gilberto Freyre), ele foi muito mais do que simplesmente um saudosista ou um conservador. Em Tocqueville se vê, a despeito de sua criatividade intelectual, no que consiste um verdadeiro conservador: compreende o sinal dos tempos mas não se comove com eles; aceita-os sem adesão emocional e, se possível, luta contra as mudanças. Pode-se concordar com o comentário de Marco Aurélio Nogueira que, em seu O encontro de Joaquim Nabuco com a política, sublinha as dificuldades para sustentar o liberalismo no Brasil, como Nabuco fez. Num país escravocrata não haveria sujeitos sociais que apoiassem ideias liberais. A despeito de nosso liberalismo ser fruto de um feixe de “ideias fora do lugar”, o autor mostra que ele acabou por se ajustar às realidades, ficando por isso mesmo incompleto ou deformado. Sem negar o que de certo há no argumento, não há que exagerá-lo. Marco Aurélio Nogueira faz justiça a Nabuco, mas vai um tanto longe ao qualificar o liberalismo do Império: “Liberalismo conservador, elitista e antipopular, tingido de autoritarismo, antidemocrático e sem heroísmo”.38
Que havia algo disso, é inegável, mais ainda na conduta dos partidos. Nem nego que se possa caracterizar Nabuco como liberal-conservador, o que, aliás, venho fazendo. Mas basta compará-lo com um verdadeiro conservador, como Tocqueville, para ver as diferenças. Seu liberalismo não deve ser visto apenas como fruto da absorção de ideias fora do lugar, nem de um vezo retórico ou como expressão da “cultura ornamental” de intelectuais que se sentiam entre dois mundos. Suas convicções políticas derivaram de suas observações na Inglaterra e nos Estados Unidos e também de sua preocupação com o “formar a nação” sem simplesmente copiar as instituições de outros países. Mesmo porque, advertira Nabuco, o maior erro que se pode cometer em política é copiar, numa dada sociedade, instituições que cresceram em outra.
o olhar do exterior
Vejamos um pouco mais no pormenor como Nabuco apreciou a experiência europeia e a norte-americana. Durante a primeira viagem à França, depois da queda de Napoleão iii, ainda se travavam lutas para a consolidação da Terceira República. Nabuco diz com todas as letras: “Eu era como político francamente thierista, isto é, em França de fato republicano. Isto não quer dizer, porém, que me sentisse republicano de princípio; pelo contrário”,39 e passa a justificar sua posição dizendo, como dissera Tocqueville, que a República fora obra de monarquistas. A forma de governo não era uma questão teórica, mas prática. Com isso Nabuco justificava ser monarquista nas condições do Brasil e republicano na França.
Convém aclarar um pouco mais, portanto, no que consistiam as ambiguidades do sentimento republicano do Nabuco-francês, que tanto confundiu analistas de sua obra: “De sentimento, de temperamento, de razão, eu era tão exaltado partidário de Thiers como qualquer republicano francês; pela imaginação histórica e estética era porém legitimista”.40 E explica: “perante o artista imperfeito e incompleto que há em mim, a figura do conde de Chambord reduzia a de Thiers a proporções moralmente insignificantes”.
Essa dualidade, francamente reconhecida por ele, não atingia seus valores políticos, nem mesmo suas preferências quanto à questão — prática — das formas de governo. A ambiguidade se restringia a que seu íntimo, seu lado estético, era conservador. Já o lado público, político, não era tanto. Repugnava-o toda forma de fanatismo e foi nisso que apoiou a obra de Thiers, como Tocqueville apoiara a República que se seguiu à Monarquia de Julho: ambas destruíram os germens de intolerância e fanatismo republicanos que vinham desde os tempos jacobinos. De novo, Nabuco era, sim, liberal, sim, apoiava correntes que os verdadeiros conservadores abominavam, roçou o ser democrático. Seu republicanismo francês, por sua vez, não se contrapôs nem às “necessidades sociais” nem ao que colhera do espírito inglês em sua formação: a tolerância, a tendência à conciliação. O republicanismo que apoiava era aquele que matava o jacobinismo, como ele próprio fez quando se opôs ao “florianismo” no Brasil ou a Balmaceda, no Chile.
Que suas ambiguidades não excluíam pensamentos e sentimentos democráticos, disso não me cabem dúvidas. No mesmo parágrafo em que faz comentário sobre a importância que dava à Justiça inglesa para assegurar a igualdade formal dos cidadãos explica as razões pelas quais não considerava os Estados Unidos o berço da liberdade e sim a Inglaterra:
os Estados Unidos são um grande país, mas há nele, sem falar da sua justiça, da lei de Lynch, que lhe está no sangue, das abstenções em massa da melhor gente, do desconceito em que caiu a política, uma população de 7 milhões, toda raça de cor para a qual a igualdade civil, a proteção da lei, os direitos constitucionais, são contínuas e perigosas ciladas.41
Fez uma crítica substantivamente democrática sobre a base social estreita em que se assentam as instituições e desejava ampliá-la. Inversamente, pergunto eu, não foi nos Estados Unidos que ocorreu a primeira grande revolução democrática, apesar da carência de base social, e não foi lá que surgiram os defensores do individualismo liberal? Não é para surpreender, portanto, que Nabuco, a despeito da base social precária para o liberalismo ou para a democracia no Brasil escravocrata, tenha defendido ideias liberais. Ou, também nos Estados Unidos, as ideias estariam fora de lugar?
Para justificar seu pendor para o sistema monárquico, Nabuco recorreu aos argumentos de Bagehot,42 autor que o influenciou desde a juventude. Entusiasmou-se com o sistema britânico porque nele existe, além da independência do Judiciário, uma fusão e não separação entre os poderes. Assim, tão pronto um movimento da opinião pública se refletisse na Câmara dos Comuns, o Gabinete perderia a confiança da maioria, o Parlamento seria dissolvido e haveria novas eleições. No Brasil, diversamente, era o imperador quem, na suposta escuta da opinião nacional, dissolvia a Câmara, formava o novo gabinete e este manipulava o resultado eleitoral. O sistema inglês permitia manter a monarquia e, também, ouvir o povo nas decisões. Era mais democrático. A monarquia tornara-se simbólica, politicamente neutra, parte da cultura nacional e elemento de agregação do povo. Seria, por assim dizer, “o lado estético do sistema de poder” que agradava ao íntimo artístico de Nabuco. Politicamente, contudo, valorizava as regras democráticas, a Justiça independente e a força dada à voz direta do povo. O sentimento em favor do estilo inglês de governar se reforçou ainda mais com a experiência americana.
Muitas décadas antes de Nabuco escrever sobre os Estados Unidos, Tocqueville havia sublinhado o avanço inexorável do sentimento democrático não só naquele país como na Europa. E alertara: “A igualdade produz efetivamente duas tendências: uma leva os homens diretamente à independência e pode impeli-los à anarquia, e outra os conduz por caminho mais longo, mais secreto, porém mais seguro, à servidão”.43 Se ainda assim Tocqueville se apega à democracia, é porque ela induz ao mesmo tempo à independência política das pessoas, noção obscura e inclinação instintiva, diz ele, que é o remédio para o mal produzido pelo individualismo fomentado pela nova sociedade.
O individualismo é um sentimento que predispõe cada cidadão a isolar-se da massa de seus semelhantes e retirar-se à parte, com a família e os amigos, de tal modo que, após criar dessa maneira uma sociedade para uso próprio, abandona prazerosamente a sociedade a si mesma.44
A maioria deles — dos americanos — acha que o governo age mal; mas todos acham que o governo deve agir sem parar e em tudo pôr a mão.45
Mostrei que a igualdade sugeria aos homens a ideia de um governo único, uniforme e forte.46
Quanto ao modo de vida americano, Tocqueville criticou duramente a transformação do gozo do bem-estar material como apanágio da burguesia — da “classe média”. Reagiu aos efeitos desagregadores da mobilidade social e condenou o sistema político do país a ser vítima do próprio espírito de igualdade. O individualismo, somado às oportunidades crescentes para que todos compartilhassem valores igualitários, levaria ao descaso dos indivíduos por qualquer coisa que não fossem seus interesses e sentimentos mais imediatos. Só não ocorreria a asfixia da sociedade pelo Estado se houvesse uma imprensa livre e muitas associações independentes da autoridade política. A tal ponto ia a preocupação de Tocqueville com os efeitos maléficos desse tipo de cultura no sistema político que chegou a escrever que os americanos “imaginam um poder único, tutelar, onipotente, mas eleito pelos cidadãos. Combinam a centralização com a soberania popular. Isto lhes dá algum sossego. Consolam-se do fato de estarem sob tutela lembrando-se de que escolheram o tutor”.47
Nabuco extrai uma visão diferente da experiência em Nova York e Washington, onde esteve entre 1876 e 1877, quarenta anos depois de Tocqueville ter escrito A democracia na América. Não nega o sentimento de igualdade que lá encontrou e que lhe pareceu superior ao que ocorria na Inglaterra, embora achasse que a liberdade individual que existia era mais restrita, se comparada à que prevalecia na Inglaterra. No sentido da igualdade, escreve, é a Inglaterra quem caminha na direção dos Estados Unidos. Mas, diz ele, é inegável que a democracia, “introduzindo na educação a ideia da mais perfeita igualdade, levanta no homem o sentimento do orgulho próprio”.48 A questão seria saber se as sociedades mais tradicionais, como a inglesa, não produzem “com as limitações de classe uma dignidade pessoal moralmente superior a essa altivez da igualdade”.49 Sem temer o que assustava Tocqueville, o descaso das massas pela política e a onipresença do governo, Nabuco mais temia a altivez orgulhosa dos norte-americanos que excluíam os negros e os “chins” do sentimento de igualdade — estes antes seriam classificados como uma ordem diferente da dos homens — mas também os demais povos: “nunca ninguém convenceria o livre cidadão dos Estados Unidos, como ele se chama, de que seu vizinho do México ou de Cuba, ou os emigrantes analfabetos e os indigentes que ele repele de seus portos, são seus iguais”.50 A característica por excelência do norte-americano “é a convicção de que melhor do que ele não existe ninguém no mundo”.51
Nesse passo se torna curiosa a apreciação conjunta dos dois autores. Tocqueville vê uma sociedade democrática se formando, com todos os perigos políticos que, na visão de um aristocrata, isso poderia acarretar. Nabuco vê risco maior na formação de uma cultura de exclusão, a despeito da igualdade política. Seria a visão que reafirma o “dilema do mazombo”, na saborosa expressão que Evaldo Cabral de Mello retirou de Mário de Andrade? Ou seja, por mais que se atribua a Nabuco um viés europeizante, renascem as raízes miscigenadas e ele, assim como se identificou com os negros, se identifica nos Estados Unidos com os excluídos, com as outras “raças”? Difícil responder. Seja como for, Nabuco também discrepa de Tocqueville na análise do sistema político americano. “Não há vida privada nos Estados Unidos”, diz, referindo-se à invasão da imprensa na vida particular dos políticos. Sua visão da liberdade de imprensa, neste aspecto, é distinta da apresentada pelo marquês: os jornais beiram a chantagem. A luta política não se trava no terreno das ideias, mas no das reputações pessoais. “Com semelhante regime, sujeitos às execuções sumárias da calúnia e aos linchamentos no alto das colunas dos jornais, é natural que evitem a política todos os que se sentem impróprios para o pugilato na praça pública, ou para figurar num big show.”52
Joaquim Nabuco desvenda de outro modo a política americana. O descaso para com ela, o absenteísmo eleitoral, não se deve só à sua forma truculenta, mas a que os melhores, os mais capazes, uma espécie de “aristocracia sem títulos nem pergaminhos de nobreza”, dedicam-se aos negócios e não à vida pública. Nesta prevalece a corrupção consentida pela sociedade. “Os americanos são uma nação que quisera viver sem governo e agradecem aos seus governantes suspeitarem-lhe a intenção.”53 O americano será “o mais livre de todos os homens; como cidadão, porém, não se pode dizer que o seu contrato de sociedade esteja revestido das mesmas garantias que o do inglês, por exemplo”.54
Há uma delegação da coisa pública aos politicians, como os chama Nabuco. Disso resulta que o governo na América seja “uma pura gestão de negócios, que se faz, mal ou bem, honesta ou desonestamente, com a tolerância e o conhecimento do grande capitalista que a delega”.55 A nação se deixa dividir em partidos e, apesar da massa das abstenções, acompanha os maus administradores de seus interesses. Forma-se uma “democracia de partidos”, relativamente isolada da sociedade, a qual, hipocritamente, finge não ver a corrupção e os desmandos, à condição de que os governantes deixem os indivíduos em paz. Em vez de ver na liberdade de imprensa e nas organizações da sociedade civil o contrapeso a tanta delegação, como queria Tocqueville, o freio adviria de que existe virtualmente uma “opinião pública”. Esta, embora seja raro, pode se formar com uma energia incalculável, como um tsunami “que atiraria pelos ares tudo o que lhe resistisse, partidos, legislaturas, congresso, presidente”.56
Menos do que ver, como Tocqueville, o risco maior para a democracia no Estado centralizador, consequência não intencional da igualdade, Nabuco vê, no fundo, a perda de virtù e o que hoje se chamaria a “excepcionalidade americana”, a crença em seu destino manifesto, a arrogância para com os excluídos e talvez para com o mundo.
nabuco depois da república
Não foi esta, não obstante, a visão de Nabuco diplomata e do cosmopolita pensando a política internacional, já na fase final de sua vida. Sobre o tema farei umas poucas observações para finalizar. Não me vou referir ao dilema famoso do intelectual que em sua terra sentia a ausência do mundo e no exterior a ausência do país, nem a suas muitas declarações de apreço à cultura europeia e de certo desdém à nossa história cultural, pobre em comparação com a europeia, tema já debatido por alguns dos comentaristas que citei. Quero concentrar o foco desta parte final em dois tópicos presentes na obra e na ação de Nabuco: a crise do Chile durante a presidência de Balmaceda, no final do século xix, e o modo como encarou o pan-americanismo, quando, já no século xx, foi embaixador em Washington.
O livrinho sobre o presidente chileno, que se suicidou depois de forte crise na disputa de primazia entre o Legislativo e o Executivo em 1891, é interessante sob vários aspectos. Primeiro, por demonstrar a curiosidade intelectual de alguém distante do dia a dia do Chile, mas atento à política sul-americana, a ponto de se envolver com paixão no drama político daquele país. Segundo, pela percepção de que as instituições chilenas e brasileiras, república num caso e, até havia pouco, império noutro, evitaram o caos caudilhesco presente na maior parte da região, mantendo valores relativamente liberais. Muito relativamente, diríamos. Aos olhos de Nabuco, contudo, as formas parlamentares dos dois países haviam sido capazes de coibir os impulsos jacobinos.
Tendo acentuado seu pendor conservador depois da Proclamação da República no Brasil, Nabuco encarou a modernização de Balmaceda — homem devotado ao desenvolvimento econômico, à absorção das ciências e ao papel indutor do Estado — como uma ameaça aos moldes liberal-conservadores. Na revolução chilena foi o Congresso, com apoio da Armada, quem deu um basta ao presidente, tendo este reagido pelo suicídio. Nabuco interpretou a vitória do Parlamento como a preservação do que de melhor podia ser feito para assegurar a continuidade da formação nacional chilena. O sistema político chileno, desde quando Portales criara um Estado organizado e forte, se mantivera nos limites do respeito à independência e harmonia entre os poderes, com predomínio da dominação oligárquica contra a qual de algum modo se jogara Balmaceda.
Estamos longe do Nabuco apreciador de Thiers e mesmo de Bagehot e mais próximos do leitor de Burke. Com uma ressalva: ele encarava as experiências políticas do Brasil e do Chile como uma salvaguarda moderadora e temia que seu desarranjo nos levasse ao pior, à anarquia. Voltava a prevalecer com força o que nunca desaparecera de Nabuco e que, segundo ele, colhera da experiência inglesa, a prudência, o apego ao historicamente constituído. O reformador deve ser cuidadoso, não tirar uma pedra que derrube o muro, avançar com moderação e reconstruir sem destruir.
Não terá sido esta também a inspiração do Nabuco proponente ativo do pan-americanismo e, ao mesmo tempo, brilhante propagandista do que de melhor havia na cultura luso-brasileira para sensibilizar seus interlocutores no centro do Império? Não nos estaríamos credenciando a partilhar com eles as responsabilidades hemisféricas? É possível que fosse esse o objetivo de Nabuco ao voltar suas atenções e suas apostas tão radicalmente da Europa para a América, quem sabe com idealismo e também com ingenuidade, como aponta Marco Aurélio Nogueira. O fato é que desde a República, a partir de Floriano e do apoio americano ao novo governo, o eixo da política externa brasileira começara a olhar para o Norte, como a economia já o fizera. Esta tendência se tornara clara a partir de 1902 com o barão do Rio Branco. Este, entretanto, procurava sempre salvaguardar nas políticas do Itamaraty a margem para manobras, não se afastando demasiadamente da Europa.
Nabuco terá ido mais longe, quem sabe longe demais. Deixou para trás sua visão de cosmopolitismo como uma forma de olhar os dois lados por cima dos partidos e de resguardar os interesses da humanidade ou da nação e se empenhou no apoio ao monroísmo, revestido de pan-americanismo com a correção do big stick de Theodore Roosevelt. A tudo isso relevava, afirmando, numa antevisão de certas situações atuais tão bem expressa em sua frase famosa: “Daqui a pouco Europa, Ásia e África formarão uma só rede. É o sistema político do globo que começa em vez do antigo sistema europeu. Pode-se dizer que estamos nas vésperas de uma nova era”.57
Acreditava possivelmente que, com a hegemonia mundial americana, seria vantajoso para o Brasil manter na nova era uma aliança com os Estados Unidos, ainda que subalterna. Claro que os críticos, Oliveira Lima à frente, não perdoariam mudança tão radical de atitudes, por mais que houvesse argumentos para contrabalançar a presteza com que Nabuco assumiu o pan-americanismo em nome de um realismo que poderia nos beneficiar, pois resguardaria para o Brasil um papel de moderador, pelo menos na América do Sul, quando menos no Cone Sul. Daí seus esforços diplomáticos, seus contatos com o governo americano, sua pregação nas universidades: queria mostrar que com as especificidades luso-brasileiras desenvolvêramos uma cultura que nos capacitava a ser parceiros dos “grandes”.
Não é hora de aprofundar o tema. Fica registrado, contudo, que Joaquim Nabuco no final da vida, tornando-se, não obstante, ainda mais brilhante e competente como diplomata, deixou-se embalar por um conservadorismo que, mesmo se realista, distanciou-o do que fora seu pensamento de outras épocas.
Dito isso, espero que as poucas observações que pude transmitir sobre tão ilustre brasileiro, e que se restringiram a fragmentos de sua obra e a momentos de sua vida, sejam suficientes para justificar por que tantos, há tanto tempo, o consideramos entre os maiores pensadores e homens de ação que o Brasil já teve.
** Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, em 18 de março de 2010.