O descobrimento da economia*

Cada geração redescobre o Brasil através de algum grande livro ou de uma série deles. A geração anterior à minha, que floresceu de meados dos anos 1940 em diante, como ressaltou Antonio Candido no prefácio à reedição de Raízes do Brasil, sofreu a influência decisiva de Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Holanda. A geração que começou a escrever na década de 1960, à qual eu pertenço, também aprendeu com aqueles autores. Mas sua descoberta intelectual fundamental deu-se com a leitura de Celso Furtado.

Primeiro lemos A economia brasileira. Depois, a Formação econômica do Brasil.1 Foi um choque enorme: passamos a ler e a adivinhar o que ocorria no Brasil pela lente da economia. Caio Prado já ensinara a muitos o fundamental da inserção da economia brasileira no mercado mundial. Simonsen também dera os contornos da economia colonial de forma objetiva. Mas Celso Furtado fez brotar em nós a paixão pela economia. Desenvolvimento e subdesenvolvimento; produto bruto; taxa de investimento e capacidade de importar; fluxo de renda e outras noções do gênero, que eram quase palavrões a saltar de textos técnicos para ferir os ouvidos de leitores mais atentos ao capricho da frase do que à clareza do conceito, passaram a ser o pão nosso de cada dia das universidades.

Isso só bastaria para qualificar Furtado no rol dos grandes dessa terra, em geral tão pobre de espíritos realmente criativos e suficientemente vigorosos para tornarem moda o que era, antes, pedantismo de meia dúzia de especialistas. A linguagem mudou no círculo dos letrados, antes e depois de Celso Furtado, embora não exclusivamente por sua influência, mas porque se estava vivendo um período de grande transformação econômica e social. De qualquer modo, foi com esse autor que se inaugurou o “economês”. E foi em boa parte por intermédio dele também que a “ciência econômica” começou a substituir na Academia (e na imprensa, que é a academia das multidões) o prestígio do juridicismo beletrista.

Se no passado recente o historiador-ensaísta e o sociólogo-encantador de palavras já haviam assediado o bacharel em sua trincheira jurídica, depois dos anos 1950 o economista passou a ser o vigário que abençoava os êxitos de cada fim de ano de governos tesamente armados para acelerar a Prosperidade Nacional, ou então, em caso contrário, que profligava sem voltar atrás os fracassos embalados por alguma taxa de inflação menos controlada ou por uma queda menos explicável na taxa de investimentos.

Cruel ironia essa: Celso Furtado é sóbrio no escrever; seu estilo, claro, se não cartesianamente, pelo menos cambridgianamente; segue mais a lógica do empírico que a do abstrato, cultivando paisagens menos geométricas e mais chegadas ao gosto caprichoso de oposições não simétricas, mas não por isso menos consistentes. E foi a partir desta matriz que veio a florescer o ritualismo economicista que nos atormenta, o barroquismo encaracolado com que as ciências sociais contemporâneas, a ciên­cia política e mesmo o discurso cotidiano atual passaram a ser vergastados pelo “economês” e pela explicação “economística” de qualquer acontecimento social ou político de maior monta.

Mas seria injusto atribuir a Celso Furtado a culpa de suas virtudes. Ocorre apenas que ele foi o primeiro entre nós que recodificou com força nossa história à luz da “economia do desenvolvimento”, que se tornou a coqueluche da nova intelectualidade. E foi ele também quem, depois de ter ajudado a elaborar a teoria da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina, da onu) sobre desenvolvimento econômico, aplicou-a ao Brasil e mostrou como e por que, à luz daquela teoria, o Brasil era um país subdesenvolvido.

O resultado dessa análise, no seu desenvolvimento histórico, encontra-se no livro que adiante se resume. Alguns capítulos dele se tornaram clássicos para o entendimento do Brasil e o livro em seu conjunto é de importância básica para quem quiser entender a evolução histórica de nossa economia.

Apenas para chamar a atenção do leitor sobre alguns dos muitos pontos da obra que merecem destaque, eu lembraria, por exemplo, que a explicação do funcionamento da economia do açúcar, feita por Furtado, não encontra precedente em nossa historiografia. Os papéis do capitalismo comercial e financeiro holandês, do fluxo da renda nas mãos de camada tão reduzida como a dos produtores locais, da retenção de parte importante dos excedentes no exterior, das importações de quase tudo (equipamento, mão de obra, alimentos, manufaturas etc.) consumindo o valor das exportações são descritos e explicados com maes­tria. É certo que a análise histórica do sentido da colonização já havia sido feita por Caio Prado; da mesma forma Alice Canabrava analisara a economia açucareira nas Antilhas, mas Furtado retomou esses temas e projetou-os num quadro estrutural mais amplo, mostrando como e por que o fluxo da renda da economia colonial percorria o circuito fechado que, ao mesmo tempo em que a tornara peça do mercado internacional, estrangulava-a na dependência comercial e financeira e estiolava seus efeitos locais pela concentração da renda em poucas mãos.

Com as mesmas ferramentas da análise estrutural-keynesiana, Celso Furtado lança-se à questão de saber por que os Estados Unidos se industrializaram no século xix enquanto o Brasil permanecia agrário e se encaminhava para o subdesenvolvimento crônico. Com perspicácia, sem descartar as diferenças na estrutura social dos dois países, o autor mostra que só o comércio internacional poderia dinamizar uma economia periférica, à condição de que a renda gerada pelas exportações pudesse fluir para criar um mercado interno.

No caso brasileiro foi a economia do café, já nos fins do século xix, que cumpriu esta função. Contrastando a economia cafeeira com a do açúcar, Furtado mostrou que a primeira foi impulsionada por homens com mentalidade nova: tinham expe­riência comercial e influíam nas decisões de políticas públicas para alcançar êxito econômico, como se viu notadamente no caso da imigração de estrangeiros para a lavoura do café.

Uma das teses centrais do livro é a de que foi a generalização do pagamento de salários no setor cafeeiro, depois da Abolição, que permitiu dinamizar o mercado interno, graças à redistribuição da renda em favor da mão de obra — tese que até hoje requer maior comprovação. Independentemente, entretanto, da aceitação desse ponto de vista, a análise da economia feita por Celso Furtado é brilhante. A defesa da renda dos cafeicultores dava-se tanto nos períodos de prosperidade econômica como nos de depressão. Quando os preços do café se elevavam, os cafeicultores retinham as vantagens, sob a forma de lucro; quando havia a queda do preço internacional do café, os fazendeiros e exportadores forçavam a depreciação da moeda, tornando as importações mais caras e defendendo o valor das exportações; como as importações eram consumidas pela massa da população e o valor das exportações permanecia nas mãos dos cafeicultores e exportadores, produzia-se o fenômeno que Furtado qualificou de “socialização das perdas”, ou seja, de transferência dos prejuízos para o conjunto da população. Olhando-se o que ocorre hoje, quando as dificuldades financeiras dos grupos econômicos são socorridas pelo Banco Central,2 vê-se que não foram apenas os cafeicultores que aprenderam a usar os cofres públicos e a política econômica para benefícios próprios: plus ça change, plus c’est la même chose...

A explicação da política de defesa da produção e do emprego, dada por Furtado, posta em prática depois da crise de 1929, também se tornou clássica. De igual modo, a análise relativa ao fortalecimento do mercado interno e ao crescimento industrial, hoje repetida por vários autores, teve, na época, um efeito que é difícil de avaliar. Tanto se repisou o argumento, e mesmo tanto foi ele corrigido e ampliado, que o leitor desatento pode até esquecer que, no caso deste livro, está em face do original e não de cópia. É esta a marca de toda grande obra que tem êxito ao ampliar a visão da história: vê-se reproduzida anonimamente, embora quase sempre empobrecida. Aconselha-se, por isso, a leitura do original, cujo resumo vem adiante.

 

 

 

 


* “O descobrimento da economia”. Senhor Vogue, ago. 1978, p. 107. Prefácio da série Livros Indispensáveis à Compreensão do Presente, 5, publicada na seção “Resumo do mês” referente à obra de Celso Furtado, Formação econômica do Brasil.