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ASSASSINAR O AVÔ
Não podemos matar o tempo sem ferir a eternidade.
H. D. THOREAU
A segunda-feira a seguir àquela estranha reunião começou da pior maneira possível. Antes de mais, apercebi-me de que me tinha esquecido na casa de Yoshimura de uma pequena Moleskine cheia de notas dos últimos anos. Tinha-a tirado do meu casaco para olhar para o bilhete de regresso que estava guardado no compartimento secreto do caderno, e não a tinha voltado a guardar no bolso.
Lembrei-me, de repente, de que a deixara na mesa do chá quando saímos para o jardim zen. Ia levar pelo menos duas semanas a recuperá-la e não gostava nada da ideia de que um desconhecido, apesar de ser japonês, andasse a meter o nariz nas minhas anotações sobre a vida e os livros.
Mas o pior estava para chegar.
A meio da manhã recebi um e-mail da Yvette: informava-me que daí em diante teria de dividir o trabalho com um guionista da própria rádio. Isso significava que o meu salário seria reduzido para metade.
O aluguer do apartamento e os 600 euros de pensão para a minha ex-mulher, que tinha ido viver para Lanzarote, já somavam mais do que ia receber mensalmente. Como é que ia fazer? Se não encontrasse uma nova fonte de rendimento, estava bem tramado.
Enquanto me punha a trabalhar, angustiado, no guião para aquela segunda-feira, «Os universos paralelos», perguntei-me que relação podia haver entre a minha estreia como tertuliano em La Red e o castigo a que agora era sujeito. Talvez Juanjo Bonnín se tivesse ido queixar à direção, que tinha decidido colocar-me na prateleira, apesar de ser só por metade.
Entre a preocupação e a fúria, comecei a ordenar a minha documentação sobre um tema que, até àquela manhã, ainda não tinha percebido porque agradava tanto às pessoas. Sempre que no programa se falava sobre mecânica quântica, recebíamos e-mails dos ouvintes a perguntar sobre os universos paralelos.
De repente percebi que quando o nosso universo está esgotado, apenas nos resta a esperança de que em qualquer outro estejamos a levar a vida com que sonhámos.
Será que era isso que me estava a acontecer? A decisão de viajar a Cadaqués seria por acaso a prova de que, em determinadas alturas, precisávamos de ir a um universo paralelo para endireitar a nossa vida desorientada?
Reli um artigo sobre os múltiplos universos de Everett, mas era demasiado complicado para divulgar ao público em geral. Nem eu próprio, um jornalista especializado em ciência, tinha a certeza de o ter compreendido.
Confundido, encontrei uma via de escape nas descrições dos universos paralelos que se fizeram nas obras de ficção científica. Na maioria diz-se que, para uma pessoa poder viajar ao passado e regressar ao presente, já não o pode fazer no seu universo original mas sim que, ao ter violado as leis do tempo, deve prosseguir com a sua vida num universo paralelo muito semelhante ao que conhecia, mas que não é exatamente igual.
Com esta solução evitava-se o chamado «paradoxo da viagem no tempo». Segundo o princípio de causa e efeito, se alguém se pudesse transportar para o passado e assassinar o seu avô, essa pessoa já não nasceria e por isso não poderia regressar à sua época. O problema é que – e aqui está o paradoxo – se essa pessoa não tinha nascido, então como é que ia viajar ao passado para assassinar o seu avô?
Um completo absurdo.
Os universos paralelos são uma boa solução para esse problema, pelo menos nos filmes: o viajante pode transportar-se para o passado e matar o avô; mas para continuar a existir, o criminoso do tempo entra num universo paralelo no qual o seu avô pode não existir, mas ele sim.
Esta hipótese serviu-me para escrever a introdução teórica do programa; depois de o fazer senti-me repentinamente cansado. Como se um aspirador quântico estivesse a sugar os meus últimos eletrões de energia, arrastei-me para a cama e não demorei a adormecer de puro cansaço.
Enquanto me precipitava para o vazio sem rede da inconsciência, várias cenas apareceram paralelamente na minha mente: o número áureo, o traseiro de Sarah Brunet… e por fim, a inscrição: «Efetivamente, há uma última resposta.»
Tudo negro.
Quando acordei já passava das oito da noite, e o meu apartamento estava na penumbra – uma sensação que detestava.
Enquanto os meus olhos se habituavam à pouca luz do entardecer, disse a mim próprio que alguma coisa importante tinha mudado. Não era que tivesse entrado num universo paralelo, ou alguma coisa do género, mas senti que, de alguma maneira, algo essencial se tinha modificado enquanto eu me escondia do mundo quotidiano.
Esta intuição fez com que ligasse a televisão no exato momento em que começava o telejornal da noite. As primeiras notícias eram de greves e manifestações em frente ao Ministério do Trabalho. Com a notícia de um simpósio europeu sobre os bancos tóxicos e o que fazer com eles, fui até à cozinha e pus azeite a aquecer numa frigideira para estrelar dois ovos.
Quando no ecrã apareceu a estátua da liberdade com duas tochas, a de Cadaqués, soube que estava prestes a saber algo terrível. Aumentei o volume da televisão no momento em que a jornalista dava a notícia:
– «O assassinato do professor Yoshimura, de setenta e dois anos, causou comoção entre os dois mil e seiscentos habitantes desta aldeia costeira, onde a vítima era muito querida. O crime teve lugar esta madrugada na sua residência, onde o cadáver foi encontrado esta manhã pelo pessoal de limpeza. A polícia ainda não fez nenhum comunicado oficial sobre o caso, mas sabe-se que quatro forasteiros foram vistos a sair da casa de Yoshimura ontem à tarde. As autoridades estão a tentar identificar os suspeitos a partir das descrições de alguns vizinhos.»
Ao desligar a televisão, senti um suor frio que se formava na nuca e descia pelas costas.
Considerei a possibilidade de ir voluntariamente à polícia e explicar o que tinha acontecido, mas não estava com coragem para enfrentar um longo interrogatório. E a minha versão dos factos até a mim me parecia absurda. Mas o facto de a minha Moleskine ter ficado em cima da mesa de teca do japonês não ajudava muito. Deixar um caderno pessoal é próprio de alguém que foge precipitadamente depois de cometer um crime. Tentei lembrar-me se tinha escrito os meus dados nalguma folha do caderno ou os de alguém através de quem me pudessem localizar. Era impossível saber.
Horrorizado, comecei a dar voltas ao que tinha acabado de acontecer. Havia apenas duas possibilidades: ou o assassino era um daqueles três, incluindo a bela francesa, ou tratava-se de uma quarta pessoa que nos tinha levado até àquele local para fazer de nós suspeitos antes de cometer o crime.
Para mal dos meus pecados, eu era o único que regressara de autocarro, e com isso tinha-me exposto ao olhar de uma dezena de habitantes locais. Os outros tinham regressado discretamente nos seus carros.
O cheiro a azeite queimado distraiu-me momentaneamente daquilo que já era uma evidência: desse por onde desse, estava enterrado em merda até ao pescoço.