13
CABARET VOLTAIRE
Se não chocarmos com a razão nunca chegaremos a lado nenhum.
ALBERT EINSTEIN
Farto de investigar a vida de estudantes de há um século, muitos dos quais se deviam ter tornado engenheiros, decidi sair da gigantesca Escola Técnica em direção ao Cabaret Voltaire, ou ao que restava dele.
Se a mulher ao telefone se tinha dado ao trabalho de me indicar aquele lugar, seria por uma boa razão. Talvez estivesse ali à minha espera, ou, pelo menos, havia alguma coisa no museu do dadaísmo que eu devia ver.
Enquanto procurava a rua onde ficava o cabaret, a Spiegelgasse – «ruela dos espelhos» – número 1, intuí que se tratava da mesma pessoa que mandara os postais de Cadaqués. Talvez fosse porque relacionava aquela voz estranhamente melodiosa com a caligrafia do envelope.
Quem seria essa pessoa e o que esperava de mim; talvez a resposta estivesse à minha espera no velho clube.
Não foi difícil encontrar uma fachada cor-de-rosa com o nome em minúsculas: «cabaret voltaire». A porta estava aberta.
Espreitei para o interior com uma certa precaução, apesar do local ficar situado numa das ruas mais movimentadas de Zurique. O andar de baixo estava forrado com uma tela que cobria o chão praticamente todo. Um estranho artefacto metálico andava pelo chão com movimentos bruscos e caprichosos.
Cheio de curiosidade, decidi entrar para ver o que era tudo aquilo. A porta fechou-se atrás de mim com um suave estalido.
Antes de avançar, olhei em volta. Não havia ninguém, à exceção de uma adolescente com o cabelo azul que mascava pastilha elástica atrás de um pequeno balcão onde se vendiam T-shirts e pósteres.
Aproximei-me do pequeno artefacto, que afinal era uma espécie de robô que rodava – o dispositivo não se levantava mais do que dez centímetros do solo – com uma fina pistola de pintura. Enquanto se movia de maneira aleatória pela tela, ia disparando jatos de cor negra com os quais formava uma composição abstrata. Fazia lembrar as de Jackson Pollock que tinha visto no MoMA em Nova Iorque.
Aquela curiosa performance artística quase me fizera esquecer o motivo que me levara ao Cabaret Voltaire, de modo que me dirigi ao único ser animado do local, além do robô pintor.
A vendedora de souvenirs não pareceu ficar muito contente com a minha chegada. Devia ter menos de dezoito anos e tinha as orelhas tapadas com uns volumosos headphones da marca Oboe. A música hip hop estava tão alta que se conseguia ouvir através dos auscultadores.
Fiquei durante algum tempo parado à frente dela, até que finalmente tirou os headphones e olhou para mim com ar insolente.
– O que queres? – perguntou-me diretamente em inglês.
– Não estou à procura de nenhum souvenir. Quero apenas fazer-te uma pergunta ou duas.
– Espero que seja só uma – resmungou. – Estás-me a fazer perder esta música.
A seguir alisou os totós enquanto aguardava a minha pergunta.
– Há uns dias – comecei a explicar – recebi uma chamada de uma senhora. Pelo tom de voz parecia ser uma mulher mais velha. Falou deste local, de modo que imaginei que se trata de alguém que trabalha aqui… ou pelo menos que é uma visitante habitual do Cabaret Voltaire.
A adolescente fez um balão azul com a pastilha, da mesma cor que o cabelo dela, que rebentou em cima dos lábios antes de me perguntar:
– Onde raio está a pergunta?
Aquela amostra de gente parecia ter sido escolhida para provocar a clientela, mas decidi continuar com o guião que tinha escrito mentalmente.
– A minha pergunta é se, neste museu, galeria ou seja lá o que for, há alguma mulher como aquela que te estou a descrever.
– Não.
Dito isto, voltou a pôr os headphones e aumentou ainda mais o volume do hip hop.
Tive de respirar fundo para conter a vontade de lhe dar uma bofetada, e voltei a olhar para o robô pintor, que tinha intensificado o seu trabalho sobre a tela. Como se a sua programação tivesse entrado numa fase decisiva, de repente acelerava em frente e voltava para trás, soltava um jato de tinta preta e virava-se de imediato.
Desconcertado, preparava-me para sair do Cabaret Voltaire quando reparei numa escada que subia para o segundo andar. Tratava-se de um minúsculo bar que se resumia a duas poltronas, uma máquina de café e uma máquina com latas de cerveja.
Atacado por uma sede repentina, decidi tirar uma daquelas cervejas e bebê-la de uma só vez antes de me ir embora dali.
Por cinco francos suíços consegui uma Heineken gelada. Sentei-me a bebê-la numa poltrona a partir da qual se contemplava o panorama deprimente: o robô pintor a apressar-se pela tela, e a não menos robótica adolescente dos totós azuis.
– Estou-me nas tintas – disse para mim próprio enquanto dava um grande gole.
Entre as duas máquinas de bebidas havia um póster enorme com o manifesto dadaísta de Tristan Tzara:
A magia de uma palavra
– DADÁ – que pôs os jornalistas
à porta de um mundo
imprevisto, não tem para nós
nenhuma importância.
Para lançar um manifesto é necessário: A, B, C. Irritarmo-nos e aguçar as asas para conquistar e propagar muitos pequenos e grandes a, b, c, e afirmar, gritar, blasfemar, acomodar a prosa numa maneira absolutamente óbvia, irrefutável, provar o próprio non plus ultra e suster que a novidade se assemelha à vida como a última aparição de uma cocotte prova a essência de Deus.
O texto – pura banalidade – continuava numa centena de linhas cheias de coisas absurdas, mas eu já tinha abandonado a leitura. De repente tinha-se feito um absoluto silêncio, porque o motor do robô parara. Ou tinham acabado as pilhas ou já tinha terminado a sua obra.
Esvaziei a lata de um trago e olhei para a tela. O que vi atingiu os meus olhos como uma bomba visual:
SEXTA-FEIRA
MEIO-DIA
BERNA
ROSENGARTEN
Dado que três das quatro palavras desenhadas pelo robô estavam em castelhano, era óbvio que a mensagem se dirigia a mim.
Desci as escadas praticamente a voar e pus-me diante das quatro palavras que se destacavam nitidamente por entre o mar de borrões negros. A seguir dirigi-me com passo enérgico para a rapariga de cabelo azul, que continuava indolentemente atrás do balcão.
– Quem é que o programou? – perguntei, levantando a voz.
A adolescente tirou os auscultadores e limitou-se a franzir o sobrolho.
– O robô pintor – insisti. – Quem é que o programou?
Olhou-me com um ar irónico antes de responder:
– Deus misericordioso.