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ESCAPAR DO URSO
A vida é muito perigosa. Não por causa das pessoas que fazem mal, mas sim por causa das que se sentam a ver o que se passa.
ALBERT EINSTEIN
A polícia tinha isolado todo o perímetro à volta do fosso, enquanto os primeiros carros das televisões procuravam obter imagens do «infeliz acidente».
Era essa a versão dos factos que estava a ser transmitida nas rádios, segundo nos explicou prontamente o taxista de origem indiana. Dirigíamo-nos ao Hotel Marthahaus, onde Sarah estava hospedada. Eu tinha apenas a minha mala e muitas perguntas sem resposta. De qualquer maneira, ambos concordámos que o melhor que tínhamos a fazer era sair de circulação por algumas horas.
– Achas mesmo que caiu enquanto tentava alimentar um urso? – perguntei à francesa, que vigiava de esguelha o condutor.
– Mais depressa acredito que o empurraram num momento em que não passava nenhum turista – disse muito séria, enquanto alisava o vestido vermelho sobre os joelhos muito bem torneados. – Apesar de o muro não ser assim tão baixo para alguém cair com um simples empurrão. Era preciso…
– Um par de «cavalheiros» para mandar o Jakob Suter para o meio dos ursos. Agora já sabemos porque não apareceram no Jardim das Rosas. Tinham algo mais importante para fazer.
– Estás a pensar no Jensen e no Pawel?
Dado que a nossa situação se complicava cada vez mais, era um alívio que a Sarah tivesse decidido começar a falar, apesar de ainda não me ter revelado qual era o seu papel naquele jogo mortal.
– São dois possíveis candidatos, dado que estavam em casa de Yoshimura no dia do crime. Apesar de tu também te encontrares lá – acrescentei –, e isso torna-te tão suspeita quanto Jensen e Pawel.
– Não da morte do guia, visto que estava no café contigo.
– Isso não prova nada. A maioria dos assassinatos são encomendados a terceiros – disse para continuar o jogo. – Não seria próprio de uma senhora como tu sujar as mãos lançando um pobre homem aos ursos.
– Também não seria muito inteligente da minha parte – sorriu irónica –, visto que já lhe tinha pago cento e quarenta francos suíços para que me mostrasse a Berna de Einstein. Agora terei de me desenrascar sozinha.
– Não estás sozinha, podemos…
Ao chegar a este ponto, Sarah recuperou a frieza com que me tinha recebido no Rosengarten.
– …podemos esperar que o temporal acalme em quartos separados. Depois, cada um segue o seu caminho.
– Pelo menos podias contar-me quem te mandou vir ao Jardim das Rosas.
A francesa respondeu com um eloquente silêncio.
O táxi tinha parado à porta do Marthahaus, que parecia mais uma pensão do que um hotel. Enquanto deixava a Sarah pagar a viagem, lembrei-me do que tinha dito em casa de Yoshimura: estava a terminar uma tese de doutoramento sobre Milena Marić.
Isso justificava uma viagem à Suíça, onde a primeira esposa de Einstein vivera como estudante, mas a sua presença em casa do japonês e o nosso encontro no Rosengarten ao meio-dia revelavam que alguém estava a mover as peças de fora do tabuleiro. O jogo já começara, apesar de não sabermos quais eram as regras.
Uma vez no hall do hotel, ela pegou na sua chave e começou a subir as escadas em direção ao quarto. A cada passo, as suas ancas esticavam a seda vermelha que as aprisionava.
Sarah deve ter reparado que a observava embasbacado ao pé das escadas, visto que se virou para mim e me disse lá de cima:
– Talvez mais tarde possamos «partilhar informação», para que não me aconteça aquilo do duche e da toalha.
A seguir, despediu-se com um sorriso e desapareceu da minha vista.
Paguei um preço escandaloso por um quarto no último andar do Marthahaus. Enquanto a tarde caía sobre Berna, entretive-me a ver televisão na cama. Estava demasiado cansado para pensar com clareza sobre o que estava a acontecer.
Detive-me num programa em inglês sobre sobrevivência, onde explicavam o que fazer se uma pessoa se encontrasse cara a cara com um urso no meio do campo. Não diziam nada sobre ser atirado para um fosso com ursos.
O especialista de serviço aconselhava a não mostrar ao animal nem demasiada confiança, nem pânico, visto que o urso interpretava ambas as atitudes como uma ameaça para a sua integridade. Por isso, não se deve correr, porque o animal iria caçar-nos a uma velocidade duas vezes superior à humana, e muito menos gritar. O melhor é mostrar uma atitude ausente – como se isso fosse fácil perante uma besta de meia tonelada – e não olhá-lo diretamente nos olhos.
Isso e rezar a todos os santinhos.
Se o urso se puser de pé à nossa frente, não há porque tomar isso como um sinal de agressividade, dizia. Trata-se simplesmente de uma postura comum nestes animais para ver, ouvir e cheirar o que se passa ao seu redor.
Sentado sobre uma rocha, o especialista assinalou com um pau uma grande pegada na terra e explicou que as reações dos ursos são imprevisíveis. Podem interpretar qualquer gesto humano, mesmo que seja amistoso, como uma ameaça.
Por último, lembrou que se trata de um animal muito forte, capaz de partir a espinha a uma vaca ou arrancar a cabeça a um homem de um só golpe.
Foi nessa altura que apaguei a televisão, enquanto me lembrava do que tinha visto duas horas antes no fosso. A visão do corpo despedaçado de Suter tinha-me impressionado, mas a seguir não sentira nenhuma emoção especial. E de repente a cena regressou à minha cabeça e revirou-me o estômago. Tive de me levantar da cama para ir vomitar.
Meti-me entre os lençóis empapado em suor frio. Ao fechar os olhos, veio-me à cabeça a imagem do guia de fato e casaco com o seu cachimbo na mão e um sorriso nos lábios. O urso tinha-o arrancado de um só golpe.
Yoshimura. Jakob Suter. O próximo podia ser eu.