21
LORELEI
Pode prever-se o movimento dos corpos celestes, mas não a loucura das pessoas.
ISAAC NEWTON
A minha reação por ter sido enganado foi dar um pontapé na porta da casa de banho que fez estremecer toda a cabine. Por algum motivo obscuro, a bela francesa tinha decidido abandonar-me no expresso para Budapeste e tinha descido segundos antes do comboio partir.
Uma jogada de mestre.
Devia ter previsto uma coisa daquelas quando me pediu para entrar na casa de banho, disse para mim mesmo, já que normalmente é ao contrário: quem muda de roupa é que entra no quarto de banho, por mais pequeno que seja. Tinha caído que nem um patinho.
Dei uma vista de olhos rápida ao camarote à procura da sua mala vermelha, mas encontrei apenas a minha Samsonite toda riscada. Estive tentado a dar-lhe também um pontapé para descarregar a raiva, mas acabei por sair do compartimento em direção ao bar. Precisava de um whisky – ou dois – para analisar o que acabara de acontecer e decidir o que faria a seguir.
*
O vagão do restaurante encontrava-se no final do comboio. Apesar de serem onze da noite, todas as mesas estavam ocupadas por casais mais velhos que jantavam enquanto conversavam entre sussurros, para além de algumas figuras solitárias diante da sua dose de álcool.
Fui afogar a minha frustração diretamente no balcão, onde um empregado pálido que nem um vampiro me respondeu com um monótono «Bitte schön…».
Pedi um whisky duplo e obtive um copo para onde o adormecido barman esvaziou duas garrafinhas de Chivas. A seguir deu-me a entender que não podia ficar ao balcão porque impedia a passagem de pratos para o jantar.
Deprimido perante a perspetiva de tomar uma bebida naquela casca de noz vazia, paguei a quantia certa e atravessei a carruagem-restaurante com o copo na mão. Quando estava a carregar no botão para abrir a porta, um assobio agudo deteve-me.
Não podia acreditar que me estivessem a chamar como se fosse um cão. Virei-me furioso, com vontade de despejar o copo de whisky em cima da pessoa que tinha assobiado. Mas era uma adolescente com um ar louco.
E o pior de tudo é que a conhecia.
– O que diabo fazes aqui? – perguntou-me num inglês perfeito.
Olhei com estupefação para a miúda dos totós azuis. Vestia uma T-shirt dos Joy Division e sorria para mim insolente.
Em circunstâncias normais não me teria dignado a responder, mas sentia-me tão perdido naquele comboio noturno que qualquer opção era preferível à solidão.
– Está livre? – perguntei apontando para o banco do outro lado da mesa onde estava sentada.
Rebentou um balão de pastilha elástica azul antes de me responder com arrogância:
– É óbvio que não. Está preso à mesa por isso não conhece a liberdade.
– Muito esperta.
– Mas se te queres sentar à minha mesa estou aberta a negociações. O que estás a beber?
– Um whisky duplo.
– Pois quero um igual.
Antes de lhe responder, estudei-a atentamente. Podia tratar-se de uma menor de idade meio chanfrada, ou talvez fosse uma universitária esquálida que gostava de se vestir como uma miúda chanfrada. Decidi perguntar-lhe diretamente:
– Quantos anos tens?
– Os suficientes para fazer o que bem me apetecer.
Ao levantar-me para deixá-la sozinha com as suas insolências, a rapariga do cabelo azul decidiu deitar um pouco de água na fervura.
– Vá lá, meu, não sejas tão suscetível. Vou-te pedir com jeitinho: pagas-me uma bebida igual à tua?
Inspirei profundamente antes de lhe dar o meu copo e dirigi-me de novo ao balcão. Enquanto repetia o pedido ao empregado com cara de morto-vivo, o comboio deteve-se. Segundos depois, dois polícias da fronteira entraram na carruagem e começaram a pedir os documentos.
«Por favor, quero um buraco para desaparecer», pensei ao ver a miúda com o copo de whisky na mão. Um dos polícias dirigiu-se diretamente a ela e pediu-lhe o passaporte. «Ainda me expulsam do comboio por corrupção de menores», pensei.
O polícia estudou com atenção o passaporte, olhando repetidas vezes para a sua proprietária, que bebia pequenos goles do copo. Supus que era maior de idade, visto que lhe devolveram a documentação sem mais perguntas.
Depois de me identificar – para meu alívio, ainda não devia constar das listas da Interpol –, sentei-me com aquela insólita companheira de mesa. De repente parecia estar de bom humor.
– O meu nome é Lorelei. Lore para os amigos. E tu?
– Javier.
– Tchim, tchim – disse em tom burlão enquanto chocava com o copo no meu.
– O que é que vais fazer a Budapeste? – perguntei um pouco mais relaxado ao segundo gole. – Não trabalhas no museu às segundas-feiras de manhã?
Abanou a cabeça enquanto dava outro gole no whisky. Pensei que me ia perguntar a mesma coisa, o objetivo da minha viagem, mas limitou-se a olhar para mim enquanto mastigava a pastilha elástica. Insisti na minha pergunta:
– Então, o que vais fazer a Budapeste?
– Negócios.
– Que tipo de negócios?
– O que é que tens a ver com isso?
Vi de esguelha como um casal mais velho nos observava com reprovação. Percebi que aquele era o momento para parar com aquela conversa absurda e ir-me embora, de modo que me despedi rapidamente e fui para o meu camarote.
Tinha chegado à minha porta quando ouvi uns passos rápidos e suaves nas minhas costas. Ao voltar-me, deparei com a rapariga dos totós azuis, que me olhava fixamente.
Senti um pânico inexplicável. Havia algo naquela Lorelei que me deixava bastante inquieto.
– Ouve lá, meu, não me podes descartar assim. És o único amigo que tenho neste comboio. Tomamos outro whisky?
– Nem pensar. Vai dormir de uma vez por todas.
– Não tenho sono.
– Isso não é problema meu – respondi com os nervos em franja.
– É sim, porque se me deixares para aí abandonada começo a gritar agora mesmo e acordo a carruagem inteira. Direi que me tentaste apalpar e que me ofereceste dinheiro para que fosse para a cama contigo.
– Não faço tenções de voltar ao bar – respondi.
– Então mostra-me o teu compartimento. Abre essa maldita porta ou começo a gritar agora mesmo.
Lorelei deve ter visto o alarme no meu rosto, pois baixou a voz para acrescentar num tom falsamente doce:
– Fico apenas um bocado e depois vou-me embora, prometo. Quero propor-te uma coisa, meu. Não és obrigado a aceitar, mas pelo menos deixa-me explicar-te. Tu decides. E a seguir vou-me embora, está bem?
Achava que ela era perfeitamente capaz de cumprir a sua ameaça, por isso apressei-me a abrir a porta do meu compartimento. Uma vez lá dentro, ela fechou o trinco, acendeu a luz e lançou-me um olhar que era tudo menos tranquilizador.
– Agora ouve-me bem… – começou. – Estou metida num grande sarilho e vais ter de me ajudar.
Uma voz vinda da cama de baixo gelou-me o sangue:
– Javier… Mas… enlouqueceste?
Inexplicavelmente, Sarah estava na cama e observava-me perplexa enquanto se tapava com um lençol. A seguir olhou espantada para a rapariga de cabelo azul, que lhe devolveu um olhar de ódio antes de me dizer:
– Vais pagar caro.
A seguir saiu do camarote batendo com a porta com toda a força.