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DEMONSTRAÇÃO DE FORÇA
Há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. E quanto ao Universo não tenho a certeza.
ALBERT EINSTEIN
Precisei de algum tempo para explicar à Sarah a cadeia de pequenos acontecimentos que tinha terminado com a chanfrada do Cabaret Voltaire no camarote.
– Achava que me tinhas abandonado no comboio – disse. – Porque é que saíste do compartimento e me deixaste na casa de banho?
– No momento em que entraste na casa de banho ligaram-me para o telemóvel, mas não tinha cobertura. Por isso fui falar entre duas carruagens.
– Não ouvi nada – respondi desconfiado.
– Isso é porque o tinha no silêncio e vibrou no meu bolso, por isso não te apercebeste.
– Mas também não te ouvi atender…
Pelo olhar nervoso que me lançou enquanto se cobria com o lençol, soube que a tinha apanhado. Não me estava a dizer a verdade, ou pelo menos não toda a verdade. Contudo, soube desviar a conversa com este pedido:
– Podes apagar a luz? Incomoda-me que me estejas a observar estando eu despida debaixo do lençol.
Desejei perguntar-lhe porque estava despida, se me tinha pedido para entrar na casa de banho precisamente para «trocar de roupa», mas optei por fazer o que me pedia. Apaguei a luz e subi para a minha cama de um salto. Vestido sobre a cama, voltei ao interrogatório:
– Não te ouvi atender o telefone. Como sabias que não havia cobertura?
À minha pergunta seguiu-se um silêncio tenso. Conseguia ouvir Sarah a respirar agitadamente na escuridão antes de responder:
– Tens razão, não foi esse o motivo. Quando o telefone vibrou, saí sem fazer barulho para que não ouvisses a conversa. Pensava que seria apenas um minuto, mas a conversa alongou-se e quando regressei já cá não estavas.
Quis perguntar-lhe com quem falara, mas isso far-me-ia parecer um interrogador, de modo que tentei apanhá-la de outra maneira:
– Quando saí da casa de banho não vi nada no compartimento. Nem sequer a tua mala.
– Isso foi porque a tinha empurrado para debaixo da cama. O comboio ainda estava parado na estação e são muito habituais os roubos antes de arrancar. Na Suíça também.
Isso fazia sentido. Contudo, soube que por mais perguntas que fizesse não ia conseguir descobrir o que tinha andado a fazer durante o tempo em que estivera desaparecida. Não me podia fiar nela. Aquela que era a minha acompanhante há um dia e meio estava a ficar cada vez mais incompreensível. Incompreensível mas fascinante.
– Estive à tua espera – disse ela, de repente, distraindo-me das minhas cismas.
Aquela afirmação era suficientemente agradável para me fazer esquecer o seu desaparecimento e a chamada no telemóvel. Respondi, arrebatado pelo whisky:
– Visto que já aqui estou, podes decidir se me convidas para a tua cama ou se queres subir tu para a minha. A vida é demasiado curta para dormirmos em camas separadas.
– Já não é o momento – ripostou –, pelo menos para mim, que me aborreci de estar à tua espera. A culpa é tua por perderes tempo com aquela miúda. Fica para a próxima. Boa-noite.
Aquelas palavras feriram-me, e soterraram-me na mais completa vergonha. De repente vi-me como era realmente: um satélite à deriva que se deixava apanhar pelo campo de gravitação de qualquer planeta ou asteróide que aparecessem no caminho. Tinha sido assim em Barcelona e a minha submissão continuava desde que tinha tropeçado novamente em Sarah.
Enquanto o comboio avançava para Budapeste, prometi para mim mesmo doravante concentrar-me apenas no trabalho que me tinham encomendado. Assim que soubesse quem era a pessoa que andava a brincar connosco e as suas razões, tomaria nota daquilo que tivesse interesse para o livro e terminaria a viagem de documentação o mais depressa possível.
Acabar a biografia de Einstein e voltar para o meu triste canto. Era esse o itinerário. O meu plano, contudo, chocava com o pressentimento que tinha desde que entrara para aquele comboio. Uma sensação de fatalidade que aumentava à medida que o Wiener Walzer ganhava quilómetros.
Sentia que o champanhe e as gargalhadas tinham terminado e que na Sérvia me esperava algo menos agradável. Até ao momento tinha vivido uma extravagante aventura com uma mulher lindíssima ao lado. Nem sequer a morte de dois homens conseguira ensombrar o excitante jogo que era juntar as peças da vida de Einstein.
Mas algo completamente diferente estava prestes a começar.
Enquanto pensava em tudo isso, uns passos suaves e reconhecíveis aproximaram-se da porta e detiveram-se ali.
Lore.
O pânico irracional – ao fim e ao cabo não passava de uma miúda – que sentira ao encontrá-la no comboio duplicou. Mais do que o seu aspeto extravagante, havia qualquer coisa de terrível naquela pessoa, apesar de não conseguir dizer o que era.
Esperei na escuridão que desse um novo pontapé na porta e fizesse uma nova ameaça, mas limitou-se a ficar ali.
Durante muito tempo.
De seguida tamborilou com os seus finos dedos na porta e foi-se embora.
Fiquei acordado numa espera tensa até ter a certeza de que a rapariga não ia voltar. A seguir respirei fundo. O balançar do comboio e o whisky duplo tinham-me provocado um enjoo que ameaçava revolucionar o meu estômago.
Saltei da cama quando senti que não conseguia controlar o vómito. Sarah parecia dormir profundamente.
Tranquei-me na casa de banho e passei a cara por bastante água fria. Ao ver-me novamente ao espelho, o mundo pareceu agitar-se bruscamente no meio de um barulho ensurdecedor.
Até ao momento em que bati com a cabeça no espelho, que se partiu em pedaços, não percebi que o comboio tinha parado de repente. Alguém ativara o freio de emergência. Talvez houvesse um incêndio numa das carruagens e eu não ia ter forças para escapar.
Foi o meu último pensamento antes de, sentado no chão da casa de banho e com a cabeça a sangrar, perder a consciência.
Quando recuperei os sentidos, a primeira luz do dia penetrava na cabine. Estava estendido na cama. Pelos vistos, o comboio tinha voltado a andar.
Se não fossem as pontadas que sentia na cabeça e um perfume que compensava a dor e a confusão que me assolava, podia ter achado que a noite anterior não passara de um pesadelo.
Sarah estava muito perto de mim. O seu rosto resplandecente inclinou-se sobre o meu enquanto sentia algo a queimar-me a nuca.
– É apenas um desinfetante – sussurrou-me ao ouvido enquanto pressionava suavemente a ferida. – Podias ter-te magoado a sério, mas tens apenas alguns cortes superficiais.
Fechei os olhos enquanto me sentia o Indiana Jones a ser assistido pela beleza de plantão. O curativo terminou com um suave beijo na testa da minha enfermeira.
Enquanto regressava pouco a pouco ao abismo do sono, ainda tive tempo de murmurar:
– Houve algum incêndio?
A voz de Sarah ouviu-se na cama de baixo. Pelos vistos, tinha voltado para a cama.
– Não, foi apenas um louco que puxou o freio de emergência. De certeza que saiu do comboio antes do revisor entrar nos camarotes. Estivemos parados uma hora.
Suspirei enquanto via perfeitamente quem estava por trás daquela maldade. Algo me dizia que não ia ser a última. Aquilo parecia um preâmbulo, uma demonstração de forças antes do verdadeiro ataque.