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SÉRVIA
Se somos capazes de imaginar a felicidade infinita, deveríamos ser capazes de compreender a infinidade do espaço, que é algo muito mais simples.
MILEVA MARIĆ
Chegámos a Budapeste debaixo de uma chuva fina que dava à cidade um aspeto lúgubre e pouco prometedor.
Quando abri os olhos pela segunda vez, Sarah já estava sentada junto à janela do camarote com um café na mão. Vestia uma fina camisola roxa, uma minissaia preta e sapatos de salto alto. Afastei o olhar das suas pernas ao lembrar-me do que prometera a mim próprio na noite anterior, momentos antes do ato de sabotagem.
Lembrei-me de repente do espelho partido. Segundo a superstição, para além das feridas na cabeça, esperavam-me sete anos de azar. Essa era a alternativa – por enquanto – ao fim que o japonês e o guia de Berna tinham tido.
Alheia aos meus pensamentos lúgubres, a francesa penteou com a mão a sua sedosa cabeleira preta antes de dizer:
– Hoje é o dia.
*
Na estação de Budapeste-Keleti soubemos que não era possível chegar de comboio a Belgrado naquele dia. Um obscuro funcionário informou-nos, por trás da sua janelinha, que teríamos de esperar pelo Pannonia Express, que saía às seis horas da madrugada seguinte.
– Impossível – disse Sarah. – Temos de chegar esta noite.
O homem encolheu os ombros e, após olhar demoradamente para o busto da francesa, disse:
– Só de autocarro.
Uma hora mais tarde estávamos enlatados numa pequena carrinha com outros dez passageiros cheios de sacos com comida, garrafas e vários outros volumes.
Encaixados à força, partilhávamos o banco de trás com um velhote corpulento que dormia com a boca muito aberta. Eu estava no banco do meio e Sarah na janela esquerda. Com as malas aos nossos pés, tínhamos de levantar os joelhos para caber naquele espaço ínfimo. Esperavam-nos quase oito horas de viagem.
O glamour tinha terminado.
Enquanto o autocarro lutava para sair da periferia de Budapeste, apinhada de camiões àquela hora, entretive-me a ler a parte da biografia de Yoshimura dedicada a Lieserl – rebatizada como Zorka, segundo outra fonte –, a filha não reconhecida de Einstein e Mileva Marić. A informação que continha era vaga e francamente insuficiente, como admitia o autor numa lista de perguntas que agora me cabia a mim responder:
(Por que razão Einstein não quis conhecer a sua própria filha?
Qual foi o destino de Lieserl? Alguma vez soube quem era o seu verdadeiro pai? Será que nunca houve qualquer contato entre eles?)
Se no Hotel Royal estivesse a filha de Lieserl à nossa espera, segundo a nossa hipótese, talvez estas questões fossem finalmente respondidas. Isso dava-me um novo alento, que compensava o incómodo da viagem, e a tortura de ter ao meu lado uma mulher de quem gostava mais do que estava disposto a admitir.
Para alguém que também participava, com vantagem, naquela maratona, Sarah não parecia minimamente interessada no texto que eu sublinhava a lápis. O seu olhar cristalino pousava nos primeiros campos que se estendiam à saída da capital húngara.
Li:
Graças à mediação do seu amigo Marcel Grossman, Einstein soube que estava prestes a conseguir o ansiado posto no escritório de patentes de Berna. Enquanto isso, tivera de se empregar como professor particular de uma criança que pertencia a uma abastada família britânica, o que o obrigava a viver numa aldeia, longe do seu mundo e dos braços de Mileva.
A gravidez da estudante sérvia começava a ser notória, e por isso foi preciso tomar decisões drásticas para que a prometida felicidade do casal não se esfumasse. Se se soubesse que esperava um filho ilegítimo, Einstein perderia qualquer hipótese de obter o emprego a que aspirava, sem contar com o escândalo que seria para a sua própria família.
Visto que Mileva não podia continuar os estudos pela mesma razão, decidiram que ela se refugiaria na sua Novi Sad de origem, que na época se encontrava na parte húngara do império, até que Albert conseguisse o emprego e se pudessem casar, para assim normalizarem a situação familiar. Contudo, o tempo passou e Lieserl acabou por nascer; o seu pai não se dignou a viajar para a conhecer.
A continuação desta história era ainda mais inexplicável. Albert nunca mostrou interesse em ver a sua própria filha, e Mileva não teve problemas em dá-la para adoção a uma amiga, Helene Kaufler Savić, com quem não parecia ter mantido muito contacto posteriormente.
Quando finalmente se casou com Albert, um ano mais tarde, a questão da criança já era passado. Tiveram dois filhos legítimos, Hans e Eduard, este último com esquizofrenia. Mas ninguém parecia interessado na esquecida Lieserl.
Depois de passarmos a fronteira, a carrinha começou a avançar por estradas em mau estado que atravessavam os imensos campos da Sérvia. Ainda me sentia fraco e estava maldisposto, por isso tive de deixar a leitura. Sarah dirigiu-me então um olhar de súbita simpatia, algo que ainda não tinha visto nela.
Enquanto contemplava o brilho dos seus olhos profundamente azuis na brancura da sua pele, disse para mim mesmo que não sabia nada sobre ela. Desde o nosso encontro no Rosengarten que passávamos os dias juntos. Mas, tal como Lieserl, para mim Sarah continuava a ser um mistério.
Decidi perguntar-lhe diretamente:
– Porque decidiste fazer a tua tese de doutoramento sobre Mileva Marić?
A francesa mordeu o lábio inferior, cheio e bem desenhado, antes de responder:
– Porque gosto das perdedoras, imagino.
– Tu não pareces ser uma perdedora. Tens ar de ser uma menina de boas famílias que obtém sempre as melhores notas, ou estou enganado?
Ela sorriu como resposta.
– O que não percebo, então, é que percas tempo e energia nesta pesquisa, apesar de poder ser útil para a tua tese. Para mim esta encomenda foi um balão de oxigénio, mas no teu caso…
– Não tenho nada melhor para fazer – interrompeu-me.
Aquela resposta deixou-me sem palavras. Não compreendia como é que viajar numa carrinha que andava aos solavancos por entre campos de batatas do Leste pudesse ser o melhor que uma intelectual de classe alta tinha para fazer.
Acrescentei:
– Sinto que não sei nada sobre ti.
– É melhor assim.
Deu-me a mão enquanto voltava a olhar para os campos sem fim. Agarrei-me suavemente a ela como um náufrago à sua tábua de salvação.