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O ANO MILAGROSO
As tuas aspirações são as tuas possibilidades.
SAMUEL JOHNSON
A suíte de Jensen ocupava o último andar do Hotel Royal e estava ligada com o terraço por uma escada que partia da ampla sala. Um empregado de uniforme à antiga servia bebidas e entradas a uma dezena de convidados que conversavam em pequenos grupos. Pela velocidade a que devoravam a comida, pareciam ser jornalistas chamados à última da hora para assistirem ao evento.
A minha dúvida era se aquilo valeria a pena.
– Isto é mais a sério do que eu pensava – sussurrei ao ouvido de Sarah. – E olha para o Jensen…
Naquele momento o anfitrião atravessou a sala distribuindo cumprimentos e dirigiu-se para nós com um sorriso triunfante. Usava um imaculado smoking branco com um laço grená que o fazia parecer de outra época.
Após apertar a minha mão e beijar a da minha companheira, disse:
– Fico contente que se tenham juntado à festa. Esta noite de segunda-feira vai ser um momento crucial para a história da ciência.
Olhei para Jensen com incredulidade antes de lhe perguntar de rompante:
– A Mileva vem?
– Podia vir perfeitamente uma Mileva – disse, observando com satisfação os convidados –, porque é um nome bastante comum em Belgrado. E há jornalistas que ainda não chegaram.
– Convocaste uma conferência de imprensa?
– Bom, convidei alguns jornalistas locais e os principais correspondentes em Belgrado. Serão os nossos embaixadores nesta noite histórica. E também vocês, meus queridos amigos, poderão divulgar a notícia a partir de amanhã.
Estava a falar como um messias, mas não tinha respondido à minha pergunta. Faltava saber se a neta de Einstein tinha sido localizada e se teríamos algum tipo de acesso a ela.
Como se lhe tivesse chegado o rumor dos meus pensamentos, Jensen rodeou a minha cintura e a de Sarah com uma cerimónia estudada antes de proclamar enigmaticamente:
– À meia-noite abrir-se-á a caixa de Pandora. Nada voltará a ser igual.
– O Pawel também vem? – lembrei-me de perguntar.
O anfitrião olhou-me aborrecido, como se a lembrança do físico polaco pudesse ensombrar a festa.
– Não foi convidado. Uma mente mecânica como a dele não compreenderia o alcance do que estamos prestes a conhecer. Mais, seria capaz de fazer campanha para nos desacreditar.
Sarah dirigiu-me um olhar malicioso. Percebi que ela achava patético que, ao falar no plural, o diretor da Mysterie nos incluísse no seu grupo de iniciados.
– Enquanto o momento não chega, exibiremos o documentário A Esposa de Einstein, que a nossa erudita senhora – disse piscando o olho à francesa – já deve conhecer. Sentem-se, por favor.
De seguida, dirigiu-nos com passo firme até uma ponta da sala onde tinha sido instalado um projetor e uma tela. Duas filas de cadeiras dobráveis completavam o cenário.
Sentei-me numa ponta da segunda fila com uma indolência antecipada, enquanto Sarah ficava de pé atrás de mim. Meia dúzia de espectadores vieram assistir contrariados, de copo na mão, quando o documentário começou.
Era em inglês e começou com uma curta-metragem sobre a «Academia Olímpia», um círculo de amigos que Einstein impulsionou em Berna para discutirem filosofia e física. Embora tivesse lido sobre esta tertúlia no manuscrito de Yoshimura, surpreendeu-me saber qual fora a sua origem.
Pelos vistos, em 1901 Albert pusera um anúncio para dar aulas de matemática e física, enquanto esperava ser aceite no escritório de patentes. Um estudante de filosofia chamado Maurice Solivine pôs-se em contacto com ele para que fosse seu tutor, mas não lhe chegou a dar aulas, provavelmente porque o aspirante a filósofo não tinha dinheiro.
Contudo, tornaram-se amigos, e a eles juntou-se o matemático Conrad Habicht; os três fundaram uma espécie de tertúlia na qual discutiam leituras de Karl Pearson, ensaios filosóficos de David Hume e até Dom Quixote. A «Academia Olímpia» dissolveu-se quando Habicht e Solivine abandonaram Berna, em 1904 e 1905, respetivamente.
De seguida, o documentário centrava-se no que aconteceu em 1905, o chamado «ano milagroso de Einstein», visto que publicou três artigos na revista Annalen der Physik que mudaram a história da ciência. Cada um deles abriu um novo ramo à física: a teoria do movimento browniano, a teoria da luz a partir do fotão e a teoria da relatividade.
O que não fora descoberto em séculos de estudo foi, aparentemente, uma brincadeira de crianças para um desconhecido funcionário de um escritório de patentes.
O documentário, que pretendia ser polémico, defendia que Mileva tinha tido uma participação ativa na redação destes três artigos, visto que estavam assinados como «Einstein –Mariti», a forma húngara de Marić. A maioria dos estudiosos não davam importância a este facto, uma vez que na Suíça ainda hoje em dia é hábito acrescentar o apelido da esposa a seguir ao seu.
Aquela reportagem, somada aos três copos de vinho que o empregado me tinha servido, arrancou-me um bocejo monumental. Foi aí que me apercebi de que era o único espectador que continuava sentado em frente à tela. Um murmúrio de vozes devolveu-me à festa.
Durante a projeção de A Esposa de Einstein, a suíte do dinamarquês tinha-se enchido de convidados que perseguiam o empregado para que lhes enchesse o copo. Enquanto procurava Sarah com o olhar, vi que ao grupo de jornalistas de Belgrado se juntara um grupo de homens e mulheres mais velhos, provavelmente professores, assim como dois jovens mal-humorados, com aspeto nórdico, que deambulavam pela sala com uma câmara e um tripé.
Supus que eram os «rapazes» de Jensen, obrigados a abandonar a nave-mãe para cobrir o momento de glória do chefe deles. Foram eles mesmos que, nas escadas, avisaram o anfitrião com alguns gritos numa língua incompreensível.
O homem de smoking branco juntou as mãos e elevou o tom de voz para que os mais de vinte convidados pudessem ouvir o aviso:
– Já é quase meia-noite. Vão sendo horas de subirmos ao terraço para conhecermos a resposta.
O álcool e alguns flirts incipientes tinham dado ao encontro um espírito lúdico que não casava com as intenções do anfitrião, mas perante a chamada as pessoas começaram a desfilar pacificamente pelas escadas acima.
Segui o cortejo à espera de encontrar Sarah já no terraço, mas também não estava lá. A única explicação era que se tivesse cansado daquilo tudo e tivesse regressado ao quarto sem avisar.
Aborrecido com aquele segundo desaparecimento, ocupei uma das cadeiras dispostas em círculo à volta de um estrado. A tela e o projetor tinham sido transferidos rapidamente para ali pelos esforçados nórdicos.
Enquanto me enchia de paciência, ergui o olhar para o céu de Belgrado. As estrelas seriam os focos de um drama com um desenlace inesperado.