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A ENCICLOPÉDIA DOS MORTOS
Não sei com que armas se lutará na Terceira Guerra Mundial, mas sei que a Quarta Guerra Mundial será com paus e pedras.
ALBERT EINSTEIN
No meio do caos que se seguiu à morte de Jensen, pude apenas deduzir que tinha sido envenenado durante o cocktail que antecedera a revelação. E não foi apenas ele: também os seus colaboradores na Mysterie jaziam inconscientes na suíte.
Ao longe ouviam-se as sirenes das ambulâncias e dos carros da polícia. Enquanto isso, desci as escadas a correr para o quarto para avisar Sarah do que acabara de acontecer. À primeira vista, alguém se tinha infiltrado na festa para envenenar as bebidas dos três dinamarqueses. Apenas eles tinham tido acesso à documentação secreta, apesar do grosso ainda estar por vir, e ao possível paradeiro de Mileva.
Havia alguém empenhado em que a última resposta de Einstein não visse a luz do dia, e estava disposto a tudo para o impedir.
Os passos dos polícias já ressoavam nas escadas quando entrei no quarto e fechei a porta atrás de mim. De novo, as circunstâncias colocavam-me na cena do crime. Antes daquela festa com um final trágico, eu e a francesa tínhamos sido vistos a falar com Jensen numa zona afastada do bar. De certeza que o comissário a cargo daquela investigação teria algumas perguntas para nos fazer sobre aquele encontro.
Sarah não estava no quarto, por isso bati com os nós dos dedos na porta da casa de banho.
Nada.
Ao regressar à cama de casal ainda por desfazer, apercebi-me que a mala dela também não estava ali. Tinha desaparecido outra vez, deixando desta vez uma nota em cima da mesa de cabeceira:
Querido Javier:
Sinto muito ter-me ido embora desta maneira, mas não tinha outra alternativa. Enquanto vias o documentário, entrou uma pessoa que não tinha sido convidada para aquele encontro. Não sei o que aconteceu depois, mas soube que Mileva está em perigo e devo avisá-la agora mesmo. Nós também devemos sair da primeira linha de fogo.
Depois de leres este bilhete, destrói-o imediatamente e põe-te a caminho da cidade onde viveu Lieserl. Tu já sabes qual é.
Não te preocupes, encontrar-te-ei.
Sempre contigo,
Sarah
Debaixo do bilhete encontrei o meu passaporte, sinal de que Sarah já pagara a conta do hotel.
Com poucas esperanças de não ser intercetado pelo caminho, fechei a minha mala e saí o mais depressa possível do quarto. No andar de cima ouvia-se uma grande agitação de vozes, de modo que desci pela escada antes de a polícia começar a fazer a vistoria ao hotel à procura de suspeitos.
No lobby, um dos dinamarqueses estava a ser evacuado numa maca, de modo que aproveitei para sair ao lado dele, enquanto agarrava na mão do homem, que parecia mais morto que vivo.
O maqueiro afastou-me aos gritos. Aproveitei o aglomerado de curiosos à porta do Hotel Royal para seguir pela rua abaixo a arrastar a mala. Apesar de temer que a qualquer momento me mandassem parar, também sabia que era demasiado cedo para que a polícia tivesse averiguado a identidade de todos os que assistiram à conferência de imprensa.
Outra razão para sair de Belgrado o mais depressa possível era que o assassino não devia andar longe. E eu podia ser a próxima vítima.
Deambulei à noite por uma Belgrado menos aprazível que a da minha chegada. Arrastei a mala por uma avenida com edifícios ministeriais destruídos, testemunho dos bombardeamentos de 1999, quando a NATO castigou a cidade para parar a guerra do Kosovo. O impacto dos obuses ainda perfurava o betão, cicatrizes visíveis de um conflito quase tão antigo como a humanidade.
Enquanto me perguntava se os destroços ainda ali continuavam como denúncia ou por simples falta de verba, sentei-me a descansar num banco em frente ao rio Sava, que estava cheio de barcos com bares e restaurantes ao ar livre. Às duas da manhã, as luzes de algumas embarcações revelavam que ainda havia alguns clientes a desfrutar do verão antecipado.
Tentava não pensar na mão assassina que tinha aniquilado os dinamarqueses. Antes tinha de decidir como iria para Novi Sad, a cidade de Lieserl onde a francesa tinha prometido encontrar-se comigo.
O comboio pareceu a hipótese mais simples, mas obrigava-me a esperar até que amanhecesse. Também podia averiguar se algum daqueles miniautocarros fazia a rota, mas naquele momento o que menos me convinha era dar a conhecer a minha presença estrangeira na cidade.
Uma fileira de luzes débeis ao pé do cais fez-me pensar que um táxi podia ser a melhor maneira de sair da cidade, furtivo e na obscuridade.
Contei o dinheiro que tinha na carteira: dispunha de poucos dinares sérvios, mas talvez uma nota de 100 euros bastasse para convencer o taxista a viajar em plena noite até à capital de Voivodina.
Pus-me de novo a caminho e enquanto atravessava a melancólica ponte sobre o rio, entretive-me a pensar nos romances que tinha lido na minha época de estudante. Com o boom de Milan Kundera, lembrei-me de que me tinha dado para investigar a literatura dos países de Leste.
Da então Jugoslávia tinha lido A Ponte Sobre o Drina, um romance clássico que conta a história dos Balcãs, e a inquietante Enciclopédia dos Mortos, uma coleção de contos de um tal Danilo Kis. A história que dá nome ao livro impressionou-me especialmente: uma mulher visita na Suécia a biblioteca de uma misteriosa organização que se dedica a compilar a vida de todos os seres humanos que existiram no mundo, à exceção das celebridades. Nesta titânica enciclopédia, acaba por dar com a entrada do seu pai recém-falecido. Ali encontra a referência às ruas onde viveu, a identidade das suas amantes, os bares onde se embebedou, as viagens que fez…
Não sabia por que razão este relato me tinha marcado tanto. Talvez fosse a consciência de que, vista em perspetiva, cada vida parecia uma série de circunstâncias ao acaso que não faziam muito sentido.
Entretido com estes pensamentos, cheguei até ao primeiro táxi da fila, onde uma sombra volumosa fumava na solidão do habitáculo. Bati suavemente no vidro com uma moeda e dois olhos brilharam ao ver-me. Pertenciam a um barbudo que devia ter mais de cinquenta anos, e que me disse:
– Gde idemo?
Percebi que me tinha tomado por um local, o que não estava mal, e que me perguntava para onde queria ir.
– Novi Sad – respondi, sem revelar ainda que era estrangeiro.
O taxista reagiu com um prolongado assobio de surpresa. De seguida abriu-me a porta e disse:
– Hajde!