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RAPARIGA DE PROVÍNCIA

Deus está mais perto daqueles que têm o coração partido.

PROVÉRBIO JUDEU

O taxista chamava-se Dimitri e falava um inglês razoavelmente bom. O suficiente para aceitar 100 euros para cobrir os 80 quilómetros de trajeto, com a condição de que lhe pagasse outros 100 euros na viagem de volta.

Contente por ter conseguido um serviço tão bom numa noite de segunda-feira, ao deixar para trás os últimos subúrbios de Belgrado começou a meter conversa.

– O que o traz cá, meu amigo?

– Uma mulher – disse sem faltar à verdade. – Tínhamos combinado encontrar-nos em Belgrado, mas fartou-se de esperar e agora está em Novi Sad, a terra da mãe dela.

Dimitri estalou a língua enquanto abanava a cabeça.

– Ai, as sogras…

A seguir disse alguma coisa para si mesmo em sérvio e riu da sua própria piada, enquanto atravessava com o velho táxi os primeiros campos debaixo da noite estrelada. A única coisa que percebi do seu monólogo foi «Voivodina», a província autónoma para onde nos dirigíamos.

– Todas as raparigas de província são iguais – disse. – Querem voltar sempre para o pé da mãe. E as de Voivodina ainda mais.

– O senhor conhece Novi Sad?

Igen, isso quer dizer «sim» em húngaro. Fala-se bastante por lá, bem como o eslovaco, o romeno, o russo… eu sei lá! Há pessoas muito diferentes em Novi Sad. Às vezes também se fala sérvio, ou pelo menos canta-se. Gosta de Djordje Balasevic?

Tinha-me apanhado. Se o taxista presumira que tinha uma namorada do país, talvez esperasse que conhecesse as estrelas locais.

Ao ver que não respondia, acendeu um cigarro enquanto com a outra mão procurava um CD no porta-luvas do carro. Depois de olhar de esguelha para várias capas, escolheu uma com um tipo de ar afável e barba aparada. Estava vestido com um colete, como os violinistas tradicionais húngaros.

Meteu o disco no leitor de CD antes de dizer:

– Este é Balasevic, um cantautor de Voivodina. Foi o mais famoso da Jugoslávia no seu tempo. E ainda é.

De seguida, uns acordes de guitarra começaram a encher o carro de uma enorme nostalgia. O cantor entoava com uma voz grossa e doce uma bela melodia, da qual não entendia nem uma única palavra.

Rekli su mi da je dosla iz provincije

Strpavsi u kofer snove i ambicije?

Provincijalka – disse Dimitri, despertando-me da minha sonolência – significa isso mesmo: rapariga de província. Quer saber o que ele está a dizer?

Consenti com o meu silêncio. O taxista deu uma última passa no cigarro, que apagou no cinzeiro a transbordar – todo o carro tresandava a tabaco – antes de começar a tradução:

– «Disseram-me que ela vinha da província, com a mala carregada de sonhos e ambições…»

Aqui interrompeu-se, como se aquela letra tivesse tocado numa memória não desejada. Apagou o leitor de CD e continuou a conduzir em silêncio.

Enquanto os campos sem fim se estendiam sob a luz da lua, também eu fui apanhado pelo braço da melancolia. De repente veio-me a lembrança da chegada de Diana a Barcelona, que naquele momento me parecia um lugar no outro extremo da galáxia.

Depois do nosso romance em Moscovo, tinha passado um mês na sua terra em Lanzarote – também ela era uma rapariga de província – antes de vir ter comigo.

O reencontro fora muito emotivo. Depois de um abraço interminável no aeroporto, no táxi que atravessava Barcelona olhámos um para o outro sem acreditar que aquilo estava mesmo a acontecer. Ao pegar na mão dela senti que o Universo era um lugar muito menos frio e desolado.

Permanecemos assim, em silêncio, enquanto os nossos olhos pareciam unidos por uma misteriosa corrente de éter amoroso.

Ao chegar ao apartamento, ela deixou a mala no corredor e eu levei-a ao colo até à cama de casal, onde acabara de pôr lençóis lavados depois de mais de um mês sem o fazer. O quarto estava iluminado com velas – Diana adorava-as – e como música de fundo soava o disco de Nick Drake Five Leaves Left. Há semanas que andava a ouvir aquele pioneiro do folk alternativo; na verdade, a sua música «Way to blue» tinha-se transformado numa espécie de hino pessoal da solidão.

Por isso quando me pediu, enquanto nos despíamos: «Podes tirar esta seca de música?», senti que era um mau presságio.

«Não gostas de Nick Drake?», perguntei enquanto procurava contrariado o comando da aparelhagem.

Deitada na cama apenas com o soutien, Diana fixou o olhar no teto e respondeu: «Deixa-me deprimida. Esse tipo de música faz vir ao de cima o pior que há em mim.»

A seguir fizemos amor, mas no meu interior soube que o subtil fio que nos unia acabara de se quebrar. Talvez não partilhássemos tantas coisas como tínhamos imaginado, disse para mim mesmo enquanto a estreitava entre os meus braços no clímax do prazer.

Quando me acordou na manhã seguinte com uma estação de rádio onde passavam salsa, os meus piores receios confirmaram-se. Sempre detestei a música que se baseia no ritmo e na repetição de palavras. O que eu gosto mesmo são das melodias tristes, de tipos obscuros que falam do seu namoro com o suicídio, ou mulheres lânguidas que procuram respostas no céu abrindo muito os olhos.

Para mim a vida nunca foi um lugar para dançar.

Naquela altura, se tivesse contado a alguém estes meus pensamentos, ter-me-ia tomado por louco ou maníaco, mas eu sabia lá no fundo que estávamos a pôr a banda sonora ao primeiro capítulo da nossa separação.

Uma manobra imprevista de Dimitri arrancou-me destes pensamentos. Com um hábil movimento com o volante, saiu da estrada e travou a fundo num descampado. O cheiro a pneus queimados misturou-se estranhamente com o da erva fresca trazida pela brisa.

O meu primeiro receio foi que eu tivesse caído numa armadilha. Esperei que o taxista me ameaçasse com uma pistola e me exigisse todo o dinheiro e cartões de crédito. Mas talvez fosse pior que isso.

– Alguém nos segue – disse muito sério. – Há um bom bocado.

Olhei para trás e vi como dois faróis retrocediam lentamente até desaparecerem do nosso campo de visão.