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WILLIAMSBURG
O americano vive mais para os seus objetivos, para o futuro, do que o europeu. A vida para ele é sempre tornar-se, nunca ser.
ALBERT EINSTEIN
Manhattan tinha-se transformado numa ilha burguesa onde era impossível dormir por menos de 120 dólares por noite, de modo que do JFK fomos para Brooklyn à procura de prados mais verdes.
Desde a minha saída de Barcelona para seguir o rasto de Einstein, os 25 000 dólares iniciais tinham baixado para menos de vinte e aproximavam-se perigosamente dos 15 000 dólares. Se déssemos muitas voltas pelos Estados Unidos à procura do fantasma de Mileva, podia acabar por voltar com uma mão à frente e outra atrás.
A não ser que conseguisse completar o manuscrito do japonês e o editor cumprisse a sua parte; sem o trabalho na rádio esperava-me um futuro sombrio no meu regresso.
Esta reflexão económica levou-me a propor a Sarah que alugássemos um apartamento por alguns dias em Williamsburg, o bairro alternativo de Brooklyn. Era a solução mais barata e discreta, visto que assim evitávamos que nos pudessem localizar através do registo do hotel.
O táxi deixou-nos em Bedford Avenue, uma rua larga que liga o bairro ultraortodoxo com os bares e mercados hippies.
Em comparação com o caos de trânsito automóvel e humano de Manhattan, caminhar por Williamsburg era como estar noutra cidade, até mesmo noutro país. À arquitetura dos antigos armazéns de dois e três andares juntava-se um inesperado silêncio, como se os automóveis tivessem fugido dali há muito tempo.
O ambiente também não tinha nada a ver com o que uma pessoa esperava encontrar em Nova Iorque. Todas as pessoas estavam vestidas com roupa em segunda mão, raparigas com óculos enormes e chapéus, para além de diversas variantes da estética punk.
– Isto parece um santuário de tribos urbanas extintas – comentou Sarah enquanto observava a lua da Spoonbill & Sugartown, uma livraria de Bedford Avenue.
– Talvez aqui saibam onde podemos alugar um apartamento – disse ao entrar.
Nas mesas exibiam-se livros vanguardistas, subversivos ou simplesmente freak, como um volume caro dedicado a anões toureiros, ou um álbum infantil para pintar que recriava cenários de guerra, com cabeças a voar, membros queimados e edifícios em ruínas.
Ao lado da caixa, dois gatos descansavam em cadeiras de baloiço à escala.
Perguntei pelo alojamento a um tipo com óculos que era a cara chapada de Allan Ginsberg. Acariciou a barba negra durante uns segundos, como se esfregasse a lâmpada de Aladino, e a seguir respondeu:
– Acho que no Space há um espaço livre. Digam à Baby que vão da parte do Jiddu. Ela sabe quem é.
O Space era um edifício de três andares dividido com tabiques móveis para uso de artistas e forasteiros como nós. A tal Baby, uma velha hippie cheia de amuletos, explicou-nos desta maneira o critério de preços:
– Nesta cooperativa paga-se apenas pelo espaço que uma pessoa ocupa. Em princípio são dois dólares por metro quadrado ao dia, se bem que se vão ficar uma temporada posso-vos fazer uma tarifa de residentes. O primeiro mês paga-se adiantado.
– Não vamos ficar tanto tempo – disse. – Na verdade, ainda não temos planos.
– Gosto disso – respondeu Baby –, mas de qualquer maneira têm de pagar a primeira semana adiantada. De quantos metros quadrados precisam, meus amores?
Sarah passeava-se com a sua mala vermelha por aquele loft onde entrava luz em abundância. No terceiro andar havia dois pequenos espaços fechados por tabiques móveis. A administradora da cooperativa disse-nos que um deles era o atelier de um tatuador e o outro um estúdio partilhado por três designers. Salvo raras exceções, à noite nunca havia ninguém naquele andar.
Sobrava imenso espaço livre, de modo que imaginei que a sofisticada Sarah ia pedir uma boa porção para montar o nosso quartel-general na América. Mas, para minha surpresa, disse:
– Com trinta metros quadrados temos mais do que suficiente.
– De acordo – disse Baby enquanto estudava a francesa através dos seus óculos de fundo de garrafa. – Na cave tenho sofás, camas, mesas, cadeiras… o que quiserem. Também há lençóis. Cada peça custa alguns cêntimos por dia de aluguer. Escolham o que precisarem e ajudamo-vos a trazer as coisas para cima. Num piscar de olhos vão ter a casa montada. A cozinha, a casa de banho e a máquina de lavar são comunitárias e encontram-se no primeiro andar.
Enquanto descíamos as escadas até à cave, perguntava-me se não teria feito asneira em levar a Sarah para aquela cooperativa espacial, como se definia num manifesto colado na parede. Contudo, ao ver como se entusiasmava a escolher um sofá, duas camas individuais e uma ampla mesa de trabalho, percebi que se sentiria confortável naquele reduto alternativo.
Uma vez montado o nosso estúdio, delimitado por duas divisórias que fechavam o espaço num quadrado, o aluguer dos trinta metros com os móveis ficou fixado em sessenta e quatro dólares diários.
Inscrevemo-nos com nomes falsos para nos assegurarmos de que permaneceríamos incógnitos na cidade. Baby não nos pediu os passaportes, porque afirmava que os negócios no Space se baseavam na confiança. Mas cobrou-nos a primeira semana adiantada.
Quando finalmente se foi embora chocalhando as suas joias, dei uma vista de olhos ao que seria o nosso lar enquanto estivéssemos na cidade que nunca dorme. O espaço estava delimitado por quatro móveis principais: uma mesa encostada a uma grande janela, um sofá mesmo atrás e lado a lado as camas individuais. Dois vasos com plantas serviram para encher o vazio e dar mais unidade ao espaço.
A casa já estava montada. Agora só faltava saber o que descobriríamos em Nova Iorque.
Sarah deixou-se cair em cima do sofá e ficou um bom bocado a admirar os terraços de Williamsburg através da janela. Pela primeira vez vi-a despenteada. E gostei ainda mais dela.
– Aproveitando que ninguém nos conhece – disse –, temos de nos vestir como a fauna local. Se levarmos a cabeça coberta e óculos de sol, será mais difícil que nos reconheçam. Assim poderemos trabalhar na busca do filho de Lieserl e da sua irmã correndo menos riscos. Não revelaremos a ninguém o nosso verdadeiro nome nem a nossa origem, está bem?
– Para quê tanta precaução? – perguntei aproximando-me da janela. – Ninguém nos vai encontrar numa cidade com nove milhões de habitantes. Além disso, quem viria até aqui…?
A imagem sinistra de Lorelei pareceu estampar-se nos olhos de Sarah, que disse:
– Não estejas tão certo. A psicopata de cabelo azul seguir-nos-ia até ao fim do mundo.