38
MENSAGEM NUMA GARRAFA
O que é uma cidade senão a sua gente?
WILLIAM SHAKESPEARE
Depois de desfazermos as malas e de pormos a nossa roupa a lavar, iniciámos a nossa busca.
Enquanto Sarah, ligada ao wi-fi do Space, procurava no computador e ao telefone se nos hospitais de Nova Iorque tinha trabalhado uma «Lieserl» ou «Kaufler» – era possível que tivesse mudado de nome de nascimento para o mais facilmente pronunciável, «Lisa» –, desci à rua para procurar um portátil barato.
Seguindo o conselho da francesa, antes parei numa loja de roupa em segunda mão e comprei umas calças de algodão, uma camisa aos quadrados, um boné e uns óculos Ray-Ban um pouco riscados. Pela módica quantia de 30 dólares saí à rua feito um autêntico energúmeno, mas com a certeza de que ninguém, nem mesmo a minha mãe, me reconheceria.
Depois percorri a Sexta Avenida de Brooklyn, onde se encontravam muitas das lojas de Williamsburg. Não muito longe da Ear Wax Records – discos «Cera de Orelha» – encontrei uma loja de informática com artigos em segunda mão. Por menos de 200 dólares, vi-me com um portátil algo deteriorado, mas que tinha o teclado em espanhol.
– Não te fies nas aparências – disse o vendedor com um penteado afro. – Este traste apanha qualquer wi-fi que exista no raio de um quilómetro. É uma maravilha.
Contente com aquela compra, parei num restaurante kitsch, o SEA, para um almoço tardio. Àquela hora começava a encher-se de jovens que chegavam ao bairro para dançar música tecno alternativa ou ler The Onion, uma revista satírica que se distribuía gratuitamente.
Apanhei um exemplar com a fotografia do pontífice durante uma visita aos Estados Unidos. Podia ler-se a seguinte notícia na capa: «O PAPA REGRESSA AO VATICANO COM UM PLANO COMPLETO PARA MANDAR PELOS ARES OS ESTADOS UNIDOS.» A Casa Branca, o Yankees Stadium e o Ground Zero estariam entre os primeiros alvos.
Depois de devorar uma salada de marisco e tofu com um batido de chá, decidi regressar ao estúdio. Já eram horas de trabalhar em qualquer coisa, mesmo que fosse apenas no manuscrito de Yoshimura.
Ao regressar ao nosso cubículo no Space, custou-me a reconhecer Sarah. Durante a minha ausência, tivera tempo de rapar o cabelo pela nuca. Do seu longo cabelo negro restava apenas uma franja que lhe caía como uma cortina até ao nariz.
Em lugar dos seus vestidos elegantes, vestia umas calças de ganga desgastadas e um velho casaco de fato de treino vermelho. Umas Converse brancas descansavam na almofada. Era óbvio que jamais a reconheceriam com aquele ar. Tinha-se transformado noutra pessoa.
Sentada no sofá com as pernas cruzadas, teclava furiosamente no seu pequeno Sony Vaio. Dirigiu-me um olhar de gozo e voltou à tarefa com redobrado brio.
– O que se passa? – protestou. – Não gostas das minhas compras?
– Da próxima vez, deixa-me ir contigo. Até para se andar desalinhado é preciso ter estilo.
Resmunguei enquanto abria o meu computador em cima da mesa de trabalho. Arrancou com relativa rapidez e já tinha o sistema operativo instalado, de modo que tive apenas de ligar a minha pen e arrastar todos os meus ficheiros, bem como o manuscrito do japonês. Felizmente, incluía todas as atualizações que tinha acrescentado em Zurique.
Depois da paragem por roubo em Novi Sad, decidi rever na diagonal tudo o que era preciso fazer e criar um índice dos buracos por preencher. Antes, contudo, perguntei a Sarah enquanto lhe virava as costas:
– Descobriste alguma coisa?
– Não muito, na verdade. Nos oito hospitais de Nova Iorque onde pude averiguar não constava nenhuma Lieserl que tivesse ali trabalhado. Encontrei um empregado de apelido Kaufler, mas o seu nome era Barry. Não serve. Estou a explorar outras vias.
– Podíamos procurar nas listas de telefone desde 1950 – sugeri –, que deve ter sido a época em que se instalou em Nova Iorque. Seria como procurar uma agulha no palheiro, mas se a filha de Einstein tinha telefone, deve haver uma Lieserl ou Lisa Kaufler na lista.
– Amanhã trato disso. É absurdo procurarmos o tal David enquanto não encontrarmos a pista da sua mãe, já que é muito possível que use o apelido do soldado americano. Como esta busca pode demorar, já lancei um isco na Internet. Se o filho ou filha de Lieserl tiverem acesso à Internet, pode ser que leiam esta mensagem ou que alguém nos dê uma pista sobre o paradeiro deles.
– Que isco é esse? – perguntei virando-me para ela.
Sarah carregou numa tecla para ler o que tinha colocado num site gratuito de perdidos e achados apoiado pela autarquia:
PRECISO DE ENCONTRAR O FILHO OU FILHA
DE LIESERL / LISA KAUFLER.
RECOMPENSA QUÂNTICA.
(REF. 127)
– O que quer dizer «recompensa quântica»?
– Nada, é só para que percebam do que se trata. Se esta pessoa é depositária da última resposta, é muito provável que saiba alguma coisa sobre mecânica quântica.
Rodei a cadeira de escritório 180 graus até ficar de frente para ela.
– Achas que a fórmula definitiva de Einstein, E = ac2, pode ter alguma coisa a ver com mecânica quântica?
– Seria o mais lógico. Apesar de a ter impulsionado sem querer, Albert renegava as conclusões da mecânica quântica. Por isso disse que «Deus não joga aos dados». Contudo, chega-se à teoria da unificação através da quântica. Já sabes: no final da sua vida tentou encontrar uma fórmula que sintetizasse as leis fundamentais da física.
– E achas que Einstein pode ter chegado a essa fórmula mas que não a revelou? – perguntei.
– É possível, se não tinha a certeza das consequências desse avanço teórico. Nunca conseguiu ultrapassar a culpa por Hiroshima e Nagasaki.
Enquanto anoitecia em Williamsburg, pensei na tarefa titânica de encontrar uma teoria unificadora – pelo que sabia, a gravidade e a força eletromagnética não tinham nada a ver –, e na não menos titânica tentativa de encontrar quem possuía essa fórmula através de uma mensagem na Internet.
Apesar de estar no site de perdidos e achados da autarquia, devia haver milhares de posts que se acumulavam todos os dias sem que ninguém reparasse neles. Era como lançar uma mensagem numa garrafa para o mar e esperar que a pessoa certa a encontrasse.
Mas por vezes a mensagem de um náufrago chega ao seu destino.