39
OS ANOS EM BERLIM
Quando tocas num cientista estás a tocar numa criança.
RAY BRADBURY
Sarah tinha adormecido no sofá enquanto eu analisava exaustivamente os anos berlinenses de Einstein. Há já algumas horas que ia completando o que podia à medida que avançava, ao mesmo tempo que o índice de tarefas pendentes não fazia mais do que crescer.
Afastei o computador do colo dela e levantei-a, com muito cuidado para não a acordar. Ao levá-la lentamente para a cama que ela tinha escolhido, senti algo muito diferente do que na noite em que a tinha levado pelas escadas do Marthahaus de Berna.
Deitei-a com suavidade na cama individual e cobri-a com um lençol até aos ombros. Sarah reagiu com um murmúrio de prazer, como uma criança que se sabe a salvo dos perigos da noite.
Permaneci um bom bocado observando-a a dormir, ao mesmo tempo que tentava perceber a mudança que se operara em mim. Já não sentia a necessidade imediata de despi-la e fazer amor com ela. Não era que agora me parecesse menos atraente, pelo contrário; era algo pior: pela primeira vez apercebia-me de que o desejo se estava a transformar numa energia mais subtil que não sabia definir.
Estava perdido.
Voltei para a minha mesa tentando afastar aqueles pensamentos perturbadores da cabeça. Tinha desenhado um diagrama, com os «buracos» na margem, de tudo o que tinha acontecido a Einstein depois da publicação daqueles primeiros artigos.
Em 1908 tinha conseguido deixar o escritório de patentes ao ser contratado pela Universidade de Berna como professor convidado.
Depois do nascimento do seu primeiro filho «oficial», a família mudou-se para a atual República Checa, onde Albert conseguiu um posto académico de maior peso. Desempenhava as funções de catedrático de física teórica na Universidade Alemã de Praga.
Apesar de a sua fama ainda não ter atravessado o Atlântico, nos ambientes académicos europeus Einstein começava a ganhar relevância. Isto fez com que fosse eleito membro da Academia Prussiana de Ciência e fosse convidado pessoalmente pelo imperador para dirigir a secção de física do Instituto Kaiser Wilhelm. No total, passaria dezassete anos em Berlim, durante os quais teve tempo de se divorciar de Mileva e casar com a sua prima Elsa, que tinha cuidado dele durante uma crise nervosa.
A década de 1920 marcou o salto na popularidade de Einstein, muito especialmente depois de lhe ter sido concedido o prémio, apesar de as suas teorias não serem aceites por todos os meios. Alguns jornais de língua alemã atacavam o que, no caldo de cultura nazi, se entendia como o desvario de uma mente judia doente.
Um ano antes de Adolf Hitler chegar ao poder, o ambiente de intolerância e antissemitismo fez com que saísse finalmente da Alemanha em 1932 com destino aos Estados Unidos.
O meu primeiro despertar em Brooklyn começou com uma canção doce e dolorosamente bela que se foi colando nas paredes do inconsciente. Ainda sem ter saído totalmente do estado de vigília, empreguei toda a minha atenção para captar desde o meu limbo o que dizia a música, parecida com um gospel.
There’s a lazy eye that looks at you
And sees you the same as before…1
O toque de uma mão suave no meu cabelo arrancou-me definitivamente do sono.
Como se a música estivesse a moldar a vigília, descobri que um olho incrivelmente azul me observava a poucos centímetros da minha cara. Demorei alguns segundos a compreender que, depois de pôr o CD a tocar no seu portátil, Sarah se tinha deitado no espaço livre do colchão para assistir ao meu despertar:
– Quem é que está a tocar? – perguntei sonolento.
Como sempre que lhe perguntava algo, entregou-me a capa de um disco chamado Rabbit Songs, de Hem, uma banda alternativa de Nova Iorque. Na capa via-se a ilustração de dois coelhos a fugirem do perigo, o que interpretei como um mau augúrio para a recém-inaugurada etapa americana.
– Encontrei este CD na ranhura do sofá. Não é giro?
E com isto levantou-se de repente e colocou-se em frente à janela a observar a atividade intensa naquela quinta-feira de manhã.
– Devíamos aprender com os coelhos – disse. – Têm as orelhas grandes para ouvir tudo e sabem que a sua toca é provisória.
Vesti-me sem afastar o olhar da mulher do casaco de fato de treino vermelho. Gostava daquela intimidade que se tinha criado entre nós. No meu interior, desejei que a busca em Nova Iorque se prolongasse eternamente, e pudesse acordar todas as manhãs com canções para coelhos.
– É verdade – disse Sarah de repente –, ainda não disseste qual é a tua hipótese para o «a».
– Do que estás a falar?
– Da fórmula que Jensen projetou em Belgrado. Não era E = ac2?
Vesti-me preguiçosamente enquanto dava voltas àquele enigma que, quando recebera o primeiro envelope, julgara ser um engano. O meu estômago roncou de fome antes de responder:
– Talvez signifique «aceleração».
– Isso é absurdo. Não podemos multiplicar a aceleração pela velocidade da luz ao quadrado. Não faz sentido.
– Absorção?
– É ainda mais absurdo.
– Então… qual é a tua sugestão?
Sarah voltou-se para mim com uma expressão misteriosa.
– Quando estiver mais segura digo-te. Não quero condicionar por enquanto a tua busca.
1 «Há um olho preguiçoso que te observa / E te vê tal como antes…»