42

A CASA MORTA

Os forasteiros são excitantes. O seu mistério parece não ter fim.

ANI DIFRANCO

O interior da casa pré-fabricada era parecido com um museu dos horrores. A entrada estava cheia de fotografias de crianças, cada uma mais monstruosa do que a outra: uma delas tinha a cabeça tão grande que, em comparação, o corpo parecia raquítico; outra ria retorcendo a cara ao mesmo tempo que mostrava vários dentes partidos.

– São meus sobrinhos – esclareceu. – Vivem longe. Depois de Detroit.

«Ainda bem», pensei ao mesmo tempo que olhava para uma parede onde se exibia uma coleção de facas. A entrada ficava completa com um documento emoldurado que devia ser a escritura da casa.

Ao ver-nos de perto deve ter percebido que éramos inofensivos, visto que mudou totalmente de tom:

– Vou preparar um café. Estão encharcados.

A seguir, desapareceu no interior da casa deixando-nos na entrada. Através da janela suja vi que a tempestade tinha acalmado de repente.

– Vamos embora – disse para Sarah. – Não gosto nada deste tipo.

– Estás a brincar? Eu não saio daqui sem lhe perguntar pelo vizinho do número 46.

Como se fôssemos dois dos seus sobrinhos a discutir por uma estupidez, o gigante deu-nos duas toalhas antes de nos dizer:

– Sequem a cabeça. Lá dentro tenho roupa seca e café na mesa.

Não gostava nada de tanta confiança. Contudo, Sarah não parecia pensar da mesma maneira, visto que não ligou nenhuma ao que eu disse e me sussurrou:

– Faz o favor de te comportares.

O anfitrião fez-nos passar para a cozinha, onde já fumegavam duas canecas de café.

– Sentem-se – ordenou.

Enquanto secávamos o cabelo com as toalhas, desapareceu no quarto ao lado. Um minuto mais tarde reapareceu com uma enorme camisola castanha, uns calções e um vestido às flores de mulher que devia ter pelo menos quarenta anos.

Após dar-nos a roupa, cruzou os braços, à espera que nos trocássemos. Ou era um pervertido ou achava realmente que nós éramos uns miúdos que precisavam de ser vigiados. Eu estava furioso, mas, pelo esforço que Sarah fazia para conter o riso, apercebi-me de que estava encantada com a situação.

Resignado, despi o casaco, a camisa e as calças para vestir aquela combinação horrorosa.

Sarah, por seu lado, demorou poucos segundos a ficar em roupa interior – trazia um conjunto de licra negra – antes de se enfiar naquele vestido. Ficava-lhe surpreendentemente bem.

Enquanto a imagem daquele corpo sinuoso ficava gravada a fogo na minha retina, o gigante tirou-nos as roupas molhadas e disse:

– Vou pô-las a secar no aquecedor. Mas primeiro é preciso acendê-lo.

Quando voltou a sair, dei uma vista de olhos à cozinha. Nas paredes estavam penduradas dezenas de canecas de diferentes estados americanos. No único pedaço livre havia uma grande placa de latão com as torres gémeas e o lema: «REMEMBER THE TOWERS».

– Em meia hora estará seca – anunciou o anfitrião ao regressar e sentar-se na mesa. – Para que depois não digam que as pessoas de Staten Island não são boas. Um pouco desconfiadas, sim, mas é natural nos tempos que correm. Mas encontram mais humanidade aqui do que em qualquer bairro de Manhattan.

–Vivemos em Brooklyn – disse Sarah.

– Bah – retorquiu. – Aí há gentalha.

Começava a achar que não íamos conseguir saber nada daquele tipo, de modo que decidi ir por um atalho:

– Uma agência imobiliária disse-nos que o número 46 está à venda por um ótimo preço. Eu e a minha esposa queremos sair do nosso antro em Brooklyn e pensámos que mudar-nos para aqui seria uma boa opção. Sabe onde podemos encontrar o dono?

O velho acariciou a longa barba mal feita antes de responder:

– Há anos que não vive aí, por isso parece-me estranho que vos tenham dito que a casa está à venda.

– Talvez seja por isso que a quer vender – interrompeu Sarah. – Uma casa onde não se vive é uma fonte de gastos e de preocupações. Sabe onde podemos localizar o dono? Conhece-o?

– Bastante bem. É um bom homem; muito conservador, por outro lado. Espanta-me muito que queira vender a sua propriedade. Pensava que tinha muito carinho por ela. Apesar de se ter tornado um lugar impossível para viver. Pelo menos foi isso que disse antes de se mudar para uma casa nova mais pequena.

– Impossível? – perguntou Sarah interessada, ao mesmo tempo que se esforçava por beber o mau café. – Mas porque é que era um lugar impossível para se viver?

– Não se sabe a causa. Parece que, a determinada altura, a casa morreu.

Troquei com Sarah um olhar de estupefação. Com a sua chávena na mão, o homem continuou a explicar:

– Como quando um animal morre, e começa a decompor-se e a cheirar mal, também este casarão um dia morreu. A partir de então foi apodrecendo aos poucos. Primeiro rebentaram as canalizações. Depois o telhado começou a ceder. Por causa da humidade e dos fungos, chegaram a desmoronar-se alguns tabiques.

– A queda da Casa de Usher – atrevi-me a dizer.

Não acreditava numa única palavra do que nos estava a contar, mas o anfitrião também não parecia confiar muito em nós, visto que começou a abrir e a fechar compulsivamente uma gaveta da mesa.

Um pouco inquieta, Sarah tentou reconduzir a conversa.

– Não queremos incomodá-lo mais. Na verdade, gostávamos apenas de saber onde podemos encontrar o dono da casa.

– Isso é fácil: têm-no mesmo à vossa frente.

A seguir, sacou uma pistola da gaveta e apontou-a para nós:

– E agora, seus porcos mentirosos, digam lá o que andam a tramar antes que eu chame a polícia.