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A REGRA DAS DEZ MIL HORAS

Quando uma porta se fecha, outra se abre.

MIGUEL CERVANTES

–Preciso de uma bebida – disse Sarah ao sair do metro no oásis de Williamsburg.

– Acho que eu também.

Metemo-nos pela rua Seis de Brooklyn, onde se concentrava uma boa parte dos restaurantes, bares e esplanadas do bairro. Uma delas evocava uma praia, com espreguiçadeiras sobre a areia, toalhas e calipso.

Enquanto os últimos raios de sol banhavam os armazéns reconvertidos pelos artistas, em muitos locais começavam atuações de níveis desiguais. Todas as quintas-feiras era a noite do «microfone aberto», o que significava que qualquer pessoa podia pedir a sua vez para subir ao palco e cantar, dançar ou largar obscenidades.

Depois de uma longa conversa sobre a psicopata do cabelo azul, Sarah tinha-se entregado a um dos silêncios a que já me estava a habituar.

Garantia não saber mais sobre Lorelei que eu. Tinha estado presente desde o início daquela aventura, mas nenhum de nós sabia qual era o seu papel na trama nem quem representava. Uma coisa tínhamos clara: ela estava sempre perto, de forma suspeita, de qualquer fonte de informação sobre Lieserl, o que nos fazia pensar que era enviada por alguém interessado em que o seu legado secreto, se é que isso existia, não fosse descoberto.

Já os movimentos e motivações daquela energúmena com totós eram um grande enigma.

Parámos no Galápagos, um teatro alternativo bastante popular entre a fauna local. Havia atuações – sem microfone aberto – a cada meia hora, ao mesmo tempo que uma clientela ligeiramente curiosa se entretinha a esvaziar copos de cerveja.

Pedi uma cerveja Brooklyn para me refrescar do calor que se tinha seguido ao aguaceiro. Sarah brindou com um copo de vinho branco californiano antes de dizer:

– À última resposta.

No momento em que os nossos copos se tocaram, olhei-a fixamente nos olhos, procurando adivinhar se estava a gozar comigo. A obstinação do seu olhar, contudo, confirmou-me que estava a falar a sério. Recorri ao meu lado mais racional para lhe fazer ver que era melhor não ter grandes expectativas.

– Voltámos ao ponto de partida – afirmei –, ou ainda pior. Agora sabemos que David Kaufler não nos pode conduzir ao paradeiro da sua mãe.

– Temos de abrir outras vias de investigação.

– Isso não nos dá nenhuma garantia de que cheguemos a algum lado. A única pista clara que nos deu foi uma fotografia velha, e uma tresloucada que a partir de agora vai apertar o cerco à nossa volta. Quando terminar de farejar na casa morta, não tardará a descobrir que falámos com Kaufler. E somos tão pouco discretos que lhe revelámos que vivemos em Brooklyn.

– Mas Brooklyn é grande.

– Claro. Mas é mais pequeno que o conjunto de Nova Iorque. E com o nosso ar, vai ser ainda mais fácil para a Lorelei adivinhar onde estamos. Daqui a nada vamos tê-la aqui e aí veremos o que acontece.

Sarah mandou-me calar quando a banda do momento começou o seu concerto. Apresentaram-se como Lhasa, e a cantora era uma hippie cuja voz rouca lembrava a Nico dos anos setenta. A minha companheira ouviu com grande atenção as duas primeiras canções. Deviam ter-lhe dado alguma ideia peregrina, pois disse-me de repente:

– Devíamos fazer contas ao tempo que já gastámos nesta busca. Conheces a regra das dez mil horas?

Neguei com a cabeça antes de beber o que restava da Brooklyn no meu copo.

– Foi um tal de Gladwell que o descobriu. Num livro em que analisa porque é que algumas pessoas têm êxito e outras não, chegou à conclusão de que, além do talento, só chegam à meta aqueles que são capazes de investir dez mil horas na missão a que se propuseram.

– Dez mil horas é uma barbaridade – disse olhando com desagrado para o copo vazio. – Se dividirmos esse número pelas oito horas de jornada laboral, daria algo como quatro anos para chegarmos à meta. O meu dinheiro não dá, nem de perto nem de longe, para tanto.

Sarah olhou-me de esguelha antes de afirmar:

– Talvez, sem te aperceberes, já estejas há vários anos da tua vida a dedicar-te a isto e estejas agora a entrar na reta final.

– Talvez – repeti cético.

– Sabes como é que Gladwell descobriu a regra das dez mil horas? Fez os seus cálculos tendo por base a Academia de Música de Berlim, um dos conservatórios de maior prestígio do mundo. Estudou as horas que três grupos de alunos tinham dedicado a estudar o seu instrumento: os qualificados pelos professores como medíocres, os bons e as estrelas com veia de grandes solistas. Desde os cinco anos de idade até aos vinte, quando abandonavam a escola, os medíocres somavam uma média de quatro mil horas de prática, enquanto os «simplesmente bons» tinham dedicado o dobro das horas ao seu instrumento. Os alunos excecionais tinham começado a brilhar a partir das dez mil horas, as mesmas que os Beatles precisaram para triunfar. E, pelos vistos, Bill Gates fracassou várias vezes até atingir esse mesmo número de horas.

– Não concordo com esta regra – contestei –, pois assim qualquer anormal que queime as pestanas pode transformar-se num fora de série. Garanto-te que conheci uns quantos e não é assim que as coisas funcionam. O talento é essencial, porque se alguém o tem, uma hora investida render-lhe-á mais do que cem horas para alguém que não nasceu para fazer aquilo.

Lhasa já tinha abandonado o palco e uma nova banda preparava-se para somar horas para o êxito, segundo o princípio de Gladwell. Depois de uma breve viagem ao balcão para nos abastecermos de vinho e cerveja, Sarah disse:

– Percebeste mal. A regra das dez mil horas não significa que qualquer um que dê uns toques no violino se vá transformar num Mozart, nem que enriqueça como o Bill Gates só porque dedicou muitos anos a um negócio. Significa que precisas de fazer esse investimento de tempo para descobrir o que és realmente.

Dei um grande gole na minha segunda Brooklyn antes de acrescentar:

– Mais vale então apostar no caminho certo, senão podes dedicar os melhores anos da tua vida a algo que não leva a parte nenhuma.

– É aqui que entra a observação e o senso comum – disse Sarah. – Se não tens essa inteligência básica, podes investir um milhão de horas que andarás sempre em círculos.