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O SEGUNDO VISITANTE
Ciência é crer na ignorância dos cientistas.
RICHARD FEYNMAN
Apontei cuidadosamente no meu caderno o breve texto da carta, que desejava ardentemente partilhar com Sarah. A seguir a funcionária devolveu-a ao seu esconderijo particular atrás do quadro.
– Preferimos deixá-la no seu sítio. Se Albert decidiu escondê-la ali, quem somos nós para expor a sua vida privada. E também não sabemos…
O barulho de um grilo interrompeu-a. A mulher fez-me um sinal com a mão para que a desculpasse. A seguir tirou do bolso do casaco um telemóvel minúsculo que estava a tocar.
Meret corou antes de dizer:
– Desculpe-me, professor. Estava com a primeira visita do dia e não me tinha dado conta da hora que é. Desço já para o ir buscar.
Quando desligou, explicou-me nervosa:
– Esqueci-me completamente de que há uma segunda visita programada para esta manhã. Um catedrático de física amigo do diretor quer visitar o escritório. Acompanha-me até à saída?
Dito isto, fechou – por pouco tempo – a porta de vidro e apressou-se pelos imaculados corredores do instituto. Enquanto a seguia, perguntava-me a que estado pertenceria a cidade de Trinity, de onde meio século antes chegara a carta da filha de Lieserl.
As nossas suspeitas de que existira outra Mileva Einstein pareciam ser fundamentadas. Apesar de ser improvável que ela continuasse viva, tentar descobrir aquilo a que ela chamava «o lugar mais triste da Terra» podia ajudar-nos a juntar as peças. Perguntava-me também se a força misteriosa de que falava na carta teria alguma coisa a ver com a fórmula que já tinha aparecido três vezes.
Perdido nestes pensamentos cheguei à saída principal, onde a funcionária do instituto já estava a receber a nova visita. Ao despedir-me dela, apercebi-me de que conhecia o novo visitante, que me olhou estupefacto.
Era Pawel.
Dirigiu-se a mim diretamente em castelhano para que a mulher não nos pudesse compreender, apesar de haver milhões de norte-americanos que falam a língua.
– Não esperava encontrá-lo tão longe – disse sem esconder a sua irritação.
Meret afastou-se uns metros com a desculpa de ver o seu telemóvel, como se a nossa conversa pudesse acabar numa luta de punhos.
– Muito menos eu, para dizer a verdade. Mas não é assim tão estranho: ao fim ao cabo este é um lugar obrigatório de peregrinação para os estudiosos de Einstein. É preciso cá vir a determinada altura.
Pawel estudava-me como se eu fosse uma espécie perigosa de inseto, através das suas grossas lentes. Por baixo dos seus olhos esbugalhados, parecia-me que as suas rugas se tinham multiplicado desde a última vez que nos víramos, há apenas três semanas. Talvez não estivesse a dormir muito ultimamente, pensei para mim mesmo, ou talvez para nós que estávamos – ou melhor dizendo, os que restávamos – metidos naquela aventura o tempo passasse mais depressa.
A funcionária aproximou-se do doutorado em física da Universidade de Cracóvia para iniciarem a visita. Enquanto me perguntava se ele seria a quarta pessoa a conhecer o «pequeno segredo», o seu olhar severo tornou-se forçadamente amistoso.
– Visto que ambos procuramos o mesmo, proponho-lhe que almocemos juntos e partilhemos as nossas descobertas.
– Sinto muito, tenho um encontro ao meio-dia – menti.
Não me apetecia «partilhar» as minhas suposições com aquele homem cinicamente racional. Mas não se deu por vencido.
– Então combinamos a meio da tarde. Vou levá-lo a um bar onde se serve a melhor cerveja de Princeton.
– Adorava, mas infelizmente vamos ter de deixar para outra ocasião. Como estou apenas um dia em Princeton, tenho reuniões até às oito da noite – menti novamente, desconfiado perante aquele súbito interesse. – A seguir devo regressar a Nova Iorque, onde outra pessoa me espera esta noite.
Com os braços tensamente cruzados, Meret olhou para Pawel, que contra-atacou com um golpe certeiro:
– Como veio até aqui?
– De comboio.
– Ótimo, então dou-lhe boleia de volta no meu carro alugado. Também vou esta noite para Nova Iorque. Amanhã devo apanhar um avião de regresso à Europa.
Era absurdo continuar a inventar desculpas. Se aquele físico ressabiado tinha alguma coisa para me contar, melhor para mim. Da minha parte, podia limitar-me a partilhar com ele apenas alguns detalhes vagos da minha investigação.
Depois de almoçar sozinho no McDonald’s e deambular por algumas livrarias de estudantes, liguei algumas vezes para Sarah de uma cabine, mas foi diretamente para as mensagens.
Para matar o tempo, passei o resto da tarde no Small World Coffee, um pequeno café no downtown de Princeton. A minha série de mentiras não só não me livrara de Pawel, como ainda por cima tinha de passar o dia inteiro naquela cidade à espera dele.
Ao contrário de noventa e nove por cento dos cafés nos Estados Unidos, no Small World Coffee reinava um ambiente informal e os empregados não apareciam à nossa mesa a cada quinze minutos para nos obrigar a consumir. Por isso, pude passar a tarde apenas com três cervejas enquanto relia as folhas soltas do manuscrito.
Chamou-me a atenção uma história que Yoshimura contava sobre um jornalista que, ao interpelar Einstein à saída do instituto, lhe fez uma pergunta a que o físico já respondera milhares de vezes: «Pode explicar-me a relatividade?»
Einstein respondeu com outra pergunta: «Pode explicar-me como se frita um ovo?»
Quando o jornalista, boquiaberto, lhe respondeu que sim, Einstein respondeu: «Pois faça-o imaginando que eu não sei o que é um ovo, uma frigideira, o óleo ou o lume.»