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A MORTE AZUL
Quem se aproxima do risco e do perigo, joga aos dados com a sua vida.
FRIEDRICH NIETZSCHE
Quando abri os olhos, fiquei surpreendido por não estar morto. Também não estava no carro, mas sim debaixo das estrelas. Cheirava a erva fresca à minha volta. Com um esforço doloroso, consegui virar a cabeça até descobrir o que restava do nosso carro, agora uma massa disforme de ferro em chamas.
Deduzi que tinham passado poucos minutos – talvez apenas alguns segundos – desde a colisão, visto que o fogo ainda não se tinha consumido. Mas o mais extraordinário era que eu me encontrava relativamente a salvo, a uns vinte metros. Não tinha a certeza de poder voltar a caminhar, mas de momento continuava ali.
Um fedor a gasolina e a carne queimada indicava que Pawel não tivera a mesma sorte, apesar de eu não conseguir perceber como é que tinha voado para tão longe do carro e continuava vivo.
Tinha o braço direito totalmente inválido, mas com o esquerdo limpei a cara, empapada em sangue. Procurei mexer uma perna, mas precisei de fazer força com o corpo todo para elevar ligeiramente o joelho. Quando tentava repetir a operação com a outra perna, um pano gelado pressionou a minha maçã do rosto, fazendo-me gritar de dor.
A seguir, uma voz conhecida sussurrou atrás da minha cabeça:
– Dói?
Esperei que o pano se afastasse da minha cara ferida para responder:
– Lorelei, és o cúmulo do cinismo. Deixa-me morrer em paz.
– Mas eu não quero que morras – disse, inclinando a sua cara sobre a minha. – A minha irmã ficaria triste.
– Mas quem diabo é a tua irmã?
Uma agonizante pontada de dor paralisou-me o maxilar ao dizer isto. A rapariga de cabelo azul desviou então o olhar, como se procurasse ver as fraturas sob a minha pele.
Não respondera à minha pergunta, mas na verdade não era necessário. O seu meio sorriso era-me familiar. Reuni as minhas últimas forças para dizer:
– Sarah.
– Bem, na verdade crescemos em países diferentes, mas o sangue fala mais alto.
– Não me digas. É pena terem-me apanhado no meio.
– Acabei de te salvar a vida, tonto.
Depois de dizer isto, Lorelei voltou a aplicar o pano molhado na minha cara. Desta vez não consegui conter um grito de dor.
– Esperava-te uma morte certa. Se tivesses seguido mais alguns quilómetros, a esta hora estarias debaixo da terra.
– O que queres dizer?
Lorelei soprou suavemente nas feridas da minha cara antes de explicar:
– Já vos estava a seguir desde Princeton. Quando se desviaram para o restaurante, ouvi uma coisa estranha. Esperei que entrassem para estacionar o carro perto. Ao sair para ir dar uma vista de olhos dei de caras com ele: um tipo pouco recomendável que estava a fumar numa carrinha estacionada ao lado da estrada. De repente olhou para o telemóvel, imagino que terá recebido uma mensagem de Pawel. Nessa altura a carrinha arrancou a todo o gás pela estrada. Parou mais à frente e o homem tirou da traseira o sinal de desvio. Ligou-o e seguiu estrada fora antes de Pawel te enganar. Estiveste prestes a cair numa armadilha.
– Eu diria que foi por uma unha negra que não acabei esmagado entre os escombros – protestei num fio de voz. – Tens uma maneira curiosa de salvar pessoas, sabias?
Lorelei sentou-se ao meu lado com as pernas cruzadas, como se eu não estivesse a esvair-me em sangue e tivéssemos todo o tempo do mundo.
– Reconheço que a situação se descontrolou um pouco. Não imaginava que aquele traste ia ser tão inerte. Queria apenas fazer-vos sair da estrada com um ligeiro toque. Espero que o Hummer não tenha ficado muito amachucado. Apesar de o ter alugado com seguro contra todos os riscos, não é bonito devolver um carro com a frente como um acordeão.
Apesar de estar mais morto que vivo, não consegui evitar mexer-me com indignação. Se estava mais preocupada com as amolgadelas do carro do que com as vidas humanas, Lorelei era sem sombra de dúvidas uma psicopata.
– Foi a Sarah que te mandou para me protegeres? – perguntei, fechando os olhos para mitigar a dor.
A minha cabeça começou a dar voltas no escuro, o que indicava que ia desmaiar de novo.
– Nada disso. Se fosse por ela, eu continuaria em Lausanne, morta de tédio. Estou metida nisto por decisão própria, mas não quero que Sarah morra. É por isso que vos vigio.
Depois de duas tentativas falhadas, renunciei a levantar-me do chão. Reparei como as forças me abandonavam progressivamente. Tinha perdido muito sangue. Se Lorelei não chamasse uma ambulância, o que me parecia improvável, acabaria por morrer ali mesmo.
Essa certeza deu-me uma calma repentina, como se não tivesse importância se vivia ou morria num mundo que deixara de compreender. Por isso mesmo continuei a murmurar perguntas:
– Onde está Pawel?
– Algures entre esse monte de sucata. Um a menos: espero que tenha ido para o Inferno.
– E a tua irmã… aprova os teus métodos?
– Claro que não, é uma ingénua. Acha que as pessoas são boas desde que se lhes dê uma oportunidade para sê-lo. Eu vejo as coisas de outra maneira. Para mim, no mundo, há dois tipos de pessoas: as que estão a mais e as que não. Quando se compreende isso, fica tudo claro como água.
– Água… – repeti enquanto deslizava para uma inconsciência da qual não esperava regressar.
À medida que mergulhava em níveis de escuridão cada vez mais profundos, ouvi o eco da voz de Lorelei:
– Sou a mão executora do destino. A morte azul.