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A IRMÃ REBELDE
Deus é complicado, mas não é mau.
ALBERT EINSTEIN
Azul era a cor dos olhos que me observavam quando acordei da minha queda ao abismo. Não podia imaginar melhor regresso à vida, por isso permaneci em silêncio, contemplando o rosto doce de Sarah, que disse:
– Bem-vindo ao mundo.
A seguir deu-me um suave beijo na testa.
Mexi a cabeça com cautela para ter uma ideia do lugar onde reiniciava a minha viagem para a vida. Não sabia como chegara até ali, mas estava de novo no loft de Williamsburg, deitado na mesma cama de onde me tinha levantado para ir para Princeton.
Pelo meio, tinha a impressão de ter atravessado o Inferno.
Tentei levantar-me, mas uma dor agonizante nas costas devolveu-me à horizontalidade.
– Não te precipites – disse Sarah da beira da cama. – Estás inteiro, mas ferido da cabeça aos pés. É um milagre que tenhas apenas partido um braço.
O meu olhar desviou-se para o gesso que cobria todo o meu braço direito. Estava cheio de coraçõezinhos azuis.
– Quem é que fez isto? – perguntei.
Sarah conteve o riso antes de responder:
– Eu mesma, enquanto esperava que acordasses. Estás a dormir há dois dias, sabias?
Saber que estivera inconsciente durante todo aquele tempo, fez com que a minha cabeça voltasse a andar à roda.
– Como cheguei até aqui?
– Telefonaram-me do Brooklyn Hospital Center. A pessoa que te levou até lá deu-lhes o meu número de telemóvel para que falassem comigo. Antes de te meterem na ambulância de volta, cobraram uma fatura de cinco zeros pelos tratamentos, mas não te preocupes com isso.
– Muito obrigado – disse, pensando nas minhas parcas poupanças. – Disseram-te quem me levou até lá?
– O médico de serviço contou-me que te levou uma rapariga no seu carro, depois de teres sofrido um acidente. Isso deixou-me surpreendida, porque pensava que tinhas ido a New Jersey de comboio. O que fazias num automóvel?
– Já te conto tudo, mas deixa-me fazer-te uma pergunta primeiro: fazes alguma ideia de quem me possa ter resgatado?
Sarah passou nervosa o dedo pelos lábios antes de responder:
– No hospital disseram-me apenas que era uma rapariga muito nova. Desapareceu antes que a polícia aparecesse a pedir dados sobre o acidente. Esse foi um assunto que eu tive de resolver para te conseguir trazer do hospital.
– Resolver? – perguntei assombrado. – O que disseste à polícia?
– Que ias num táxi que embateu contra um poste e que o condutor te deixou na estrada e fugiu porque ia dar positivo no teste do álcool. Uma mulher que passava por lá levou-te no carro dela e encontrou o meu número de telefone no teu bolso. E é tudo.
Inspirei fundo enquanto Sarah me acariciava suavemente a costura na parte direita da cara.
– Foram precisos doze pontos para te coser a cara – disse mudando de assunto. – Vais contar-me agora o que aconteceu?
Levantei um pouco a cabeça na direção da janela. Começava a escurecer em Brooklyn. Retive a mão dela na minha cara antes de iniciar o meu relato. Reservei para o final o «pequeno segredo» do escritório de Einstein. O resto contei-lhe com todo o tipo de pormenores: a funcionária do instituto, a fórmula no quadro, o encontro com Pawel e tudo o que acontecera até ao acidente.
Antes do toque final, decidi dar-lhe a estocada:
– A tua irmã salvou-me da emboscada, mas o seu modus operandi foi tão expedito que só saí vivo por milagre. O nome dela é mesmo Lorelei? Ou é apenas o seu nome de guerra?
Sarah empalideceu ao responder:
– Não, esse é o nome dela. Imaginava que devia ter tido alguma coisa a ver com tudo isto, mas não queria saber.
– Porquê? Quantas outras coisas me estás a esconder enquanto me fazes andar como um cego por meio mundo?
– Há ainda uma ou duas coisas que tu não sabes. Não é bom saber tudo de uma vez, acredita em mim. Agora já sabes quem é Lorelei. Espero que não nos voltemos a cruzar, se bem que temo que ande à procura do mesmo que nós.
– E do que andamos nós à procura? – perguntei em tom cínico.
– Da última resposta.
– A Lore disse que te quer proteger, e que me salvou porque não gosta de te ver triste.
– Não ligues ao que ela diz – disse endurecendo subitamente o tom de voz. – A minha irmã é totalmente imprevisível exceto numa coisa: desde muito pequena, sempre tentou competir comigo. Como não tem vida própria, gosta de fazer o que eu faço, apesar de não perceber do que se trata. Juntou-se a esta aventura por sua conta e risco sem compreender o alcance de tudo isto.
– Eu também não entendo.
Sarah retirou a mão da minha cara e passou os dedos pelo seu fino cabelo negro:
– Ninguém percebe completamente… ainda.
– De qualquer maneira, não gostas que a Lore esteja metida nisto.
– Digamos que a prudência não é a sua melhor virtude. Na verdade, pode chegar a ser muito violenta: a sua visão do mundo limita-se à divisão entre bons e maus. Se a isso juntares que a segunda esposa do meu pai é uma milionária irresponsável que lhe dá tudo o que ela quer, já tens todos os elementos para compreender que a Lorelei é uma bomba prestes a explodir. Quanto mais longe estiver, mais seguros estaremos.
– É apenas uma criança – disse enquanto o sono me envolvia de novo.
– Eu diria que é uma psicopata de dezoito anos que de vez em quando faz uma boa ação, apesar de ser por engano. Como trazer-te para aqui…
Ao dizer isto, os lábios dela tocaram nos meus por um breve instante. Foi um beijo subtil, suave, mas senti que um fogo desconhecido me queimava docemente por dentro.
Abri os olhos para lhe dizer:
– Se me deres outro beijo desses, porei nas tuas mãos um segredo que Einstein escondia no seu escritório.
Sarah franziu o sobrolho antes de dizer:
– Só se me prometeres que não vais pedir um terceiro.
– Prometo.
– Vá, conta-me.
– É uma carta – disse entusiasmado. – Copiei-a na última página do meu caderno, que está no bolso do meu casaco.
A francesa foi buscá-lo e revistou os meus bolsos até encontrar o caderno. Tirou o elástico e abriu com cuidado a capa preta inferior. Ao ler a minha transcrição da carta de Mileva para o seu avô, deixou escapar um suspiro de emoção.
A seguir, devolveu o caderno ao meu bolso e disse:
– Agora dorme, precisas de recuperar as forças. Precisamos de voltar a viajar o mais depressa possível.
– Não te esqueças de me pagar o prometido.
Os lábios carnudos de Sarah viajaram lentamente para os meus, que foram levados para o sítio mais agradável do Universo conhecido. Ao afastar-se, senti a solidão do astronauta que, cortada a ligação à nave espacial, fica à deriva no frio cósmico.