56
A IRMANDADE
A verdade é uma fruta que não devíamos colher até estar madura.
VOLTAIRE
Durante a minha convalescença, alimentava-me com os pratos de sopa que Sarah me trazia de um restaurante judeu ali ao pé. Não houve mais beijos, mas sentia-a tão próxima de mim que a sua mera presença me enchia de felicidade por todos os poros.
Sentia-me estupidamente romântico.
Os personagens daquela trama começavam a deixar-se ver, apesar da matéria escura ainda superar os pequenos pontos de claridade que se iam abrindo no labirinto onde nos tínhamos metido.
– Então – interrompi-a mais uma vez, enquanto teclava nervosa no seu portátil –, achas que Pawel liquidou pessoalmente Yoshimura para evitar que se conhecesse o segredo oculto no escritório de Einstein?
– Provavelmente o motivo foi mais complexo. A minha hipótese é que regressou à casa de noite, e tentou obrigar o japonês a revelar-lhe os segredos que ainda não conhecia. De qualquer maneira, Pawel era apenas um peão de uma organização com agentes em todo o mundo, como a nossa.
– Qual é «a nossa»? Nunca me perguntaram se quero fazer parte de uma organização.
Sarah suspirou antes de dizer:
– Espiritualmente fazes parte dela, mesmo que não queiras. Ao escolheres estar comigo, tomaste partido. Yoshimura, o guia de Berna, Meret Wolkenweg, o suposto editor que pagou as tuas viagens… todos eles procuravam a fórmula secreta de Einstein para libertar uma energia mais poderosa do que qualquer outra.
– Um momento – interrompi-a. – Estás-me a dizer que Raymond L. Müller, o diretor das publicações do PQI não tem qualquer intenção de publicar o livro?
– Isso mesmo. Esse editor nem sequer existe; foi tudo um esquema com o objetivo de te dar fundos para que me pudesses acompanhar até aqui. Também não há nenhum instituto quântico em Princeton com esse nome. A nossa única proteção nesta aventura é mantermo-nos no anonimato.
Aquilo era mais do que podia assimilar de uma só vez. Tentei levantar-me sem sucesso para olhar Sarah nos olhos, ela que pela primeira vez estava a pôr as cartas em cima da mesa.
– Então… – comecei indignado – todo o trabalho que estou a fazer não serve para nada.
– Pelo contrário – tranquilizou-me enquanto me punha a mão no ombro –, está a ser essencial na nossa procura pela última resposta. Queremos que continues com o teu trabalho. Quando tudo isto terminar, receberás o resto do dinheiro.
Deixei-me cair novamente sobre o sofá.
– Ou seja, sou um mercenário a trabalhar para uma organização de que nem sequer conheço o nome.
– Os nossos inimigos chamam-nos Quintessência, por motivos que agora não importam. De qualquer maneira, não é uma organização de estrutura piramidal, com líderes e regras, sobretudo desde a morte de Yoshimura. Somos pessoas independentes que nos aproximamos livremente, cada um de nós seguindo o seu próprio caminho, em direção à última resposta. É isso que nos une e que faz com que nos ajudemos nesta missão contra-relógio.
Fiquei pensativo durante uns segundos, enquanto tentava encaixar as peças daquele estranho puzzle, que começava finalmente a tomar um vago sentido.
– Ou seja, Yoshimura era alguém importante na Quintessência.
A voz da francesa tremeu ao responder:
– Sim, pelo menos para mim. Orientava a minha tese e era quase como um pai. Fui ao encontro secreto em Cadaqués para tentar protegê-lo, porque sabíamos que entre os convidados havia inimigos da Quintessência. É óbvio que fracassei.
Uma lágrima caiu-lhe pela face e aí ficou até se romper em finos afluentes de tristeza.
Desejei conseguir levantar-me para abraçá-la, mas ainda me doía o corpo todo. Por outro lado, visto que tinha levantado o véu da verdade, queria ir até ao fim.
– Também era o protetor da Lorelei?
– Conheciam-se pouco. Ela viveu sempre na Suíça. O meu pai morreu quando ela tinha cinco anos e não somos filhas da mesma mãe. A nossa família é complicada. Para mim ainda é pior do que para ela: estou completamente sozinha no mundo.
Um silêncio melancólico tomou conta do nosso pequeno espaço no terceiro andar do Space, deserto àquela hora da tarde.
– E quem são os maus da fita? – perguntei, voltando ao meu papel de jornalista. – Aqueles que se dedicam a liquidar qualquer pessoa que se aproxime da fórmula secreta são também espíritos livres que praticam o crime como caminho espiritual?
– Eles sim fazem parte de uma estrutura – respondeu recuperando a compostura. – O mal está sempre organizado, enquanto a bondade não conhece limites. Mas para te ser sincera, não sei bem quais são os objetivos deles em tudo isto. Sabemos apenas que querem chegar à última resposta antes de nós. Pelos poucos documentos que conseguimos intercetar, sabemos que se autodenominam de Irmandade.
Aquele nome fez-me pensar na Irmandade da Bomba, um grupo secreto a que supostamente pertencera Oppenheimer durante a Guerra Fria. Dentro da paranoia da época, tinham-nos acusado de serem espiões ao serviço da União Soviética. Isso fez-me pensar em voz alta:
– Talvez a Irmandade pretenda apropriar-se de uma nova forma de energia para controlá-la.
– É possível. Ou querem simplesmente impedir que venha a público para manterem as coisas tal como estão agora.
– E como estão agora? – perguntei ingenuamente.
– Horríveis; por isso precisamos de mudá-las.