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A HISTÓRIA DO DESERTO

Aprendi o silêncio através do falador; a tolerância através do intolerante; e a amabilidade através do grosseiro. Por estranho que pareça, não estou grato a estes mestres.

JALIL GIBRAN

O resto do trajeto até Carrizozo foi uma tortuosa odisseia. Em Minneapolis tivemos de esperar mais de três horas para que o voo para Albuquerque saísse, e quando o fez apanhámos turbulências aterradoras.

Quando finalmente aterrámos na cidade mais povoada do Novo México, já eram onze da noite. À meia-noite saímos do aeroporto num Ford Focus de aluguer no qual tínhamos de fazer os quase duzentos quilómetros que nos separavam da remota aldeia no deserto.

O braço engessado não me permitia conduzir, por isso o volante ficou nas mãos de Sarah, que pisou o acelerador para que nos afastássemos da cidade.

Não tardámos a chegar a uma planície erma que parecia não ter fim. A autoestrada perdia-se no horizonte de rochas azuis graças ao efeito do reflexo da lua, até ao ponto de parecer que viajávamos na própria lua.

Talvez devido ao avançado da hora naquele domingo – na verdade, já era segunda-feira –, não nos tínhamos cruzado com nenhum carro desde que saíramos da periferia da cidade. Era uma da manhã e ainda faltavam sessenta quilómetros até à próxima povoação, Socorro, de onde partia a estrada para Carrizozo, o que exigiria pelo menos outra maratona de cem quilómetros.

– Estou moída – disse Sarah enquanto eu observava hipnotizado a paisagem lunar – e, além disso, vejo bastante mal à noite.

– Não te preocupes, a probabilidade de chocares com outro carro nesta autoestrada é extremamente pequena, a não ser que a tua irmã venha contra nós.

– Duvido que se atreva a vir até aqui. De qualquer maneira, também não há razão para a temeres: uma pessoa que te salva a vida não vem logo a seguir tirar-ta.

– Nunca se sabe.

Continuámos a travessia noturna em silêncio. O território que se abria de ambos os lados da estrada era tão imenso e vazio, que dava a impressão de que mal nos movíamos.

Tinha passado muito tempo sem que víssemos nenhuma indicação, quando Sarah me pediu:

– Conta-me qualquer coisa! Tenho os olhos quase a fechar de sono.

– O que queres que te conte?

– Alguma coisa bonita. Uma história do deserto.

Assim de repente, aquilo era um desafio. Comecei a passar mentalmente em revista as lendas que tinha utilizado para os guiões de rádio, antes de trabalhar em La Red e encontrei uma que se podia adequar àquele cenário de solidão azulada.

– Acho que é de Jalil Gibran, o poeta libanês – comecei. – Fala de um homem que andou a vida toda pelo deserto. No final dos seus dias, olhou para trás para ver o caminho percorrido e observou que nalguns lugares havia quatro pegadas e noutros apenas duas. O homem meditou então sobre o seu passado. Tinha reconhecido os seus próprios passos, que às vezes estavam acompanhados pelos de Deus. Levantou então o olhar para o céu e perguntou: «Meu bom Deus, porque é que me abandonaste nos piores momentos?» Ao que Deus lhe respondeu: «Nunca te abandonei. Ali onde vês apenas duas pegadas, levava-te ao colo.»

Sarah pareceu ficar comovida com aquela história e acariciou a minha mão sã com a ponta dos dedos.

– Agora conta-me alguma coisa sobre ti – pedi-lhe. – Sei muito pouco a teu respeito.

– Sabes mais sobre mim do que qualquer outra pessoa – corrigiu-me. – Desde o nosso encontro em Berna que investigamos juntos, comemos juntos, dormimos, acordamos juntos, viajamos na mesma direção… É ao fazer tudo isto que se conhece realmente alguém.

– Sim, mas não sei nada do teu passado. Sei apenas que tens uma irmã chanfrada que te segue pelo mundo e faz justiça com as próprias mãos naqueles que, segundo ela, estão a mais.

– E de que te serviria conhecer o meu passado? Não te basta o que sou agora, neste carro, sob as estrelas?

Pensei durante alguns segundos enquanto a autoestrada continuava a traçar uma reta sem fim no deserto. Finalmente disse:

– Este momento basta-me. Mas por outro lado sei que a nossa viagem vai terminar, de uma maneira boa ou má, e não gosto da ideia de nos separarmos – disse com sinceridade. – Já me acostumei a ti, sabes?

Como sempre fazia, Sarah sorriu e manteve o olhar fixo num horizonte que parecia fugir de nós.

Ao chegar a Socorro, uma pequena e desalinhada cidade do Oeste americano, Sarah deteve-se junto a um modesto Holiday Inn e suspirou, antes de dizer:

– Não aguento mais. São duas da manhã e preciso de dormir. O que achas de deixarmos o último troço da viagem para amanhã?

O rececionista do hotel, um homem raquítico com óculos de armação antiga, examinou os nossos passaportes estrangeiros com grande interesse.

– Os senhores são caçadores de óvnis?

Aquela pergunta deixou-nos estupefactos. Acabei por responder:

– Nem pensar. Temos ar disso?

– Nem por isso, mas os poucos europeus que por aqui passam vêm estudar os avistamentos. O mais famoso foi em 1964. Deu a volta ao mundo. Nunca ouviram falar? Um polícia chamado Lonnie Zamora viu uma nave extraterrestre a espatifar-se num barranco perto daqui. O estrondo da queda ouviu-se em toda a cidade e muitas pessoas de Socorro viram as chamas e o fumo que saía do aparelho.

– Bem, na verdade vamos para Carrizozo – disse, para interromper aquela conversa.

– Ui, isso fica no fim do mundo. Aí sim não há nada, nem sequer discos voadores.