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CARRIZOZO

O deserto é um lugar sem expectativas.

NADINE GORDIMER

Depois de dormir dez horas seguidas numa cama king size só para mim, tomámos um pequeno-almoço americano e voltámos a fazer-nos à estrada debaixo de um sol abrasador.

A paisagem que de noite tinha um encanto lunar, de dia era um vasto areal apto apenas para os lagartos que apareciam entre pedras e plantas. Além disso só se viam quilómetros e quilómetros de terreno deserto que ardia debaixo dos raios do astro rei.

Deixámos para trás as igrejas coloniais de Socorro e atravessámos o Rio Grande até San Antonio, onde apanhámos a estrada 380 em direção a Carrizozo. Uns cem quilómetros para este esperava-nos o lugar onde pretendíamos iniciar novamente a demanda.

Enquanto Sarah prestava atenção à estrada através de uns sofisticados óculos de sol, dediquei-me a contemplar as áridas montanhas que se viam à beira da estrada.

– Se Mileva vive nessa povoação com um nome tão estranho, não será difícil descobri-la.

– Como é que podes ter tanta certeza?

– Tem apenas mil habitantes e, segundo o mapa, encontra-se numa região muito pouco povoada. Não me espantava que tivessem feito explodir a bomba de plutónio ali perto.

– Não digas isso aos locais ou ainda te lincham.

– Isso se não se ocuparem outros de o fazer – acrescentei.

Uma tabuleta castanha pendurada entre dois postes anunciava que tínhamos acabado de entrar em Carrizozo, depois de uma longa hora de travessia no deserto. A povoação parecia ter uma única rua, com alguns estabelecimentos de ambos os lados da estrada.

Ao meio-dia daquela segunda-feira, não se via vivalma.

Demos umas quantas voltas por aquela desolada aglomeração de casas, mas não encontrámos nenhum hotel. Finalmente parámos numa bomba de gasolina, onde um rapaz de aspeto mexicano com um rabo de cavalo se aproximou de nós.

– É para atestar? – perguntou em mexicano exibindo a mangueira. – Dependendo do lugar para onde forem podem ter problemas para encontrar gasolina.

– Vamos ficar aqui – disse Sarah. – Estamos justamente à procura de um sítio para ficar durante alguns dias.

– Uns dias! – exclamou o rapaz. – Basta um par de horas. Se forem ao museu de história de Carrizozo já terão visto tudo.

– Não queremos ver nada, precisamos apenas de um quarto.

– De um quarto… – repetiu surpreendido. – O meu pai tem ali um quarto, em cima do armazém.

Apontou-nos para um edifício de dois andares, do outro lado da estrada. Era de tijolo castanho e parecia estar abandonado há uma eternidade.

– Ele utiliza-o para levar as suas namoradas, mas vou-lhe ligar para saber se o quer alugar.

Segundos depois mantinha uma animada conversa ao telemóvel com o seu pai, a qual incluiu gritos, insultos e piadas privadas. Ao terminar, levantou o polegar em sinal de triunfo e anunciou:

– Disse que se atestarem aqui o depósito e fizerem as refeições no restaurante do meu tio, vos cede o quarto com todo o prazer. Sem pagar – enfatizou. – Querem vê-lo?

Assentimos com a cabeça e o rapaz desapareceu num minúsculo escritório, de onde regressou com um molho de chaves.

– Atravessem com muito cuidado – avisou-nos –, para não serem atropelados.

Olhei para ambos os lados, mas na estrada não se via nenhum carro. O rapaz desatou a rir à gargalhada. Estava a gozar connosco.

O «quarto» do pai afinal era um armazém de latas de gasolinas com uma cama desmontável encostada à parede. A janela tinha tanto pó que mal se conseguia ver a rua.

– Há ar condicionado e tudo – disse o rapaz ligando um aparelho que rugiu como uma locomotiva.

Não me pareceu que Sarah se fosse sentir confortável naquele quarto sórdido com apenas uma cama. Em cima de uma mesa havia até revistas pornográficas com vários anos de uso, por isso desculpei-me:

– A verdade é que não queremos incomodar o seu pai. Agradeça-lhe da nossa parte e diga-lhe…

– Diga-lhe que aceitamos com muito prazer a sua hospitalidade – acrescentou Sarah para meu assombro.

– Dir-lhe-ei – respondeu o rapaz com orgulho. – Não pensem mal dele. É um bom homem. A minha mãe morreu quando eu era pequeno e o papá consola-se com quem pode. É uma sorte ele não a ter visto, minha senhora, senão ainda lhe dava um ataque cardíaco. Foi a Madrid durante uns dias visitar um primo, por isso não precisa do quarto.

– A Madrid! – exclamei. – Só para lá chegar precisa de vários dias.

– Não é assim tanto. A viagem para Albuquerque é uma chatice, mas dali a Madrid são apenas vinte e cinco quilómetros. É uma povoação pequena.

Imaginei que se referia a uma Madrid que ficava no Novo México. Também percebi que em Carrizozo não devia haver muitas diversões, já que o rapaz não parecia ter pressa nenhuma em abandonar o prostíbulo do pai. Enquanto isso, a povoação estava sem abastecimento de gasolina.

– Para além do museu, quando o sol baixar também podem ir a Valle de los Fuegos, que fica a poucos quilómetros daqui. Verão lava que se solidificou há mil e quinhentos anos.

Sarah, que se tinha sentado na beira da cama, devia achar que o rapaz era uma pessoa de confiança, já que decidiu partilhar com ele os nossos planos.

– Na verdade, estamos à procura de uma pessoa. Talvez nos possas ajudar.

– Claro que posso! Conheço toda a gente.

Sentei-me ao seu lado na cama, enquanto Sarah se explicava:

– Procuramos uma mulher de cerca de sessenta anos que se chama Mileva, se é que não mudou de nome. No passado foi uma ativista contra as armas nucleares, como aqueles que se juntam em Trinity.

Esta informação pareceu deixar o rapaz escandalizado, como se o ativismo fosse sinónimo de terrorismo.

– Essa pessoa não vive aqui, pode ter a certeza. Em Carrizozo só há pessoas normais – de repente parecia estar com pressa. – Se precisarem de mais alguma coisa, chamo-me Moisés e estou ao vosso dispor. Agora preciso de me ir embora, mas se precisarem do que quer que seja, chamem-me da janela. Para além de encher os depósitos também faço recados. Já sabem, levar e trazer coisas.

Não percebi se esta última parte tinha um duplo significado ou se era simplesmente a maneira de Moisés falar. Quando fechou a porta do quarto, Sarah e eu olhámos um para o outro. Aquilo significava: o que raio estamos aqui a fazer?