4

A FILHA SECRETA

O que sabe o peixe sobre a água onde nada toda a sua vida?

ALBERT EINSTEIN

Um velhote japonês com cara de poucos amigos abriu-me a porta. Envergava um simples roupão, e pelo olhar inquisitivo que me lançou, era óbvio que não estava à minha espera.

Começava a temer ter sido vítima de uma brincadeira de mau gosto, quando o tal Yoshimura se apresentou e disse:

– O senhor é o quarto desconhecido que chega hoje a minha casa. Virão mais? Digo isto para pôr mais água a ferver. Os seus companheiros já estão a tomar chá.

Acrescentou esta última frase com um leve sorriso, como se no fundo a situação o divertisse.

– Companheiros? Mas do que está a falar? – perguntei, desconcertado, enquanto lhe mostrava o postal. – Eu apenas recebi…

– Sim, eu sei – interrompeu-me –, todos os que estão ali dentro me mostraram um postal igual ao seu. Trata-se de alguma aposta… ou há um programa de televisão por trás disto?

Aquilo tudo era ainda mais estranho do que eu imaginara, por isso decidi desculpar-me perante o senhor e ir-me embora dali, mas o anfitrião já me indicava com a palma da mão que entrasse:

– Insisto que aceite uma chávena de chá. Não tenho nada a ver com esta convocatória, mas se o senhor e os outros estão aqui, por alguma razão há de ser.

Dirigiu-se de seguida ao interior da casa, convencido de que o seguiria. A porta fechou-se lentamente atrás de mim enquanto o acompanhava até uma luminosa biblioteca. Uma parede de vidro dava para um jardim interior de estilo zen: era presidido por uma grande rocha rodeada por um mar de ondas de gravilha.

A arquitetura daquela vivenda pareceu-me tão extraordinária – não encaixava nos modelos habituais de uma povoação costeira –, que demorei a reparar nas pessoas que falavam em voz baixa à volta de uma ampla mesa de teca.

– Gosto de arquitetura – disse Yoshimura ao perceber o meu interesse pela casa –, se bem que pelos vistos alguém descobriu a minha paixão por Einstein. Não se quer juntar à tertúlia?

Imerso na confusão, dirigi-me para a mesa como um autómato. Estavam lá dois homens com um ar antipático e uma mulher na casa dos trinta de porte distinto. Ao ocupar a cadeira vaga, perguntei-me se algum deles teria maquinado aquele estranho encontro.

Depois de me apresentar, o anfitrião pediu licença aos convidados com a desculpa de pôr mais água ao lume. Incómodo com a situação, apresentei-me brevemente antes de equacionar como cairia o chá amargo no meu estômago vazio.

O primeiro a estender-me a mão foi um doutorado em física da Universidade de Cracóvia. Aparentava uns cinquenta anos e as grossas lentes dos óculos aumentavam de forma monstruosa uns olhos já de si esbugalhados. Afagou a barba arruivada antes de dizer num castelhano correto:

– O meu apelido é impronunciável para vocês, de modo que me podem tratar por Pawel, que é o meu primeiro nome.

O próximo a apresentar-se foi Jensen, um dinamarquês pequeno e esquálido cuja idade era difícil de determinar. Os seus traços infantis contrastavam com um rosto sulcado pelas rugas e uma calvície incipiente.

– Apesar de viver em Alicante, sou o editor da Mysterie – explicou com um forte sotaque nórdico –, uma revista de divulgação científica com mais de trinta mil subscritores no meu país. Dedicámos o último tema de capa aos sete enigmas de Einstein.

O olhar de desprezo de Pawel, que o devia considerar um charlatão, congelou a pergunta que eu estava prestes a fazer-lhe: quais são os sete enigmas?

Enquanto Yoshimura regressava à sala com o chá quente e biscoitos, foi a vez da mulher de trinta e poucos anos. Por baixo da camisola preta de gola alta adivinhava-se uma silhueta esbelta. Chamou-me a atenção a palidez do seu rosto, emoldurado por um cabelo escuro que lhe dava pelos ombros. Nele, os seus olhos azuis brilhavam como estrelas diurnas.

– O meu nome é Sarah Brunet. Sou francesa mas há já quatro anos que estou na Complutense, a terminar a minha tese sobre Mileva Marić, a primeira mulher de Einstein.

– Pobre Mileva – interrompeu Jensen –, tantos anos a fazer o trabalho sujo de Einstein para acabar descartada como um trapo velho. Sem os cálculos dela, a Albert nem lhe teriam dado uma bolsa de doutoramento.

– Isso que está a dizer não tem nenhum fundamento – respondeu Pawel com autoridade. – Não está provado que Mileva tenha participado de forma decisiva nos seus cálculos. Na verdade, nem sequer se chegou a licenciar no Instituto Politécnico de Zurique, onde conheceu Einstein.

A francesa olhou para ambos com frieza, antes de acrescentar numa voz suave mas firme:

– Não obteve o certificado porque o bom do Albert a tinha deixado grávida. Naquela época, era um escândalo darem à luz sem estarem casados. Por isso deixou o instituto, mas continuou a estudar por sua conta.

– E o que aconteceu ao menino? – perguntei.

– A menina – corrigiu-me ela – nasceu em 1902, um ano antes de se casarem. Deram-lhe o nome de Lieserl, que é o diminutivo de Elisa, e nasceu na cidade sérvia da mãe enquanto Einstein trabalhava no escritório de patentes de Berna. Acredita-se que morreu de escarlatina um ano depois.

– Talvez seja útil para a sua tese saber que existe uma versão diferente dos factos – acrescentou Jensen com uma expressão triunfante. – Segundo fontes mais atuais, Lieserl não morreu um ano depois, foi sim dada para adoção a uma amiga íntima de Mileva chamada Helene Savić.

– Conheço essa hipótese – retorquiu a francesa sem perder a calma –, a menina passou então a chamar-se Zorka Savić e acredita-se que viveu até 1990.

Ao chegar a este ponto, o doutorado em física pareceu perder a paciência:

– Mas a quem é que interessa esse tipo de coscuvilhices? Estamos a falar do pai da relatividade e, mesmo sem querer, também da física quântica.

– A história de Lieserl tem interesse para este assunto – contra-atacou Jensen – porque está envolta em enigmas. Por acaso sabia que a sua existência era totalmente desconhecida pelos biógrafos de Einstein até 1986?

– Isso é verdade – acrescentou Sarah. – Einstein manteve sempre em segredo o nascimento dessa filha, que não veio a público até a sua neta legítima encontrar um arquivo com correspondência entre Albert e Mileva.

Ver a sua hipótese ser corroborada pareceu insuflar forças ao diretor da Mysterie que, ignorando os olhares de reprovação de Pawel, elevou o tom de voz para declarar:

– Eu atrever-me-ia a ir mais longe e a colocar uma pergunta na mesa: e se a primeira filha de Einstein não morreu na década de 1990? E se ainda está viva e é depositária de um segredo nunca revelado pelo seu pai? Não nos podemos esquecer de que ele entregou a totalidade do prémio Nobel a Mileva, de quem já se tinha divorciado. É possível que a sua filha Lieserl tenha obtido nos últimos dias de vida de Albert outro tipo de compensação. Por exemplo, uma última resposta.

Quase senti vergonha de ver as minha palavras repetidas – sem dúvida que tinha ouvido o programa de rádio – na boca daquele especulador, que além disso não conseguia tirar os olhos da francesa.

– Mesmo que essa Lieserl que tanto vos interessa estivesse viva – acrescentou Pawel com cinismo – e fosse depositária de algum segredo científico do seu pai, coisa que me parece pura fantasia, não sei se aos cento e oito anos estaria em condições de o revelar. Há que ter a mente clara para falar de física, cavalheiros.

Aquela alfinetada dirigia-se não só ao diretor da revista, mas também a Sarah Brunet e a mim próprio, apesar de eu ainda não me ter atrevido a abrir a boca.

Enquanto enchia novamente as chávenas, Yoshimura disse num tom conciliador:

– Sabiam que na cerimónia japonesa do chá os assuntos polémicos estão proibidos? Só se pode conversar sobre temas que tragam harmonia aos participantes, como por exemplo as obras de arte ou a beleza do mundo em cada estação.

Sarah sorriu abertamente perante este comentário. Pelos vistos, também ela se sentia aliviada por deixar aquele assunto polémico. Enquanto a observava pelo canto do olho, constatei para mim mesmo que ela era o que melhor representava a beleza do mundo naquela sala.

Depois de colocar o bule de ferro em cima da mesa, o japonês disse:

– Agora que se acalmaram, vou contar-lhes uma bonita história.