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– Está alguém na cabana – disse o ajudante ao xerife. – Não escondido; mas a morar lá. 

– Vá ver – ordenou o xerife. 

O ajudante assim fez e disse, quando regressou: 

– É uma mulher. Uma rapariga. E, pelo que vi, está preparada para lá ficar por muito tempo. E o Byron Bunch está acampado à mesma distância da cabana como daqui aos correios. 

– O Byron Bunch? – disse o xerife. – Quem é a mulher? 

– Não sei. Nunca a vi. É uma rapariga. Ela contou-me tudo. Ainda eu não tinha entrado e já ela me estava a contar, como se tivesse o discurso preparado. Como se estivesse habituada a contar toda a história a toda a gente. E acho que está, depois de ter vindo até aqui desde algures no Alabama, à procura do marido. Ele veio primeiro, para arranjar trabalho, e passado algum tempo ela meteu pés ao caminho e disseram-lhe que ele estava aqui. Nessa altura entrou o Byron e disse-me que me podia contar o resto. Disse que estava a pensar vir-lhe contar. 

– O Byron Bunch – diz o xerife. 

– Sim, senhor – diz o ajudante. E acrescenta: – Ela está prestes a ter uma criança. Já não falta muito. 

– Uma criança? – diz o xerife, fitando o ajudante. – E vem do Alabama. Seja lá donde for. Não é possível que me esteja a dizer uma coisa dessas do Byron Bunch. 

– Não, nem pensar – diz o ajudante. – Não estou a dizer que foi o Byron. Nem o Byron diz que o filho é dele. Estou só a contar-lhe o que ele me contou. 

– Ah, estou a ver – diz o xerife. – O motivo por que ela lá está. Então é um dos dois tipos. É do Natal, não é? 

– Não. Pelo menos foi o que me disse o Byron. Veio cá para fora comigo, para ela não ouvir, e contou-me tudo. Disse que estava a pensar vir-lhe contar. É do Brown. Só que o nome dele não é esse. É Lucas Burch. E depois contou-me como o Brown ou Burch veio do Alabama. Disse à rapariga que vinha à procura de trabalho, para montar casa e mandá-la chamar. Mas com a hora a aproximar-se e sem saber nada dele nem ao menos onde estava, resolveu não esperar mais e meteu pés ao caminho, perguntando a quem encontrava se conheciam um tal Lucas Burch. Veio à boleia, sempre a perguntar a toda a gente que encontrava se o conheciam. Até que a certa altura alguém lhe disse que havia um tipo chamado Burch ou Bunch ou coisa parecida a trabalhar na serração de Jefferson, e ela veio para cá. Chegou no sábado, numa carroça, quando nós estávamos todos no local do crime, e ela foi à serração e descobriu que o nome do tipo era Bunch e não Burch. E o Byron disse-me que lhe disse logo, sem pensar nas consequências, que o marido estava em Jefferson. E depois disse que ela o obrigou a revelar onde o Brown vivia. Mas ele não lhe disse que o Brown ou Bunch está envolvido com o Natal neste crime. Só lhe disse que o Brown estava fora a tratar de negócios. Acho que se lhe pode bem chamar negócios. Trabalho, pelo menos. Nunca vi ninguém querer tanto ganhar mil dólares nem sofrer tanto para os apanhar. E ela então disse que a casa do Brown era certamente a que o Lucas Burch lhe tinha prometido e mudou-se para lá, para esperar que o Brown volte da tal viagem de negócios. O Byron disse que não pôde fazer nada para a impedir, porque não lhe quis contar a verdade acerca do Brown depois de, de certa forma, já lhe ter mentido. Disse ainda que já tinha pensado vir contar-lhe antes, mas que você descobriu tudo muito depressa, antes de ele ter tempo de a deixar bem instalada. 

– Lucas Burch? – disse o xerife. 

– A mim também me surpreendeu um bocado – diz o ajudante. – O que é que pensa fazer? 

– Nada – diz o xerife. – Acho que eles não estão a fazer mal nenhum na cabana. E a casa não é minha para a mandar sair de lá. E, como o Byron lhe disse, o Burch ou Brown, ou seja lá o nome qual for, ainda vai andar muito ocupado por mais algum tempo. 

– Está a pensar dizer ao Brown que ela está cá? 

– Acho que não – diz o xerife. – Não é da minha conta. Não me interessam as mulheres que ele deixou ficar no Alabama, ou noutro sítio qualquer. O que me interessa é o marido que ele parece ter tido desde que chegou a Jefferson. 

O ajudante deu uma gargalhada. – Acho que tem toda a razão. – Põe-se muito sério, pensativo, e acrescenta: – Acho que ele morre se não conseguir deitar a mão aos mil dólares. 

– Pois eu acho que não – diz o xerife. 

 

 

Às três da manhã de quarta-feira chega à cidade um negro montado numa égua em pelo, dirige-se a casa do xerife e acorda-o. Tinha vindo diretamente de uma igreja para negros situada a trinta quilómetros, onde decorria um encontro evangélico. Na noite anterior, a meio de um hino, ouviu-se um estrondo nas traseiras da igreja e, quando se voltaram, os fiéis viram um homem parado à entrada da porta. Apesar de a porta não estar fechada à chave, nem sequer no trinco, o homem tinha aparentemente posto a mão na maçaneta e aberto a porta de rompante, atirando-a contra a parede, de tal maneira que o estrondo se sobrepôs ao alarido das vozes, como se fosse um tiro de pistola. Em seguida, o homem atravessou a correr a igreja, onde os cânticos haviam parado bruscamente, e dirigiu-se para o púlpito onde o pregador parecia petrificado, ainda com as mãos erguidas e a boca aberta. Só então viram que o homem era branco. Na penumbra cavernosa que as duas lamparinas ainda mais acentuavam só conseguiram ver como ele era, quando já ia a meio da nave central. Foi então que viram que a cara não era preta; uma mulher começou a gritar e as pessoas que estavam nos últimos bancos deram um salto e desataram a correr para a porta; uma outra mulher, no banco das carpideiras e já em estado de semi-histeria, deu um salto e começou a rodopiar, olhando para o homem de relance com os olhos em alvo e a gritar: – É o demónio! É Satanás em pessoa! – Depois desatou a correr, como se estivesse cega, indo direita a ele; mas ele atirou-a ao chão sem se deter, passando-lhe por cima e continuando a avançar para o púlpito entre os rostos colocados em pose de gritar, que se eclipsavam à sua passagem; chegado ao púlpito, agrediu o padre. 

– Mesmo ness’altura ninguém se ’tava a metê com ele – disse o mensageiro. – ’Tava tudo a acontecê muito depressa e ninguém o conhecia nem sabia quem ele era ou o que queria dali. As mulheres continuavam a gritá e a guinchá e ele vomitou pra cima do púlpito e deitou a mão aos gorgomilos do Irmão Bedenberry, a tentá trazê-lo pra fora do púlpito. Víamos o Irmão Bedenberry a conversar com ele, a tentá acalmá-lo, e ele aos empurrões e às bofetadas ao Irmão Bedenberry. E as mulheres a guinchá e a gritá tanto que não se ouvia o qu’o Irmão Bedenberry dizia, só dava pra perceber que não ripostava nem nada, e então alguns dos confrades mais velhos, os diáconos, foram ter com ele pra ver se o convenciam a largar o Irmão Bedenberry e ele deu meia-volta, rodopiou e atirou com o Pappy Thompson, um velho já de setenta anos, pra cima das pessoas que estavam nos bancos das carpideiras; depois vomitou, pegou numa cadeira, levantou-a no ar e ameaçou os outros homens, obrigando-os a recuar. Entretanto as pessoas continuavam a fazer um grande alarido e procuravam sair da igreja a todo o custo. Nisto, o homem deu meia-volta e saltou para dentro do púlpito, depois de o irmão Bedenberry ter saltado pra fora pelo outro lado, e deixou-se ficá ali parado... todo ele era lama dos pés à cabeça, as calças, a camisa... e com o queixo preto das patilhas... de mãos erguidas como um pregador. Nisto, começou a gritá e a praguejá, virado pros crentes, e a amaldiçoá Deus ainda mais alto do qu’ os gritos das mulheres, enquanto alguns dos homens tentavam segurar o Roz Thompson, o filho da filha do Pappy Thompson, que media um metro e noventa e tinha uma navalha aberta na mão, e não parava de gritar: «Eu mato-o. Larguem-me. Ele bateu no meu avô. Eu mato-o. Larguem-me. Por favor, larguem-me»; as pessoas saíam de roldão pela porta fora, e ele no púlpito a amaldiçoar Deus enquanto os homens arrastavam o Roz Thompson para fora pelas traseiras e o Roz só a pedir-lhes para o soltarem. Lá conseguiram tirá o Roz da igreja e voltámos para o mato, e ele no púlpito sempre a gritá e a praguejá. Por fim, lá acabou por se calar e vimo-lo sair a porta e ficar parado cá fora. E os homens tiveram de agarrar o Roz outra vez. Ele deve ter ouvido a algazarra que faziam a segurar o Roz, porque desatou a rir. Ficou parado à porta, com a luz por trás, a rir às gargalhadas, e depois começou a praguejá outra vez e vimo-lo pegá na perna dum banco e arremessá-la para trás das costas. Ouvimos a primeira lanterna a estilhaçar-se e a igreja ficou mais escura e logo a seguir foi a outra e a igreja ficou às escuras e deixámos de o ver. No sítio onde estavam a tentar segurar o Roz rebentou uma grande zaragata, e só se ouvia os homens bichanarem muito alto: «Segurem-no! Segurem-no! Agarrem-no! Agarrem-no!» Nisto alguém gritou: «Ele soltou-se!» Foi então que ouvimos o Roz a corre pra igreja e vai o Diácono Vines e diz-me assim: «O Roz vai matá-lo. Salta pra uma mula e vai chamar o xerife. Conta-lhe o que viste.» E ninguém se ’tava a metê co’ele – disse o negro. – A gente nem sequé sabia o nome dele pro podê chamá. Nunca o tínhamos visto. E nós a tentá segurá o Roz. Mas o Roz é homem muito forte e ele tinha atirado ao chão o avô do Roz, com setenta anos, e o Roz co’a navalha na mão, sem s’ importá muito se tinha de dar um golpe em alguém pr’ abrir caminho até à igreja onde estava o homem branco. Mas Deus é testemunha que nós tentámos segurá o Roz. 

Isto foi o que ele contou, porque era tudo o que sabia. Tinha partido logo a seguir: não sabia que na altura em que estava a contar o episódio, o negro Roz jazia inconsciente numa cabana perto dali, com o crânio fraturado, pois Natal, no limiar da porta agora às escuras, tinha-o atingido com a perna do banco, quando Roz entrou pela igreja dentro. Natal desferiu um único golpe, com força, selvaticamente, ao ouvir o tropel de passos, atingindo o vulto volumoso que irrompia porta adentro, ouvindo em seguida estatelar-se por cima dos bancos tombados e aí se quedar, inerte. Logo a seguir também, Natal saltou cá para fora, para o terreiro, aí se quedando por um momento, em pose ágil, ainda com a perna do banco na mão, fresco e nem sequer ofegante. Aparentava grande frescura e não se lhe via suor; a frescura da noite descera sobre ele. O adro da igreja era uma pálida meia-lua de terra batida, calcada por muitos pés, rodeada de árvores e mato. Natal sabia que o mato estava pejado de negros: sentia-lhes o olhar. «Olham, olham», pensou. «Nem sequer sabem que não me podem ver.» Respirou fundo; curiosamente, descobriu que ainda tinha a perna do banco na mão, como se lhe tomasse o peso, como se nunca lhe tivesse tocado. «Amanhã faço-lhe uma marca», pensou. Encostou a perna à parede com todo o cuidado e tirou da camisa um cigarro e um fósforo. Ao acender o fósforo, fez uma pausa e, enquanto a chama irrompia tíbia ganhando vida, manteve-se quieto, com a cabeça ligeiramente virada. Eram cascos o que ouvia. Ouviu-os ganhar alento, cada vez mais rápidos e depois diminuírem – disse em voz alta, mas não alto. – Vai para a cidade, levar a boa nova. – Acendeu o cigarro e atirou o fósforo para longe, continuando parado, a fumar, sentindo os olhos dos negros pregados na minúscula brasa incandescente. Apesar de ali ter permanecido até o cigarro chegar ao fim, manteve-se sempre alerta. Tinha-se colocado de costas para a parede e segurava outra vez a perna do banco com a mão direita. Fumou o cigarro até ao fim, atirou-o para longe, a cintilar, o mais longe que foi capaz, na direção dos arbustos onde sentia os negros acoitados. – Uma beata para vocês, malta – disse, fazendo estalar a voz, intempestiva, no silêncio. Os que estavam atrás dos arbustos viram o cigarro a brilhar em direção à terra, aí cintilando uma derradeira vez. Mas não o puderam ver quando se foi embora, nem que direção tomou. 

Às oito da manhã do dia seguinte, chegou o xerife, com o destacamento e os cães, e efetuaram imediatamente uma captura, se bem que os cães nada tivesse a ver com isso. A igreja estava deserta; não se via um único negro. O destacamento entrou na igreja e os homens contemplaram os destroços em silêncio, voltando a sair. Os cães tinham detetado imediatamente qualquer coisa, mas antes de os soltarem um ajudante encontrou um pedaço de papel entalado na fenda de uma tábua solta na parede lateral da igreja. Era óbvio que alguém o tinha lá metido. Ao abri-lo, viram que se tratava de um pacote de cigarros vazio que tinha sido aberto e alisado, com uma inscrição a lápis na parte mais branca, a interior. A mensagem estava rabiscada, como se feita por mão inexperiente ou no escuro, e não era longa. Estava dirigida ao xerife, pessoalmente, resumia-se a uma frase única e impublicável e não estava assinada. – Eu não lhe disse? – disse um dos homens. Também ele estava coberto de lama e com a barba por fazer, como a presa que ainda nem sequer tinham avistado; o seu rosto parecia tenso e algo tresloucado pela frustração e a indignação, e a sua voz era rouca, como se o homem tivesse andado a gritar ou a falar de mais ultimamente. – Eu sempre disse! Eu bem lhe disse! 

– Disseste-me o quê? – perguntou o xerife, numa voz calma, neutra, fixando no outro um olhar calmo, neutro, com a mensagem na mão. – O que foi que me disseste, e quando? – O outro olhava para o xerife, indignado, desesperado, no limiar da histeria; ao olhar para ele, o ajudante pensou: «Se este não recebe a recompensa, morre.» O homem tinha a boca aberta, embora muda, e fitava o xerife com uma espécie de pasmo incrédulo e perplexo. – E eu também já te disse – disse o xerife, na sua voz fria, controlada. – Se não te agrada a maneira como dirijo as operações, podes ficar à espera na cidade. Há lá um lugar ótimo para esperares, e muito fresco, onde não vais ficar tão acalorado como aqui ao sol. Então, disse ou não disse? Vá, responde. 

O outro fechou a boca e desviou os olhos, num esforço evidente; e, com esforço igualmente evidente, disse numa voz seca e sufocada: – Sim. 

O xerife virou-se pesadamente e amarfanhou a mensagem. – Então, faz por guardar isso bem na mente – disse. – Se é que tens mente para lá guardares alguma coisa. – Estavam reunidos em círculo, à luz de um sol matinal, com rostos serenos e interessados. – Sobre o que tenho as minhas dúvidas, que são também as do Senhor, caso tu ou outro qualquer estejam interessados em saber. – Alguém soltou uma gargalhada, uma só. – Caluda – disse o xerife. – Toca a andar. Solta os cães, Bufe. 

Os cães foram largados, ainda pela trela. Encontraram logo o rasto. O rasto era inequívoco e fácil de seguir na orvalhada. Aparentemente, o fugitivo não se tinha esforçado minimamente para o esconder. Até puderam ver as marcas dos seus joelhos e mãos no sítio onde se ajoelhou para beber água de uma nascente. – Até hoje, nunca conheci nenhum assassino com mais intuição para adivinhar os movimentos dos seus perseguidores – disse o ajudante. – Mas o imbecil nem sequer suspeita que podemos usar cães. 

– Temos vindo a largar os cães uma vez por dia desde domingo e ainda não o apanhámos – disse o xerife. 

– Os outros rastos eram frios. Até hoje ainda não tivemos nenhum rasto quente. Mas ele finalmente cometeu um erro. É hoje que o apanhamos. Talvez ainda antes do meio-dia. 

– Sempre quero ver – disse o xerife. 

– Vai ver – disse o ajudante. – Este rasto vai lá ter direitinho que nem a linha do comboio. Até quase eu conseguia segui-lo. Olhe, até se veem as pegadas. O imbecil nem sequer teve cabeça para vir para a estrada, para a poeira, calcorreada por muitos outros e onde os cães não conseguem farejá-lo. Os cães vão chegar ao fim das pegadas antes das dez. 

O que os cães fizeram. De repente, o rasto curvou acentuadamente em ângulo reto. Seguiram-no e saíram para uma estrada, que começaram a percorrer atrás dos cães ávidos, farejando de cabeça baixa, que, um pouco mais à frente, viraram para a berma onde desembocava um trilho vindo de um armazém de algodão de uma plantação vizinha. Os animais começaram a ladrar, agitados, dando esticões às trelas, soltando latidos sonoros, angustiados, estridentes; a excitação era tanta que até ganiam na ânsia de se libertarem. 

– Esta agora, é o imbecil! – disse o ajudante. – Parou aqui para descansar: aqui estão as pegadas: os mesmos tacões de borracha. Agora, não leva nem dois quilómetros de avanço! Vamos, rapazes! – Seguiram em frente: as trelas iam esticadas e os cães não paravam de ladrar, levando os homens a trote. O xerife voltou-se para o que tinha a barba por fazer. 

– Ora aí está a tua oportunidade de ires à frente para o apanhares e receberes os mil dólares. Porque não o fazes? 

O homem não respondeu; nenhum deles estava com forças, ou fôlego, para falar, especialmente depois de os cães, percorrido cerca de quilómetro e meio, sempre a puxarem e a ladrarem, terem saído da estrada e metido por um carreiro que subia encosta acima até desembocar numa seara. Aí chegados pararam de ladrar, mas a sua ansiedade pareceu aumentar ainda mais, obrigando os homens a correr. Por detrás do milho da altura de um homem, havia uma cabana de negros. – Ele está lá dentro – disse o xerife, puxando a pistola. – Agora muito cuidado, rapazes. Ele já deve estar armado. 

Tudo foi feito com perícia e subtileza: a casa cercada por homens ocultos de pistolas em riste, enquanto o xerife, seguido de perto pelo ajudante, se esgueirava veloz e ligeiro, apesar da sua corpulência, indo colar-se à parede da cabana, fora do alcance de qualquer das janelas. Ainda colado à parede, contornou a casa a correr, abriu a porta com um pontapé e entrou de rompante na cabana de pistola em riste. Lá dentro estava uma criança negra. A criança estava nua, sentada na lareira, em cima das cinzas frias, a comer. Parecia estar sozinha, embora logo a seguir tivesse aparecido uma mulher vinda de uma porta interior, que, boquiaberta, quase deixou cair a caçarola de ferro que tinha na mão. Trazia nos pés uns sapatos de homem que um dos homens identificou como tendo pertencido ao fugitivo. Depois, falou-lhes do homem branco que tinha aparecido na estrada ao amanhecer e tinha trocado de sapatos com ela, tendo ele levado os sapatos do marido, que ela calçava na altura. O xerife ouviu-a com atenção. – Isso passou-se junto a um armazém de algodão, não foi? – perguntou. – Ela disse-lhe que sim. O xerife voltou para junto dos seus homens e dos cães ansiosos, seguros pelas trelas, e pôs-se a olhar para os cães enquanto os homens o crivaram de perguntas até se calarem, sem tirarem os olhos dele. Viram-no então meter a pistola no bolso, virar-se e dar pontapés aos cães, um a cada cão, brutais. – Levem esses rafeiros estúpidos de volta à cidade – disse. 

Mas o xerife era um bom polícia. Sabia tão bem como os seus homens que ia voltar ao armazém de algodão onde estava convencido de que Natal se tinha escondido durante todo este tempo, embora agora soubesse que Natal não ia lá estar quando chegassem. Só muito a custo conseguiram trazer os cães da cabana, pelo que foi já debaixo do sol intenso das dez horas que cercaram o armazém com toda a perícia e cuidado, invadindo-o de surpresa de pistolas em punho, segundo todas as normas e sem réstia de esperança, para darem de caras com uma ratazana aterrorizada. Pelo sim pelo não, o xerife mandou buscar os cães, que se tinham recusado terminantemente a aproximar-se da cabana; recusavam-se a sair da estrada, fazendo finca-pé e puxando pelas coleiras em simultâneo, com as cabeças viradas para trás e apontadas estrada abaixo, em direção à cabana de onde tinham acabado de ser trazidos de rastos. Foi necessária a força de dois homens para eles virem, mas, mal as trelas abrandaram, saltaram todos ao mesmo tempo, pondo-se a correr à volta do armazém e atirando-se às marcas que as pernas do fugitivo tinham deixado no capim alto e orvalhado que crescia à sombra do barracão, para imediatamente voltarem a correr para a estrada, levando os dois homens atrás deles de rastos ao longo de uns bons cinquenta metros, antes que os homens pudessem prender as trelas a uns arbustos para suster os cães. Desta vez o xerife nem se deu ao trabalho de lhes dar uns pontapés. 

 

 

Por fim, o tumulto e o alarido, o som e a fúria da caçada dissiparam-se na distância e deixou pouco a pouco de os ouvir. Ele não estava no armazém de algodão quando o homem passou com os cães, como o xerife pensava. Só lá parou o tempo suficiente para apertar os sapatos: uns sapatos pretos, uns sapatos pretos a cheirar a negro. Parecia que tinham sido talhados em ferro com um machado rombo. Vendo como eram grosseiros, rudes e desajeitadamente informes, soltou um «Ah!» entre dentes. Parecia-lhe estar a ver-se perseguido por homens brancos até finalmente se precipitar no abismo negro que há trinta anos esperava por ele, tentando afogá-lo, e no qual acabara agora por cair, levando nos tornozelos a marca do indicador de nível preciso e indestrutível do movimento ascendente dessa maré. 

A madrugada acabou de despontar, nasceu o dia: essa latência solitária e cínzea povoada do despertar hesitante e tranquilo dos pássaros. O ar, nos pulmões, sabe a água da nascente. Ele respira fundo, devagar, sentindo-se ele próprio, a cada inspiração, difuso na cínzea neutralidade, irmanado com a solidão e o silêncio que nunca conheceu fúria ou desespero. «Era tudo o que eu queria», pensa ele, num deslumbramento pausado e silencioso. «Tudo o que eu queria nestes trinta anos. Não me parece que seja pedir de mais para trinta anos.» 

Pouco dormiu desde quarta-feira, e agora uma nova quarta-feira chegou e partiu, embora ele nem o saiba. Quando pensa no tempo, parece-lhe agora que viveu trinta anos do lado de dentro de uma correnteza de dias organizados por nomes e números, como as estacas de uma vedação, e que uma noite adormeceu e, ao acordar, se viu do lado de fora. Depois da fuga naquela sexta-feira, ainda tentou durante algum tempo, pela força do hábito, manter a noção dos dias. Uma vez, depois de ter passado a noite numa meda de feno, acordou a tempo de ver a quinta despertar. Antes do clarear do dia, viu uma luz acender-se amarelada na cozinha e, depois, ainda na penumbra, ouviu as pancadas pausadas, secas de um machado, e o ruído de passos, passos humanos, no estábulo ali perto, entre o rumor do gado estremunhado. Em seguida sentiu o cheiro a fumo e a comida, comida a escaldar, e começou a repetir incessantemente para si mesmo Não como nada desde não como nada desde tentando lembrar-se de quantos dias tinham passado desde aquela sexta-feira em Jefferson, no restaurante onde tinha entrado, até que, algum tempo depois, depois de esperar em silêncio que os homens comessem e fossem para o campo, o nome do dia da semana lhe parecia mais importante do que a comida. Porque, quando finalmente os homens partiram e ele desceu da meda, aparecendo à luz do sol cor de junquilho, e se dirigiu para a porta da cozinha, não foi comida que pediu. Fora essa a sua intenção. Mas agora sentia as palavras duras a martelarem-lhe na mente, a quererem sair da boca. Então, aquela mulher dura e cadavérica veio abrir a porta e olhou para ele – era visível nos olhos dela o choque e o medo ao tê-lo reconhecido – e enquanto pensava Ela sabe quem eu sou. Também já ouviu falar de mim ouviu a boca dizer serenamente: – Pode dizer-me que dia é hoje? Só quero saber que dia é hoje. 

– Que dia é? – A cara dela estava tão cadavérica como a dele, tão cadavérica como o corpo e, como ele, tão incansável e exausta. 

– Vá-se embora! É terça-feira! Vá-se embora! Senão, chamo o meu marido! – disse ela. 

– Obrigado – disse ele, serenamente, enquanto a porta se lhe fechava com força na cara. Depois ia a correr. Não se lembrava de ter começado a correr. Primeiro pensou que ia a correr em direção a algum destino de que a corrida se tivesse lembrado de repente, pelo que a mente não precisava de se preocupar em saber por que razão ia a correr, uma vez que não era difícil ir a correr. Era até muito fácil. Sentia-se leve, imponderável. Mesmo correndo a toda a velocidade, os seus pés pareciam deslocar-se lentamente, levemente, e propositadamente ao acaso, sobre a terra, sem consistência, até ele cair. Nada o fez tropeçar. Caiu apenas, ao comprido, convencido a princípio de que ainda ia a correr. Mas estava por terra, caído de bruços numa vala pouco funda na beira de um terreno lavrado. – Acho que o melhor é levantar-me – disse, intempestivamente. Ao sentar-se, descobriu que o sol, a meia altura no céu, brilhava agora por cima dele na direção oposta. A princípio, julgou que estava apenas virado para o outro lado, mas logo se apercebeu de que era por a tarde estar a chegar ao fim. Que era ainda manhã quando tinha caído em plena corrida e que, embora tivesse a impressão de se ter levantado de imediato, já era quase noite. «Estive a dormir», pensou. «Dormi mais de seis horas. Devo ter adormecido enquanto corria, sem dar por isso. Foi isso que aconteceu.» 

Não estava surpreendido. O tempo, os intervalos de luz e trevas tinham há muito deixado de fazer sentido. Sucediam-se agora, aparentemente instantâneos, entre dois movimentos das pálpebras, sem aviso. Nunca sabia quando ia passar de um para o outro, quando ia descobrir que tinha adormecido sem se lembrar de se ter deitado, ou dar consigo a caminhar sem se lembrar de ter acordado. Por vezes parecia-lhe que uma noite de sono, passada no feno, numa vala ou debaixo de um telheiro abandonado, era imediatamente seguida de uma nova noite, sem o dia de permeio, sem claridade que lhe iluminasse a fuga; que a um dia se seguia um outro dia cheio de pressa fugitiva, sem noite alguma entre os dois, sem intervalo para descansar, como se o sol não se tivesse posto, mas sim rodado no céu antes de atingir o horizonte e voltado para trás. Quando adormecia a caminhar ou até quando se ajoelhava numa nascente para beber, nunca sabia se os olhos se iam voltar a abrir para a claridade do sol ou para as estrelas. 

Durante algum tempo a fome era permanente: umas vezes apanhava a fruta podre e bichosa que encontrava, para comer; outras, entrava nas searas e arrancava espigas de milho maduro, tão ásperas como raspadores de batata, que roía avidamente. Só pensava em comer, sonhando com pratos cheios de comida. Lembrava-se daquela refeição posta para ele na mesa da cozinha três anos atrás e revivia a força e a deliberação com que arremessara os pratos contra a parede, numa espécie de convulsa e cruciante agonia de arrependimento, remorso e raiva. Até que um dia deixou de sentir fome. Aconteceu de repente, serenamente. Sentiu-se calmo, apaziguado. No entanto, sabia que tinha de se alimentar. Obrigava-se então a comer a fruta podre e as espigas duras que encontrava, mastigando-as devagar, sem lhes sentir o gosto. Comia-as em enormes quantidades, com crises subsequentes de diarreias de sangue. Porém, logo a seguir, sentia-se novamente obcecado com a necessidade premente de comer. Tentava lembrar-se da última vez que comera comida cozinhada, comestível. E então sentia, lembrava-se de uma casa algures, uma cabana. Casa ou cabana, de brancos ou negros: não sabia ao certo. Depois, quando se quedava sentado, muito quieto, com uma expressão de espanto arrebatado no rosto encovado, doentio, com a barba por fazer, sentiu o cheiro a negros. Imóvel (estava sentado, encostado a uma árvore ao lado de uma nascente, com a cabeça inclinada para trás, as mãos pousadas no colo, o rosto exausto e sereno), sentiu o cheiro e viu pratos de negros, comida de negros. Estava dentro de um quarto. Não se lembrava de como tinha vindo ali parar. Porém, o quarto estava impregnado de uma consternação abrupta, como se de fuga, como se os ocupantes o tivessem abandonado à pressa, há pouco tempo, atemorizados. Estava sentado a uma mesa, à espera, sem pensar em nada, mergulhado no vazio, naquele silêncio impregnado de fuga. Nisto, viu comida à sua frente, trazida de repente por mãos esguias e negras que logo fugiam mal pousavam os pratos. Parecia-lhe ouvir à sua volta, sem os ouvir, gemidos de terror e desespero, mais suaves que suspiros, enquanto mastigava e engolia. «Da outra vez era uma cabana», pensou. «E eles estavam cheios de medo. Com medo de um irmão.» 

Nessa noite algo de muito estranho lhe ocorreu. Estava já deitado, mas ainda acordado, sem sentir necessidade de dormir, como quando preparava o estômago para receber a comida que ele parecia não desejar nem precisar. Era estranho na medida em que não conseguia encontrar nem causa nem motivação nem explicação para o facto. Descobriu que estava a tentar calcular que dia da semana seria. Era como se agora sentisse finalmente uma necessidade premente de riscar do calendário os dias já decorridos, para aferir com precisão o tempo transcorrido relativamente a um objetivo, dia ou ato bem definidos, sem o ultrapassar nem ficar aquém. Entrou no estado de coma em que o seu sono agora se transformara com essa necessidade em mente. Quando acordou na penumbra orvalhada da madrugada, essa necessidade estava de tal maneira cristalizada que já não lhe parecia estranha. 

É de madrugada, o dia acabou de raiar. Ele ergue-se, desce até à nascente e tira do bolso a navalha, o pincel e o sabão. Mas está ainda muito escuro para ver a cara refletida na água com clareza e, por isso, senta-se junto à nascente e espera até poder ver melhor. Depois, enche a cara de espuma, pacientemente, pincelando-a com o sabão e a água rija, gelada. Treme-lhe a mão; apesar da pressa, sente uma lassidão que o obriga a forçar-se a agir. A navalha está romba; tenta afiá-la na sola de um sapato, mas o couro está duro como o ferro e molhado do orvalho. Barbeia-se como pode. Treme-lhe a mão; não tem grande jeito e corta-se três ou quatro vezes, estancando o sangue com água fria até parar. Arruma os utensílios de barbear e mete pés ao caminho. Segue a direito, ignorando o caminho mais fácil pelos sulcos já abertos. Um pouco mais à frente chega a uma estrada e senta-se na berma. É uma estrada tranquila, que aparece e desaparece tranquilamente, vendo-se na poeira apenas esparsas marcas de rodas finas e pouco frequentes, de cascos de cavalos e de mulas e, aqui e ali, alguma pegada humana. Senta-se na berma, sem casaco, com a camisa outrora branca e as calças outrora bem vincadas cobertas de lama e imundas, o rosto encovado com manchas de barba mal feita e sangue coalhado, tremendo de frio e exaustão ao tíbio calor do sol que se levanta e começa a aquecê-lo. Passado algum tempo, duas crianças negras aparecem na curva da estrada e aproximam-se. Só o veem quando fala; param, mortas de medo, olhando para ele com os olhos brancos a rebolar. – Que dia da semana é hoje? – pergunta ele de novo. Elas não respondem, mas não tiram os olhos dele. Ele mexe ligeiramente a cabeça. – Vão-se embora – diz ele. Elas vão-se embora. Ele nem olha para elas. Fica sentado, a observar pensativo o lugar onde elas tinham estado, como se ao moverem-se elas apenas tivessem saído das suas conchas. Nem se apercebe de que vão a correr. 

Depois, ali sentado, com o sol a aquecê-lo lentamente, adormece sem se dar conta, porque a próxima coisa de que tem consciência é do alarido estridente de madeira e metal a chocalharem e do trote de cascos. Abre os olhos a tempo de ver uma carroça dobrar bamboleante a curva e desaparecer, com os ocupantes a olharem para ele por cima do ombro e a mão do condutor a subir e a descer, comandando o chicote. «Estes também me reconheceram», pensa ele. «Estes e aquela mulher branca. E os negros onde comi naquele dia. Qualquer deles me podia ter capturado, se é isso que querem. Porque é isso que todos eles querem: que eu seja apanhado. Mas a primeira coisa que todos eles fazem é fugir. Todos querem que eu seja apanhado, mas quando chego ao pé deles pronto para dizer Aqui estou eu Sim diria eu Aqui estou eu estou cansado de fugir de ter de carregar a minha vida como se fosse uma cesta com ovos desatam todos a fugir. Como se a minha captura obedecesse a uma norma rígida, e apanharem-me dessa maneira fosse infringir a norma.» 

Volta por isso para o mato. Desta vez está atento e ouve a carroça antes de ela aparecer. Só se mostra quando a carroça já passou. Nessa altura, dá um passo em frente e grita: – Eh! – A carroça para com um solavanco. A cabeça negra do condutor dá idêntico solavanco; na sua cara estampa-se primeiro o espanto, depois o reconhecimento e o terror. – Que dia é hoje? – pergunta Natal. 

O negro fita-o atónito, boquiaberto. – O... o quê? 

– Que dia da semana é hoje? Quinta? Sexta? Que dia? Não te vou fazer mal. 

– É sexta-feira – diz o negro. – É sexta-feira, louvado seja Deus. 

– Sexta-feira – diz Natal. Abana outra vez a cabeça. – Podes seguir. – O chicote cai e as mulas arrancam. Também esta carroça se perde na distância, à desfilada, com o chicote a subir e a descer. Mas Natal já deu meia-volta e entrou outra vez na mata. 

E de novo segue a direito como uma fita de agrimensor, indiferente a montes, vales e pântanos. Porém não vai com pressa. Avança como um homem que sabe onde está e para onde quer ir e quanto tempo lhe falta exatamente para lá chegar. É como se desejasse ver a sua aldeia nativa em todas as suas facetas pela primeira ou pela última vez. Tinha-se feito homem no campo, onde, tal como um marinheiro que não sabe nadar, o corpo e o espírito tinham sido moldados compulsivamente sem ele aprender fosse o que fosse sobre a sua forma e sentimentos reais. Há uma semana que esquadrinha e se insinua entre os seus lugares secretos, permanecendo no entanto um estrangeiro face às leis imutáveis que a terra tem de acatar. Por algum tempo, enquanto avança com determinação, pensa que é assim mesmo – o olhar e o ver – o que lhe dá paz, calma e sossego, até que de repente descobre a verdadeira resposta. Sente-se seco e leve. «Não preciso de me preocupar mais com a comida», pensa ele. «É isso.» 

Ao meio-dia já percorreu doze quilómetros. Chega agora a uma estrada larga de gravilha, uma autoestrada. Desta vez a carroça para paulatinamente ao seu aceno. No rosto do rapaz negro que a conduz não há nem espanto nem reconhecimento. – Onde vai dar esta estrada? – pergunta Natal. 

– Mottstown.10 É pr’onde eu vou. 

– Mottstown. Também vais pra Jefferson? 

O rapaz coça a cabeça. – Não sei o qu’ isso é. Eu cá vou pra Mottstown. 

– Ah – diz Natal. – Estou a ver. Então, não és daqui. 

– Não siô. Vivo dois condados pr’aquele lado. Trago três dias de estrada. Vou a Mottstown buscá uma vitela berradora qu’o meu pai comprou. Vomicê quer ir pra Mottstown? 

– Quero – diz Natal. Sobe para a carroça e senta-se ao lado do rapaz. A carroça segue o seu caminho. «Mottstown», pensa Natal. Jefferson fica apenas a trinta quilómetros. «Agora posso relaxar um bocado», pensa ele. «Há sete dias que não sei o que isso é, por isso acho que agora posso, relaxar um bocado.» Pensa que talvez ali sentado, embalado pelos balanços da carroça, consiga adormecer. Mas não adormece. Não tem sono nem fome nem sequer fadiga. Está algures entre eles e acima deles, suspenso, balançando ao sabor da carroça, sem pensar, sem sentir. Perdeu a noção do tempo e da distância; talvez tenha passado uma hora, ou talvez três. Nisto, o rapaz diz: 

– Mottstown. Lá tá ela. 

Ao olhar, ele vê o fumo baixo no céu, para lá da curva impercetível; está de novo a entrar nela, na rua que se estendeu por trinta anos. Tinha sido uma rua asfaltada, onde se avançava depressa. Depois descreveu um círculo e Natal ainda está dentro dele. Embora não tenha conhecido estrada asfaltada nos últimos sete dias, chegou mais longe do que nos trinta anos precedentes. No entanto, mantém-se dentro do círculo. «E no entanto cheguei mais longe nestes sete dias do que em trinta anos», pensa ele. «Mas nunca saí para fora do círculo. Nunca ultrapassei os limites do que já fiz e não posso desfazer», pensa ele, sereno, sentado no banco da carroça, com os sapatos prantados no rebordo em frente, os sapatos pretos a cheirar a negro: que deixam nos seus tornozelos a marca precisa e indestrutível do indicador de nível da maré negra que lhe trepa pelas pernas, subindo a partir dos pés, como a morte. 

10 O nome da cidade também aparece escrito desta maneira em A Aldeia, 1940, embora em Na Minha Morte Faulkner escreva o nome do que é aparentemente a mesma cidade como Mottson.