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Ele consegue ver a rua da janela do escritório. Não fica longe, que o relvado não é muito extenso – um palmo de terreno relvado com meia dúzia de plátanos ainda em crescimento lento. A casa, o bangalô castanho, modesto e por pintar, é muito pequena, quase completamente escondida pelas moitas de murtas, lilases e alteia, salvo a nesga através da qual ele vê a rua da janela do escritório. Está tão escondida que a luz do candeeiro da esquina quase não a atinge.
Da janela vê também a tabuleta a que chama o seu monumento. É baixa e está espetada no canto do relvado pegado com a rua. Mede noventa por quarenta e cinco, um retângulo perfeito virado para quem passa e de costas para ele. Mas ele não precisa de ler o que lá está escrito, pois foi ele quem fez o letreiro, de serra e martelo em punho, com toda a perfeição, e nele pintou a inscrição, com igual perfeição, até ao tédio, quando percebeu que tinha de começar a ganhar dinheiro para o pão de cada dia, a lenha e a roupa que vestia. Quando abandonou o seminário tinha um pequeno rendimento deixado pelo pai, mas mal conseguiu a sua paróquia, passou a enviá-lo para uma instituição de Memphis para raparigas delinquentes mal recebia os cheques trimestrais. Depois, perdeu a sua igreja e perdeu a Igreja, e a situação mais dolorosa de que se lembrava de jamais ter enfrentado – mais dolorosa ainda do que o desgosto e a vergonha – foi a carta que lhes escreveu dizendo que a partir dessa data só podia mandar metade da quantia habitual.
Continuou, assim, a mandar-lhes metade do rendimento que, na íntegra, mal teria chegado para o manter. – Felizmente há outras coisas que eu posso fazer – disse ele na altura. Daí a razão do letreiro, feito por ele com todo o esmero e por ele desenhado, com bocadinhos de vidro engenhosamente misturados na tinta, de tal maneira que à noite, quando a luz do candeeiro da esquina lhe batia, as letras brilhavam como um reclame de Natal:
REV. GAIL HIGHTOWER, D.D.
Lições de arte
Cartões de Natal e Aniversário pintados à mão
Revelação de fotografias
Mas isso foi há muitos anos, e ele não conseguiu arranjar alunos e só muito poucas encomendas para cartões e fotografias, e a tinta e os bocados de vidro acabaram por cair das letras agora quase sumidas. Ainda se podiam ler; se bem que, tal como o próprio Hightower, poucos habitantes da cidade precisassem de as ler. Mas sempre passava uma vez por outra alguma criadita negra, nos seus recados para os brancos, que parava e as soletrava em voz alta com aquela estolidez inane da sua raça indolente e iletrada ou, então, passava algum forasteiro que o acaso trouxera àquela rua esquecida de terra batida, tão parada e tão recôndita, e que se detinha a ler o letreiro, olhando em seguida para a pequena casa castanha quase oculta e seguindo o seu caminho; uma vez por outra, o forasteiro acabava por mencionar o letreiro a algum conhecido da cidade. – Ah, sim – diria o amigo. – O Hightower. Vive lá sozinho. Veio para cá como pastor da igreja presbiteriana, mas a mulher fez-lhe a vida negra. De vez em quando ia até Memphis, para a vida airada. Já lá vão vinte anos, foi logo a seguir a ele ter vindo para cá. Há quem diga que ele sabia. Que não podia, ou não queria, satisfazê-la e que tinha conhecimento do que ela andava a fazer. Até que um dia, um sábado à noite, a mataram numa casa de Memphis ou lá onde foi. Os jornais não falaram de outra coisa. Ele teve de abandonar a igreja, mas, ninguém sabe porquê, recusou-se a sair de Jefferson. Tentaram convencê-lo a partir, tanto por ele mesmo como pela cidade e pela igreja. Foi uma situação muito difícil para a igreja, como deve calcular. Com as pessoas a virem de fora e a ouvirem falar do sucedido, e ele a negar-se a sair da cidade. E não saiu mesmo. Lá continua a viver sozinho na que foi em tempos a rua principal. Pelo menos agora já não é a rua principal, ao menos valha-nos isso. Mas agora ele já não dá cuidados a ninguém e acho que a maior parte das pessoas já nem se lembra que ele existe. A lida da casa é ele quem a faz. Acho mesmo que ninguém pôs os pés dentro daquela casa nos últimos vinte e cinco anos. Nem sabemos por que razão continua a viver lá. Um dia destes passe por lá à tardinha, já ao cair da noite, e vai vê-lo sentado à janela. Ali sentado, sem fazer nada. E o resto do tempo quase ninguém lhe põe a vista em cima, a não ser de vez em quando a tratar do jardim.
Assim, o letreiro que ele próprio construiu e pintou significa ainda menos para ele do que para a cidade, pois ele já não o vê como um letreiro, uma mensagem. Só se lembra de que ele existe quando se senta à janela do escritório ao cair da noite. E mesmo nessa altura não passa de uma forma familiar e oblonga sem qualquer significado, a um canto do relvado ralo, rente à rua; é como se também ele tivesse brotado da terra trágica e inescapável, como os plátanos atarracados e os arbustos, sem que ele para isso fosse tido nem achado. Já nem sequer olha para ele, tal como também não vê as árvores por baixo das quais, e através das quais, olha para a rua, à espera do crepúsculo, do momento em que a noite cai. Porque, atrás dele, a casa e o escritório estão mergulhados na escuridão enquanto ele aguarda o instante em que a última claridade se apaga do céu e a noite se fecharia, não fora a réstia de luz que folha e erva retêm e, relutantes, irradiam, lançando ainda alguma luminosidade na terra apesar de a noite já ter caído. Em breve. Está quase pensa ele; em breve, está quase. E não diz, nem sequer para si mesmo: – Subsiste ainda um pouco de honra, um pouco de orgulho, um pouco de vida.
***
Quando Byron Bunch veio a Jefferson pela primeira vez há sete anos e viu o pequeno letreiro Gail Hightower D.D.2 Lições de Arte Cartões de Natal Revelação de Fotografias pensou «D.D. O que quererá dizer D.D.?»; perguntou e responderam-lhe que queria dizer Definitivamente Danado. Gail Hightower Definitivamente Danado, pelo menos em Jefferson, foi o que lhe disseram. E contaram-lhe também como Hightower tinha vindo para Jefferson diretamente do seminário, recusando-se a aceitar qualquer alternativa; como tinha mexido todos os cordelinhos ao seu alcance para ser enviado para Jefferson. E como ali tinha chegado com a sua jovem esposa, descendo já do comboio num estado de exagerada excitação, falando muito e dizendo aos paroquianos e paroquianas mais influentes da terra, os que eram os pilares da comunidade religiosa, como sempre tinha pensado vir para Jefferson desde o início, desde que tinha decidido ser pastor; falando-lhes, com regozijo até, das cartas que tinha escrito, dos esforços que tinha feito e das influências que tinha movido para ali ser colocado. Para os habitantes da cidade as suas palavras eram semelhantes ao regozijo do negociante de cavalos perante um negócio lucrativo. Talvez fosse assim que os paroquianos mais influentes as entendiam, porque o ouviam com frieza, espanto e desconfiança a falar como se o seu maior desejo fosse viver na cidade e não servir a igreja e a comunidade religiosa que a compunha. Era como se não se importasse com o povo, não quisesse saber se o queriam ali ou não. Ele, muito jovem, e os homens e mulheres mais velhos a tentarem acalmar as suas manifestações de regozijo, falando-lhe de assuntos sérios, das suas responsabilidades e das da Igreja. Contaram ainda a Byron como o jovem pastor continuava excitadíssimo mesmo ao fim de seis meses, sempre a falar da Guerra Civil e do avô, um soldado de cavalaria morto em combate, e dos armazéns de víveres do General Grant a arder em Jefferson3, até já nada fazer sentido. Contaram a Byron como ele falava da mesma maneira no púlpito, como perdia a cabeça no púlpito, usando a religião como se se tratasse de um sonho. Não de um pesadelo, mas de algo que corria mais depressa do que as palavras da própria Bíblia; uma espécie de furacão que nem precisava de tocar na terra. Coisa que também não agradava nada aos homens e mulheres mais influentes da cidade.
Era como se, mesmo no púlpito, não conseguisse destrinçar a religião da cavalaria à desfilada e do avô abatido a tiro de um cavalo a galope; e talvez em casa também não conseguisse destrinçar umas coisas das outras na sua vida privada. Talvez em casa nem tentasse fazê-lo, pensou Byron, pensando que esse é o género de coisas que os homens fazem às mulheres que lhes pertencem; pensando que é por isso que as mulheres têm de ser fortes e não devem ser consideradas culpadas por aquilo que fazem com ou para ou por causa dos homens, pois Deus sabe que ser mulher de alguém é só por si uma situação suficientemente traiçoeira. Contaram-lhe como a mulher dele era uma rapariga pequena e sossegada em quem a cidade, a princípio, não encontrou nada de especial. Mas a cidade disse-lhe também que, se Hightower tivesse sido um homem mais equilibrado, o tipo de homem que um padre deve ser, em vez de ter nascido trinta anos depois do único dia em que parecia ter vivido – o dia em que o avô fora abatido a tiro de um cavalo a galope – ela ter-se-ia portado bem. Mas ele não o era, e os vizinhos bem a ouviam chorar no presbitério durante a tarde ou durante a noite, e sabiam que o marido não era homem para saber lidar com essa situação, porque não entendia o problema dela. E que às vezes ela nem sequer aparecia na igreja, quando o marido estava a pregar, mesmo aos domingos, e as pessoas olhavam para ele e perguntavam-se se ele se daria conta de que ela nem ali estava, se ele não se teria mesmo esquecido de que tinha uma esposa; e ele, no púlpito, com as mãos a esvoaçar e o dogma que deveria pregar repleto de cavalos a galope, derrotas e gloriosas vitórias, exatamente como tentava falar-lhes de cavalos a galope no meio da rua, misturando tudo isso com a absolvição e coros de marciais serafins até os homens e mulheres mais influentes da paróquia muito naturalmente se convencerem de que aquilo que ele pregava na casa do Senhor e no dia do Senhor tocava as raias do sacrilégio.
Contaram também a Byron como, ao fim de cerca de um ano a viver em Jefferson, a expressão da mulher se tornou gélida e fechada, e como, quando as senhoras da paróquia os iam visitar, Hightower as recebia sozinho, em mangas de camisa e sem o colarinho posto, muito nervoso, como se por momentos não soubesse ao que vinham nem como devia recebê-las. Depois convidava-as a entrar, pedia desculpa e desaparecia. E elas ficavam na sala, a olharem umas para as outras, com os seus trajos domingueiros, de ouvido à escuta, mas sem conseguirem ouvir o mínimo ruído em toda a casa. Então ele voltava, já com o casaco vestido e o colarinho posto, e sentava-se a conversar com elas sobre a igreja e os enfermos, e elas respondiam-lhe, amáveis e serenas, ainda de ouvido à escuta e, quem sabe, olhos atentos à porta, perguntando-se talvez se ele saberia aquilo que elas estavam crentes de já saberem.
As senhoras da paróquia deixaram de ir visitá-lo ao presbitério e em breve deixaram também de encontrar a mulher do pároco na rua. E ele sempre a agir como se nada se passasse. Até que a mulher começou a ausentar-se por um ou dois dias; viam-na apanhar o primeiro comboio da manhã, com o rosto agora emagrecido e desfigurado, como se não comesse o suficiente, e sempre com a mesma expressão gélida e fechada, como se olhasse, mas não visse. Ele dizia que ela tinha ido visitar a família, algures no sul do Estado. Até que um dia, durante uma das suas ausências, uma mulher de Jefferson, que andava a fazer compras em Memphis, a viu entrar a correr para um hotel. Foi num sábado, e a mulher, ao voltar para casa, contou o que vira. Porém, no dia seguinte, Hightower lá estava no púlpito, a misturar a religião e os cavalos a galope, como sempre, e a mulher só regressou na segunda-feira e, no domingo seguinte, voltou a aparecer na igreja pela primeira vez em seis ou sete meses, sentando-se sozinha na última fila. Durante uns tempos apareceu na igreja todos os domingos. Depois, voltou a desaparecer, desta vez a meio da semana (era julho e fazia muito calor) e Hightower disse que ela tinha ido outra vez visitar a família, no campo, onde estava mais fresco, enquanto os homens e as mulheres mais influentes da paróquia não sabiam se deviam mesmo acreditar no que ele dizia, e os mais novos começavam a falar dele pelas costas.
Mas o que ninguém sabia era se ele acreditava ou não no que lhes dizia, se se importava ou não, no meio de toda aquela confusão entre a religião e o avô a ser abatido a tiro de um cavalo a galope, como se a semente que o avô lhe havia transmitido fosse também no cavalo nessa noite fatídica e tivesse sido também abatida a tiro e o tempo tivesse parado ali, nesse momento, pois nada – nem a semente nem tão-pouco ele próprio – havia germinado desde então.
A mulher voltou antes de domingo. Fazia muito calor; diziam os mais velhos que eram os dias mais quentes de que se lembravam. Ela foi à igreja nesse domingo e sentou-se num dos bancos de trás, sozinha. No meio do sermão, levantou-se de um salto e desatou a gritar, a guinchar qualquer coisa em direção ao púlpito, agitando as mãos virada para o púlpito onde o marido tinha acabado de pregar, debruçando-se do púlpito com as mãos erguidas. Algumas das pessoas mais próximas tentaram segurá-la, mas ela resistiu tenazmente; contaram também a Byron como ela se postou na nave central a gritar e a gesticular, virada para o púlpito de onde o marido se debruçava ainda de mão erguida e rosto desvairado cristalizado em consonância com o período retumbante e alegórico que não tinha chegado a completar. Não sabiam se os gestos ameaçadores se dirigiam a ele, se a Deus. Ele desceu do púlpito e aproximou-se dela; só então ela parou de lutar e ele levou-a para fora da igreja, por entre cabeças que se viravam à sua passagem, até o superintendente dizer ao organista para recomeçar a tocar. Os mais influentes ficaram sem saber o que se teria passado longe da sua vista nessa tarde; sabiam apenas que Hightower voltou para a igreja, entrou na sacristia e fechou a porta atrás de si.
Mas ninguém sabia o que se tinha passado. Sabia-se apenas que tinham feito uma coleta para internarem a mulher do pároco numa instituição, num manicómio, e que foi Hightower quem a levou, tendo depois regressado a casa e pregado no domingo seguinte, como de costume. As outras mulheres, as vizinhas, algumas das quais não entravam em casa do pároco há vários meses, mostraram-lhe a sua solidariedade levando-lhe alguma coisa de comer de vez em quando e comentando umas com as outras e com os maridos a barafunda em que a casa se encontrava e a maneira animalesca como o pároco parecia comer – só quando tinha fome e só o que encontrasse à mão. De quinze em quinze dias ia visitar a mulher ao manicómio, mas voltava logo passados um ou dois dias; e aos domingos, de novo no púlpito, era como se nada tivesse acontecido. As pessoas perguntavam-lhe pela mulher, curiosas e solidárias, e ele agradecia o seu cuidado. E no domingo seguinte, lá estava ele de novo no púlpito, com os seus gestos desvairados, e desvairada também a voz, na ânsia de um arrebatamento em que Deus, a salvação e os cavalos a galope soavam atroadores como fantasmas, enquanto os cidadãos mais influentes, sentados por baixo do púlpito, e toda a restante comunidade religiosa se indignavam, chocados. Chegado o outono, a mulher voltou para casa. Parecia melhor. Tinha engordado um pouco. Tinha mudado até noutros aspetos. Era talvez o seu ar mais calmo; mais acordado, pelo menos. O certo é que ela era agora como as senhoras da paróquia sempre tinham querido que ela fosse, como achavam que a esposa de um ministro do Senhor devia ser. Ia regularmente à igreja assistir aos serviços religiosos e as outras senhoras iam visitá-la e ela retribuía-lhes as visitas, mantendo-se sentada, calada e humilde, mesmo na sua própria casa, enquanto as outras lhe diziam como devia governá-la, como devia vestir-se e que pratos devia cozinhar para o marido.
Dir-se-ia que lhe tinham perdoado, já que nenhum crime ou transgressão haviam sido nomeados e nenhuma pena aplicada. Mas a cidade não acreditava que as senhoras da paróquia tivessem esquecido as viagens misteriosas que tinham Memphis como destino e como objetivo aquele sobre o qual todos partilhavam idêntica convicção, embora ninguém o tivesse dito por palavras, em voz alta, pois a cidade estava convencida de que as mulheres de bom porte não esquecem facilmente as coisas, sejam elas boas ou más, não vão a essência e o sabor do perdão desaparecer do palato da consciência. É que a cidade estava convencida de que as senhoras sabiam a verdade, convicta como estava de que as mulheres de mau porte podem deixar-se enganar pelo mal, uma vez que têm de gastar parte do seu tempo a disfarçá-lo, mas de que nenhuma mulher de bom porte se deixa enganar, porque, portando-se ela bem, não precisa de se preocupar mais nem com a sua honestidade nem com a honestidade das outras, ficando-lhe por isso tempo de sobra para farejar o pecado. Era por isso, pensavam eles, que o bem a pode levar a todo o momento a acreditar que é o mal, mas que o mal jamais a poderá enganar. Assim, quando ao fim de quatro ou cinco meses a mulher do pastor se ausentou de novo e o marido voltou a dizer que ela tinha ido visitar os parentes, a cidade não teve quaisquer dúvidas de que, desta vez, nem mesmo ele estava a ser enganado. E, como sempre, ela acabou por regressar e ele continuou a pregar todos os domingos, como se nada se tivesse passado, visitando os pobres e os enfermos e falando-lhes da sua igreja. A mulher, porém, não voltou a aparecer na igreja e em breve as outras senhoras deixaram de a visitar, não voltando a pôr os pés no presbitério. Até os vizinhos das casas contíguas deixaram de a ver andar pela casa. Em breve foi como se ela lá não estivesse; como se todos tivessem concordado que ela não estava lá, que o pároco nem sequer tinha mulher. E ele continuava a pregar todos os domingos e já nem sequer lhes dizia que ela tinha ido visitar a família. Talvez isso o deixasse contente, pensava a cidade, talvez ele estivesse contente por não ter de mentir mais.
Por isso, ninguém a viu quando entrou no comboio nessa sexta-feira, ou talvez tivesse sido num sábado, no próprio dia em que tudo aconteceu. Só viram o jornal de domingo, que contava como ela tinha sido atirada, ou tinha caído, da janela de um hotel de Memphis no sábado à noite, o que lhe causara a morte. Estava um homem com ela no quarto, a cair de bêbado, que foi preso. Tinham-se registado como marido e mulher com um nome fictício. A polícia encontrou o nome verdadeiro escrito por ela numa folha de papel que depois rasgara e atirara para o cesto dos papéis. Os jornais publicaram o seu conteúdo com a história: esposa do Reverendo Gail Hightower, de Jefferson, Mississippi. A notícia contava como o jornal tinha telefonado ao marido às duas da manhã e como o marido tinha dito que nada tinha a dizer. Quando chegaram à igreja nesse domingo de manhã, o adro estava pejado de repórteres de Memphis a fotografar a igreja e o presbitério. Hightower chegou. Os reporteres tentaram abordá-lo, mas ele passou por eles sem se deter, entrou diretamente na igreja e subiu ao púlpito. As respeitáveis paroquianas e alguns dos respeitáveis paroquianos já se encontravam na igreja, horrorizados e indignados, não tanto com o ocorrido em Memphis como com a presença dos repórteres. Mas quando Hightower entrou e se encaminhou para o púlpito, até dos repórteres eles se esqueceram. As senhoras levantaram-se e começaram a debandar. Seguiram-se-lhes os homens, e a igreja não tardou a ficar vazia, à exceção do pastor, que estava sozinho no púlpito, ligeiramente inclinado para a frente, com a Bíblia aberta nas duas mãos e de cabeça erguida, e dos repórteres de Memphis (tinham entrado atrás dele na igreja), sentados ao lado uns dos outros na última fila de bancos. Disseram que ele nem se apercebeu de que os fiéis estavam a abandonar a igreja; os seus olhos não fixavam coisa alguma.
Foi isto que contaram a Byron; como, por fim, o pároco fechou as Escrituras com todo o cuidado, desceu à igreja deserta, subiu a nave central sem olhar uma só vez para a fiada de repórteres, tal como haviam feito os seus paroquianos, e saiu. Havia alguns fotógrafos à espera dele defronte da igreja, com as máquinas a postos e as cabeças escondidas debaixo dos panos pretos. Era evidente que o pároco já esperava por isto, porque saiu da igreja com um livro de cânticos aberto à frente do rosto. Mas era evidente que o fotógrafo também já esperava por isto, porque o enganou. O mais provável era ele não estar habituado a estas coisas e, por isso, foi fácil enganá-lo, disseram a Byron. Um dos fotógrafos tinha a máquina afastada para um dos lados e o pároco ou não a viu ou viu-a demasiado tarde. A sua preocupação era esconder o rosto da que estava colocada à sua frente e, no dia seguinte, quando a fotografia saiu no jornal, via-se que tinha sido tirada de lado, com o pároco em plena passada a tapar a cara com o livro dos cânticos e, por detrás do livro, os seus lábios entreabriam-se no que parecia um sorriso. Os dentes, porém, estavam cerrados e o rosto parecia o de um daqueles satanases das gravuras antigas. No dia seguinte trouxe a mulher para casa e enterrou-a. A cidade assistiu à cerimónia. Não se tratou de um funeral. Ele não levou o corpo para a igreja. Levou-o diretamente para o cemitério e preparava-se para ser ele mesmo a ler algumas passagens da Bíblia, quando um outro pastor avançou e lhe tirou a Bíblia das mãos. Houve muita gente, pricipalmente os mais novos, que ali ficou a olhar para a campa depois de ele e os outros já terem partido.
A certa altura até os membros das outras igrejas sabiam que a igreja dele lhe tinha pedido que se demitisse e que ele se recusara a fazê-lo. No domingo seguinte apareceram na igreja dele muitas pessoas das outras igrejas, na expectativa do que se iria passar. Ele chegou e entrou na igreja. Os paroquianos levantaram-se em uníssono e saíram, deixando o pároco sozinho com os membros das outras igrejas que tinham vindo para assistir ao espetáculo. E foi a esses que ele dirigiu o seu sermão, como sempre tinha feito, com aquela fúria exacerbada que todos consideravam um sacrilégio e que os fiéis das outras igrejas não tinham dúvidas de ser pura demência.
Ele teimava em não se demitir. Os paroquianos mais influentes pediram ao conselho episcopal que o transferisse, mas depois do artigo do jornal, com fotografias e tudo, nenhuma outra cidade o quis receber. Não que pessoalmente tivessem algo contra ele, era o que todos faziam questão de frisar. Ele era apenas um homem sem sorte. Um homem que já nascera desafortunado. Os fiéis deixaram de frequentar de vez a sua igreja, mesmo os das outras igrejas, que tinham começado a vir a esta por curiosidade: ele já nem sequer era espetáculo; agora, era apenas um ultraje. Mas continuava a chegar à igreja à hora de sempre, todos os domingos, subia ao púlpito e os fiéis levantavam-se e saíam; e então os mirones e os que nada tinham para fazer juntavam-se na rua à porta da igreja a ouvi-lo pregar e rezar no templo vazio. Mas no domingo seguinte a porta estava fechada à chave quando ele chegou e os mirones viram-no tentar abrir a porta e acabar por desistir, ficando ali especado, sempre de cabeça erguida, na rua povoada de homens que nunca iam à igreja e de jovens que não sabiam muito bem o que se passava, apenas que algo se passava, a olharem de olhos esbugalhados para aquele homem especado diante da porta trancada. No dia seguinte toda a cidade soube que ele tinha ido falar com as figuras gradas da paróquia, para se demitir a bem da igreja.
E então a cidade arrependeu-se de estar contente, como às vezes as pessoas se compadecem daqueles a quem acabaram de forçar a agir como elas queriam. E pensaram, muito naturalmente, que seria desta vez que ele se ia embora para outro lado. Mas ele recusou-se a sair da cidade. Contaram também a Byron da consternação sentida, muito mais que indignação, quando souberam que ele tinha comprado a casa na ruela onde agora vive e onde sempre tem vivido desde então; os paroquianos reuniram-se de novo, pois diziam que lhe tinham dado o dinheiro para se ir embora e ele, ao gastá-lo com outra coisa, tinha aceitado o dinheiro sob um falso pretexto. Foram falar com ele e disseram-lhe isso mesmo. Ele pediu-lhes licença para se retirar por uns momentos e voltou com o dinheiro que lhe haviam dado, até ao último cêntimo, tal como o tinha recebido, fazendo questão de que o aceitassem outra vez. Eles porém recusaram-se a fazê-lo e ele recusou-se a dizer-lhes onde tinha arranjado dinheiro para comprar a casa. Assim, segundo contaram a Byron, no dia seguinte havia quem dissesse que ele tinha feito um seguro de vida para a mulher e depois dado dinheiro a alguém para a matar. Mas todos sabiam que isso não era verdade, incluindo os que haviam espalhado o boato e os que lhes haviam dado ouvidos.
Ele porém continuava a recusar-se a sair da cidade. Até que um dia viram o pequeno letreiro que ele próprio tinha feito, pintado e colocado no quintal, e perceberam que ele estava decidido a ficar. Ainda conservava a cozinheira, uma negra. Tinha-a ao seu serviço desde que chegara. E também contaram a Byron como, assim que a mulher morreu, as pessoas pareceram dar-se conta de que aquela criatura negra era uma mulher e que ele passava o dia inteiro sozinho em casa com essa mulher negra. E como começaram a murmurar ainda a mulher dele não estava fria na campa. A falarem de como ele tinha feito a mulher seguir o caminho da perdição e suicidar-se por ele não ser um marido normal, um homem normal, e que o motivo fora a cozinheira negra. Era tudo de que precisavam, tudo o que lhes faltava. Byron escutava-os em silêncio, pensando de si para si como as pessoas são as mesmas em toda a parte, mas como numa cidade pequena, onde é mais difícil praticar o mal e mais escassas as oportunidades de se ter uma vida realmente privada, parecia que as pessoas eram capazes de inventar histórias sem fim em nome de outras. Porque era o quanto bastava: uma ideia, uma palavra vã soprada de mente em mente. Um dia a cozinheira despediu-se. Começou então a constar que, uma noite, um bando de homens mascarados foi a casa do padre e lhe ordenou que a despedisse. Constava também que, no dia seguinte, a mulher disse que era ela quem se despedia, porque o patrão lhe tinha pedido para fazer uma coisa que era contra Deus e contra natura. E constava ainda que alguns homens mascarados a tinham amedrontado, forçando-a a despedir-se, porque ela era aquilo que se chama uma mulata e todos sabiam que havia dois ou três homens na cidade que se opunham a que ela fizesse o que quer que fosse que considerasse contra Deus e contra natura, uma vez que, como diziam alguns dos homens mais jovens, se uma negra considerava alguma coisa contra Deus e contra natura, essa coisa devia ser mesmo muito má. De qualquer maneira, o padre não conseguiu – ou não quis – arranjar outra cozinheira. Muito possivelmente os tais homens amedrontaram todas as outras negras da cidade nessa mesma noite. Por isso, durante uns tempos, fez ele a sua própria comida, até se ouvir dizer um dia que ele tinha agora um cozinheiro negro ao seu serviço. E essa foi a sua perdição. Porque, nessa mesma noite, alguns homens, desta vez sem máscaras, foram buscar o negro e chicotearam-no. E, quando Hightower acordou na manhã seguinte, viu a janela do escritório quebrada e, no chão, um tijolo com um papel amarrado ordenando-lhe que saísse da cidade até ao pôr do sol e assinado K.K.K.4 Mas ele não obedeceu e, na manhã do dia seguinte, um homem encontrou-o na floresta, a cerca de quilómetro e meio da cidade. Tinha sido amarrado a uma árvore e espancado até perder a consciência.
Recusou-se a dizer quem o tinha espancado. A cidade sabia que o ato era condenável e alguns dos homens vieram falar com ele e tentaram persuadi-lo a sair de Jefferson, para seu próprio bem, dizendo-lhe que da próxima vez eram capazes de o matar. Mas ele recusou-se a partir. Não queria sequer falar do espancamento, nem mesmo quando se ofereceram para levarem a tribunal os seus autores. Recusava-se a fazer as duas coisas. Nem abria a boca nem se ia embora. Até que, subitamente, tudo pareceu dissipar-se como um vento ruim. Era como se a cidade tivesse finalmente compreendido que ele ia fazer parte dela até morrer e que mais valia reconciliarem-se. Como se, pensou Byron, tudo o que acontecera não tivesse passado de uma representação com um elevado número de atores e agora, que já todas as pessoas tinham representado os papéis que lhes haviam sido distribuídos, podiam finalmente viver em paz umas com as outras, e deixaram o padre entregue a si próprio. Viam-no a trabalhar no pátio ou no jardim e outras vezes encontravam-no na rua ou nas lojas, de cesto no braço, e cumprimentavam-no. Sabiam que era ele quem fazia a sua própria comida e a lida da casa e, passado algum tempo, as senhoras da vizinhança começaram a levar-lhe outra vez alguma coisa de comer, embora fosse o tipo de comida que poderiam ter levado a uma família pobre de operários da serração. Mas sempre era comida, e dada com boas intenções. Porque, pensava Byron, as pessoas esquecem muita coisa em vinte anos. «Sim», pensa ele, «acho que não há ninguém em Jefferson, exceto eu, que saiba que ele se senta todos os dias à janela, do pôr do sol até ser noite fechada. Ou como é a casa dele por dentro. E nem sequer sabem que eu sei, porque senão o mais certo era levarem-nos aos dois e chicotearem-nos outra vez, pois as pessoas não parecem esquecer mais do conseguem lembrar.» Porque há ainda uma outra coisa que Byron veio a saber e a observar desde que veio viver para Jefferson.
Hightower lia muito. Isto é, Byron tinha examinado com uma espécie de perplexa e respeitosa consternação os livros que forravam as paredes do escritório: livros de religião, história e ciência, de cuja existência Byron jamais ouvira falar. Um dia, há cerca de quatro anos, um negro veio a correr da cabana onde morava nos subúrbios da cidade, nas traseiras da casa do pastor, e disse-lhe que a mulher estava prestes a dar à luz. Hightower não tinha telefone e disse ao negro que o melhor era ir bater à porta ao lado para chamar um médico, ficando a vê-lo dirigir-se para a cancela da casa contígua. Porém, em vez de entrar, o negro deteve-se por um instante e, depois, continuou rua fora em direção à cidade, a pé, naturalmente; Hightower sabia que o homem iria a pé até à cidade e que, aí chegado, demoraria provavelmente mais uns trinta minutos para encontrar um médico, procurando-o no seu estilo paulatino e intemporal, de negro, em vez de pedir a uma mulher branca que telefonasse em nome dele. Hightower assomou então à porta da cozinha e ouviu a mulher a gemer na cabana, não longe dali. Não esperou nem mais um segundo. Correu para a barraca e viu que a mulher se tinha levantado da cama – porquê, nunca chegou a saber – e estava agora no chão, de gatas, a gritar e a gemer, procurando a todo o custo voltar para a cama. Ele meteu-a na cama outra vez e disse-lhe que ficasse quieta, metendo-lhe medo e obrigando-a a obedecer-lhe, posto o que voltou a correr a casa para ir buscar um dos livros ao escritório, a navalha e um bocado de cordel, correndo de novo para a cabana, para pôr a criança neste mundo. Mas a criança já estava morta; quando o médico chegou, disse que a mulher a tinha sem dúvida matado ao saltar da cama para o chão, onde Hightower a tinha ido encontrar. No entanto, elogiou o trabalho de Hightower e o marido mostrou-se também muito agradecido.
«Mas esta história lembra de mais a outra história», pensou Byron, «apesar de haver quinze anos a separá-las.» Porque daí a dois dias já havia quem dissesse que a criança era de Hightower e que ele a tinha deixado morrer de propósito. Mas, para Byron, nem mesmo os que propalavam este boato acreditavam no que diziam. Para ele, a cidade tinha adquirido há tempo de mais o hábito de dizer coisas do padre caído em desgraça em que nem os próprios acreditavam para agora poder parar. «Porque é sempre assim», pensa ele. «Quando uma coisa entra nos hábitos, também consegue afastar-se rapidamente da verdade dos factos.» E lembra-se de uma noite em que ele e Hightower estavam a conversar e Hightower lhe disse: – São boas pessoas. Acreditam naquilo em que acreditam, especialmente porque tempos houve em que era eu o mestre e o servo das suas crenças. Por isso, não me cabe a mim indignar-me com eles por causa disso nem a Byron Bunch dizer que procedem mal. Porque tudo o que um homem pode esperar é que lhe seja permitido viver em paz entre os seus semelhantes. – Isto passou-se muito pouco tempo depois de Byron ter ouvido contar a história, pouco depois de terem começado as suas visitas noturnas ao escritório de Hightower, quando Byron ainda se perguntava por que razão o outro continuava em Jefferson, quase podendo ser visto e ouvido da igreja que o tinha destituído e expulsado. Uma noite, Byron perguntou-lho.
– Por que razão passa você as tardes de sábado a trabalhar na serração enquanto os outros se vão divertir para a cidade? – perguntou-lhe por sua vez Hightower.
– Não sei – disse Byron. – Acho que é essa a minha sina.
– Pois eu também acho que é esta a minha sina – respondeu o outro.
«Mas agora já sei porque é», pensa Byron. «É porque um tipo tem mais medo dos problemas que podem surgir do que dos que ele já tem. Prefere agarrar-se aos problemas que já conhece a arriscar-se a arranjar outros. É isso. Um homem é capaz de falar de como gostaria de escapar aos vivos, mas são os mortos que o aperreiam. É dos mortos, que jazem inertes lá onde eles estão e que não tentam prendê-lo, que ele não consegue escapar.»
Agora eles já passaram, com um ruído atroador, mergulhando silenciosamente no crepúsculo; a noite fechou-se. Ele continua, porém, sentado à janela do escritório, com a sala ainda às escuras atrás de si. O candeeiro da esquina irradia uma luz trémula, dando a impressão de que as sombras dentadas dos plátanos, sem vento que os mova, se agitam debilmente nas trevas de agosto. À distância, fracas mas distintas, chegam-lhe aos ouvidos as ondas sonoras das vozes reunidas na igreja: um som ao mesmo tempo austero e pujante, abjeto e orgulhoso, crescendo e decrescendo na quietude da noite estival como uma maré de harmonias.
Ele vê então um homem a subir a rua. Numa noite de semana teria reconhecido a silhueta, os contornos, o porte e o andar. Mas num domingo à noite, e com o eco dos cascos fantasmagóricos ainda a repercutir-se oco na sala envolta na penumbra, observa em silêncio a figura franzina e apeada que se move com a destreza precária e artificial dos animais quando se apoiam apenas nas patas traseiras, essa destreza de que o bicho-homem tanto e tão vãmente se orgulha e que constantemente o atraiçoa por força das leis da natureza, tais como a gravidade e o gelo, e por força dos objetos estranhos que ele próprio inventou, tais como os automóveis e os móveis na sala às escuras, e até os resíduos da sua própria comida deixados no chão e nos passeios; e pensa em silêncio como os antigos estavam certos ao fazerem do cavalo atributo e símbolo de guerreiros e de reis, quando vê o homem passar pelo pequeno letreiro, virar-se, abrir a cancela e dirigir-se para a casa. Nesse momento debruça-se e vê o homem a subir às escuras a rampa que conduz à negra porta fechada, ouvindo-o em seguida tropeçar pesadamente no primeiro degrau, envolto na escuridão. – É o Byron Bunch – diz ele. – Na cidade, num domingo à noite. O Byron Bunch na cidade... e num domingo?