6
A memória acredita antes de o conhecimento recordar. Acredita por mais tempo do que recorda, por mais tempo até do que o conhecimento se interroga. Sabe, recorda, acredita num corredor num prédio de tijolo vermelho, grande e comprido, decrépito, frio e povoado de ecos, enegrecido pela fuligem de mais chaminés do que a que é sua por direito, construído sobre um terreno de cinzas apinhado de fábricas fumarentas e cercado por uma vedação de arame e aço com três metros de altura, como qualquer jardim zoológico ou penitenciária, onde há órfãos uniformemente fardados de ganga azul, chilreantes como passarinhos, que, em vagas erráticas e furtivas, entram e saem da memória, mas permanecem constantes no conhecimento, tanto quanto as paredes mascarradas de fuligem e as janelas mascarradas de fuligem por onde a fuligem das chaminés adjacentes, sempre em maior número a cada ano que passava, escorria em gotas de chuva, como negras lágrimas.
No corredor silencioso e deserto, na hora silenciosa do começo da tarde, ele era como uma sombra, pequeno mesmo para os seus cinco anos, discreto e silencioso como uma sombra. Quem estivesse no corredor não poderia dizer quando nem por onde ele tinha desaparecido, por que porta, para que quarto. Mas não havia mais ninguém no corredor a esta hora e ele sabia-o. Fazia isto há quase um ano, desde o dia em que descobriu por acaso a pasta dos dentes da nutricionista do orfanato.
Uma vez no quarto, descalço e silencioso, foi direito ao lavatório e lá estava o tubo. Estava ele a admirar a lagarta rosada, fresca e mole a enrolar-se lentamente sobre o seu dedo cor de pergaminho, quando ouviu passos no corredor e depois vozes atrás da porta. Talvez tivesse reconhecido a voz da nutricionista. Tivesse ou não, o certo é que não ficou à espera de ver se entravam ou não. Com o tubo na mão e ainda tão silencioso como uma sombra, atravessou o quarto descalço e enfiou-se por baixo de uma cortina de chita que tapava um dos cantos do quarto, aí se mantendo acocorado entre sapatos delicados e roupas macias de mulher penduradas em cabides. Sempre na mesma posição, ouviu a nutricionista e o companheiro entrarem no quarto.
A nutricionista ainda não significava nada para ele; era apenas um acessório mecânico do ato de comer, da sua alimentação, da sala de jantar, do ritual das refeições sobre as tábuas corridas, entrando de vez em quando no seu campo de visão sem qualquer outro impacto que não fosse o associá-la a coisas agradáveis, sendo ela própria agradável à vista – jovem, um pouco roliça, macia, rosada e branca, evocando na mente dele a sala de jantar e na boca dele algo doce e pegajoso, e também rosado e sub-reptício. Naquele primeiro dia em que descobriu a pasta dos dentes no quarto dela, ele, que nunca tinha ouvido falar em pasta dos dentes, tinha ido direito ao local, como se já soubesse que ela possuía alguma coisa do género e que ele a ia encontrar. Conhecia também a voz do companheiro. Pertencia a um jovem médico estagiário do hospital principal que era assistente do médico efetivo, também ele visita habitual no orfanato e ainda não um inimigo.
Sentia-se agora em segurança atrás da cortina. Quando eles saíssem, voltava a repor a pasta no lugar e saía também. Manteve-se por isso atrás da cortina a ouvir, sem prestar atenção, a voz sussurrante e tensa da mulher: – Não! Não! Aqui não. Agora não. Olha que nos apanham. Alguém pode... Não, Charley! Por favor! – As palavras do homem, não as conseguia entender. A voz soava em surdina, implacável, como lhe pareciam ser por enquanto todas as vozes masculinas, pois era ainda novo de mais para escapar ao mundo feminino e aproveitar este breve lapso antes de a ele voltar, para nele se quedar até à hora da morte. Ouviu outros sons que, esses sim, eram por demais seus conhecidos: o arrastar de pés, a chave a rodar na fechadura. – Não, Charley! Charley, por favor! Por favor, Charley! – sussurrou a mulher. Ouviu ainda outros sons, coisas a roçar, sussurros, mas não vozes. Não estava à escuta, apenas à espera, a pensar, sem ligar muito nem prestar atenção, que aquela era uma hora bem estranha para se ir para a cama. E de novo o sussurro desfalecido da mulher penetrou a fina cortina: – Tenho medo! Despacha-te! Despacha-te!
Estava acocorado entre sapatos e roupas macias com perfume de mulher. Pelo tato apenas viu onde estava o tubo outrora cilíndrico e agora esmagado. Pelo gosto, e sem a ver, contemplou a lagarta fresca e invisível que se enroscava no seu dedo e se espalhava automaticamente na sua boca com um sabor intenso e adocicado. Normalmente teria enchido a boca uma só vez, voltado a pôr o tubo no lugar e saído do quarto. Mesmo com cinco anos, sabia que não devia tirar mais do que isso. Talvez fosse o bicho a avisá-lo de que mais lhe faria mal; talvez fosse o ser humano a avisá-lo de que, se tirasse mais, ela daria por isso. Esta era a vez em que tirara mais. Ali à espera, escondido, tinha tirado muito mais. Pelo tato, sentia o tubo a diminuir. Começou a transpirar. Depois descobriu que já estava a transpirar há algum tempo, que de há algum tempo para cá não fazia mais nada a não ser transpirar. Agora não ouvia qualquer ruído. O mais provável era não ter sequer ouvido um tiro. Parecia estar concentrado sobre si mesmo, a ver-se a transpirar, a ver-se a espalhar mais uma lagarta de pasta na boca, que o estômago já não aceitava. Não havia dúvida de que se recusava a ir para baixo. Agora imóvel, supinamente contemplativo, parecia debruçado sobre si mesmo como um químico no laboratório, à espera. Não precisou de esperar muito. Ato contínuo, a pasta que já tinha engolido subiu por ele acima, tentando sair outra vez para fora, para onde estava mais fresco. Mas agora já não era doce. Atrás da cortina, na penumbra densa e rosadamente perfumada de mulher, ele estava acocorado, coberto de espuma rosada, escutando as entranhas, esperando com atónito fatalismo o que estava prestes a acontecer-lhe. E então aconteceu. E ele disse de si para si, completa e passivamente rendido: «Bem, aqui estou eu.»
Quando a cortina se afastou de rompante, ele não ergueu os olhos. Quando umas mãos o arrancaram com violência à poça do seu próprio vómito, não ofereceu qualquer resistência. Ficou ali a balançar das mãos, inerte, olhando de boca aberta e olhos vidrados, apalermados, para aquele rosto, que já não era aveludadamente rosado e branco, emoldurado agora por cabelos ferozmente desgrenhados cujas madeixas lustrosas o faziam outrora pensar em caramelos. – Ah, meu grande atrevido! – silvou a voz aguda, furiosa; – meu grande atrevido! Estavas a espiar-me! Ah, pretinho desavergonhado!
A nutricionista tinha vinte e sete anos – idade suficiente para ter de correr alguns riscos amorosos, mas suficientemente nova para dar grande importância não tanto ao amor que estava a fazer, mas mais a ter sido apanhada a fazê-lo. Era também suficientemente estúpida para julgar que uma criança de cinco anos podia não só captar a verdade através do que estava a ouvir, mas que ia ter vontade de contar a toda a gente, como um adulto faria. Assim, e como durante os dois dias seguintes só lhe parecia que para onde quer que olhasse e onde quer que estivesse via a criança a observá-la com o olhar profundo, intenso e interrogativo de um animal, ela sobrecarregou-o com mais atributos típicos de adulto: estava convencida de que ele tinha a intenção de contar, mas que protelava esse momento de propósito, para a fazer sofrer mais. Nunca lhe ocorreu que ele estava plenamente convencido de que ele é que tinha sido apanhado a pecar, vivendo por isso torturado, a pensar no castigo que não chegava, e que passava a vida a meter-se à frente dela justamente para apressar o inevitável, apanhar as vergastadas que lhe eram devidas, pagar a sua dívida e não pensar mais no sucedido.
No segundo dia ela, já à beira do desespero, passou a noite em claro. Passou a maior parte da noite em grande tensão, mãos e dentes crispados, ofegante de raiva e de terror e, o pior de tudo, de remorsos: aquela vontade cega, desvairada, de poder fazer o tempo andar para trás por uma hora que fosse, ou um segundo. E claro que durante este tempo até o amor era assunto proibido. O jovem médico era agora, menos até do que o menino, um mero instrumento da sua desgraça, mas não o da sua salvação. Ela seria incapaz de dizer qual dos dois odiava mais. Não era sequer capaz de dizer se estava a dormir se estava acordada, porque via a toda a hora nas pálpebras ou na retina aquela carita imóvel a fitá-la muito séria, inescapável, cor de pergaminho.
Ao terceiro dia saiu do estado de coma em que se encontrava, do sonambulismo que a acompanhava nas horas de claridade, nas horas de encontrar outros rostos, em que o seu rosto era uma máscara de dor cristalizada num esgar fixo de dissimulação sem momentos de descontração. Ao terceiro dia, agiu. Não foi difícil encontrá-lo. Foi no corredor, no corredor deserto, na hora silenciosa que se seguia à refeição. Lá estava ele, sem fazer nada. Talvez a tivesse seguido. Ninguém saberia dizer se ele estava ou não à espera dela. Mas encontrou-o sem surpresa e ele ouviu-a, voltou-se e foi sem surpresa que olhou para ela: os dois rostos, um que já não era aveludadamente rosa e branco e o outro, sério, circunspecto, vazio de tudo exceto da expectativa. «É agora que as coisas se vão resolver», pensou ele.
– Ouve – disse ela. Mas deteve-se, a olhar para ele. Era como se não soubesse o que dizer a seguir. O menino aguardava, calado, imovel. Lentamente, gradualmente, os músculos das suas costas começaram a ficar espalmados, rígidos e tensos como tábuas. – Vais contar alguma coisa? – disse ela.
Ele não respondeu. Achava que qualquer pessoa devia ter percebido que a última coisa que ele faria na vida seria contar a história da pasta dos dentes, do vomitado. Ele não estava a olhar para a cara dela. Estava a olhar-lhe para as mãos, à espera. Uma delas estava crispada dentro do bolso da saia. Via através do tecido que estava fechada com toda a força. Ele nunca tinha apanhado um soco. Mas também nunca tinha esperado três dias para ser castigado. Quando viu a mão sair do bolso, convenceu-se de que ela ia bater-lhe em seguida. Mas não o fez; a mão apenas se abriu debaixo dos seus olhos. Nela repousava um dólar de prata. A voz dela era aguda, ansiosa, sussurrante, apesar de o corredor estar completamente vazio. – Podes comprar uma data de coisas com isto. Olha que é um dólar. – Ele nunca tinha visto um dólar, embora soubesse o que era. Olhou para ele. Queria ficar com ele como podia querer a cápsula reluzente de uma garrafa de cerveja. Mas não acreditava que ela lho desse, porque ele não lho daria se fosse dele. Não sabia o que é que ela queria que ele fizesse. Estava à espera de apanhar umas vergastadas e depois ser mandado embora. A voz dela prosseguiu, ansiosa, tensa, apressada: – Um dólar. Vês? Podias comprar tanta coisa. Coisas para comeres todos os dias durante uma semana. E pode ser que eu te dê mais um dólar para o mês que vem.
Ele não se mexeu, não abriu a boca. Dir-se-ia um brinquedo grande esculpido em madeira: pequeno, imóvel, com a cabeça e os olhos muito redondos, de calças de ganga de peitilho. Estava paralisado de pasmo, choque, ultraje. Olhava para o dólar e parecia-lhe ver muitos tubos de pasta de dentes alinhados como toros, a perder de vista, aterradores. Todo o seu ser se enroscou numa convulsão intensa, apaixonada. – Não quero nada – disse ele. «Não quero nada nunca mais», pensou.
Não se atrevia a olhar nem sequer para a cara dela. Sentia-a, ouvia-a, sentia a sua respiração ansiosa É agora pensou num ápice. Mas ela nem sequer o abanou. Apenas o agarrou com força, sem o abanar, como se a mão dela também não soubesse o que fazer a seguir. O rosto dela estava tão perto que sentia a respiração dela no rosto. Não precisava de erguer os olhos para saber que aspeto tinha agora a cara dela. – Conta! – disse ela. – Então conta! Pretinho desavergonhado! Seu preto desavergonhado!
Isto passou-se no terceiro dia. No quarto dia, ela aparece muito calma, mas completamente louca. Nada estava planeado. As suas ações subsequentes obedeciam a uma espécie de premonição, como se os dias e noites em claro, durante os quais tinha alimentado sob uma máscara de serenidade toda a raiva e o medo, lhe tivessem conferido, a par da sua natural infalibilidade feminina, o dom psíquico de conceber espontaneamente o mal.
Andava agora bastante calma, parecendo ter esquecido no momento até mesmo a ansiedade anterior. Era como se agora tivesse tempo para olhar em volta e traçar um plano de ação. Olhando em volta, o olhar, o espírito e o pensamento foram bater diretos, certeiros, instantâneos, no zelador, sentado à porta da casa da caldeira. Sem nenhum raciocínio subjacente, nenhum desígnio. Era simplesmente como se olhasse para fora de si mesma por um instante, como um passageiro à janela de um carro, e visse sem surpresa aquele homenzinho de aspeto sórdido sentado numa cadeira de verga na soleira enegrecida de fuligem de uma porta, a ler um livro através de uns óculos de armação de aço – uma personagem, dir-se-ia um adereço, que se habituara a ver nos últimos cinco anos sem, no entanto, alguma vez ter olhado realmente para ele. Não o teria reconhecido se o visse na rua. Teria passado por ele sem o reconhecer, mesmo sendo ele um homem. A vida dela parecia correr agora linear e simples como um corredor com ele sentado ao fundo. Dirigiu-se imediatamente para o homem, vendo-se já a caminho pelo corredor sujo mesmo antes de se ter dado conta de estar em movimento.
Ele estava sentado entre portas na cadeira de verga, com o livro aberto em cima dos joelhos. Quando ela se aproximou, viu que era a Bíblia. Mas reparou nisto como poderia ter reparado numa mosca pousada na perna dele. – Você também o detesta – disse ela. – Também anda de olho nele. Eu bem o vi. Não diga que não anda. – Ele olhou para ela, com os óculos puxados agora para a testa. Não era velho. A sua atual ocupação era uma incongruência. Era um homem robusto, na força da vida; um homem que devia estar a levar uma vida dura e ativa, mas a quem o tempo, as circunstâncias ou fosse o que fosse tinham atraiçoado, arrastando o corpo robusto e a mente de um homem de quarenta e cinco anos para aquele remanso próprio para um homem de sessenta ou sessenta e cinco anos. – Você sabia – disse ela. – Você sabia antes de os outros miúdos lhe terem começado a chamar Preto. Você veio para cá ao mesmo tempo que ele. Você ainda não estava cá há um mês naquela noite de Natal em que o Charley o encontrou abandonado ali à porta. Vá, confesse. – A cara do zelador era redonda, um pouco flácida e muito suja, com uma barba imunda, por fazer. Os seus olhos eram muito claros, muito cínzeos, muito frios. E muito loucos também. Mas a mulher não reparou nisso. Ou talvez não os achasse loucos. Estavam os dois frente a frente na soleira da porta enfarruscada de fuligem – olhos loucos a fitarem olhos loucos, voz louca a dialogar com voz louca – calmos, serenos e incisivos como dois conspiradores. – Ando a observá-lo há cinco anos. – Ela estava convencida de que isso era verdade. – Aí sentado nessa mesma cadeira, a observá-lo. Você nunca se senta aí senão quando as crianças andam lá fora. Assim que elas saem, traz a cadeira aqui para a porta e senta-se de maneira a poder vê-las. Vê-lo a ele e ver os outros chamarem-lhe Preto. É isso que está a fazer. Eu sei. Vem para aqui só para isso, para o vigiar e o odiar. Você estava aqui pronto para ele, quando ele chegou. Se calhar foi você mesmo que o trouxe e o abandonou aí à porta. Você é que sabe. E eu tenho de saber. Quando ele contar tudo, sou despedida. E o Charley pode... vai... Vá, confesse. Diga lá. Agora.
– Ora – disse o zelador –, eu sabia que ele ia estar lá para a apanhar com a boca na botija quando Deus quisesse. Eu sabia. E sei que foi Ele que o pôs lá, como um aviso, uma condenação das poucas-vergonhas que você estava a fazer.
– Pois foi. Ele estava mesmo por detrás da cortina. Tão perto de mim como você está agora. Vá, diga lá. Tenho visto os olhos que lhe deita. Ando a observá-lo. Há cinco anos.
– Eu sei – disse ele. – Eu conheço o mal. Pois não dei eu pernas ao mal para andar por esse mundo de Deus? Como uma praga ambulante perante os olhos de Deus. E Ele nunca o ocultou, pela boca das crianças5. Você bem as ouviu. Eu nunca as mandei dizer nada, chamar-lhe o que ele era por natureza, o nome da sua condenação. Eu nunca lhes disse nada. Mas elas sabiam. Alguém lhes disse, mas não fui eu. Eu só fiquei à espera de que Ele achasse que era a hora, o momento de o revelar ao Seu mundo dos vivos. E agora chegou a hora. E este é o sinal, de novo escrito no pecado da mulher e na sua depravação.
– Está bem. Mas o que é que eu devo fazer? Diga-me.
– Esperar. Como eu esperei. Cinco anos foi quanto esperei para o Senhor se dignar mandar um sinal da Sua vontade. E ele mandou-o. Espere você também. Quando Ele estiver preparado, Ele manifestará a Sua vontade aos que têm a última palavra.
– Está bem. Aos que têm a última palavra. – Fuzilavam-se mutuamente com o olhar, imóveis, respirando calmamente.
– À diretora. Quando Ele estiver preparado, Ele lho revelará.
– Quer você dizer que, se a diretora souber, o manda embora? Está bem. Mas eu é que não posso esperar.
– Mas também não pode apressar Nosso Senhor. Então eu não esperei cinco anos?
Ela começou a bater com as mãos uma na outra levemente. – Mas não está a ver? Esta pode muito bem ser a vontade do Senhor. Para que você me diga. Porque você sabe. Talvez Ele queira que você me diga e que eu diga à diretora. – Os seus olhos loucos estavam bastante calmos, a sua voz louca, paciente e calma: o único senão eram as mãos que não paravam de bater.
– Você tem de esperar, como eu esperei – disse ele. – Você sentiu através dos remorsos o peso da mão do Senhor durante três dias. Eu senti-lhe o peso durante cinco anos, à espreita e à espera da hora que Ele marcasse, porque o meu pecado é maior do que o seu. – Embora estivesse a olhar diretamente para ela, não parecia estar a vê-la, pelo menos não com os olhos. Pareciam cegos, desorbitados, gélidos, fanáticos. – Em comparação com o que fiz e o que sofri para expiar o meu pecado, o que você fez e está a expiar como mulher não passa de um punhado de podridão. Eu carreguei a minha cinco anos; quem é você para querer apressar Deus Todo-Poderoso com as suas porcarias?
Ela voltou-se bruscamente. – Muito bem. Não precisa de me dizer. Eu sei, e pronto. Sempre soube que ele é preto. – Voltou para dentro de casa. Agora caminhava devagar e até bocejou, um bocejo assustador. «Tudo o que tenho de fazer é pensar numa maneira de convencer a diretora. Ele não lhe vai dizer nada, não me vai apoiar.» Bocejou outra vez, desmesuradamente, estando agora o seu rosto vazio de tudo exceto do bocejo e depois vazio até do bocejo. Ela tinha acabado de se lembrar de outra coisa. Ainda não se tinha lembrado disso, mas estava convencida de que já tinha, de que sempre o soubera, porque lhe parecia o mais acertado: ele não seria apenas expulso; seria castigado por lhe ter infligido terror e preocupações. «Eles vão mandá-lo para o orfanato dos pretos», pensou ela. «Claro. Não têm outro remédio.»
Ela nem se deu ao trabalho de ir logo falar com a diretora. Tinha começado a dirigir-se para lá, mas em vez de virar para o gabinete, deu por si a seguir em frente, em direção às escadas, subindo-as em seguida. Era como se fosse atrás de si mesma, para ver o que ia fazer. No corredor, agora silencioso e deserto, bocejou mais uma vez, em completo relaxamento. Entrou no quarto, fechou a porta à chave, despiu-se e meteu-se na cama. As persianas estavam corridas e ela ficou deitada de costas, muito quieta, na penumbra densa. Tinha os olhos fechados e o rosto vazio e descansado. Daí a pouco começou a abrir e fechar as pernas lentamente, sentindo os lençóis roçarem nelas frescos e macios e depois quentes e macios outra vez. Os pensamentos pareciam suspensos entre o sono que não a visitava há três noites e o sono que estava prestes a chegar, sentindo o corpo abrir-se para receber o sono, como se o sono fosse um homem. «Tudo o que eu preciso é de fazer a diretora acreditar», pensou. E depois pensou ainda Ele vai parecer uma ervilha numa caçarola cheia de grãos de café
Isto passou-se à tarde. Às nove da noite, estava ela a despir-se outra vez, quando ouviu os passos do zelador no corredor, em direção à porta do quarto dela. Não sabia, não podia saber, de quem se tratava, mas de repente percebeu, pelo andar pesado e pela maneira como bateu à porta, começando logo a abri-la sem lhe dar tempo a correr para a porta. Ela não gritou; saltou para trás da porta, encostando-se a ela, impedindo-a de abrir. – Estou a despir-me! – exclamou, pouco mais alto que um murmúrio. – Então não sabe que eles... – A voz saía-lhe entrecortada, sumida, desesperada. Ele não respondeu. Ela tentava a todo o custo suster o movimento lento e arrastado da porta a abrir-se para dentro do quarto. – Deixe-me vestir primeiro alguma coisa, e eu saio já. Está bem? – Disse-o num sussurro sumido, num tom débil, inconsequente, como se estivesse a falar com uma criança de reações imprevisíveis ou com um louco: apaziguadora, bajuladora: – Vai esperar um bocadinho, está bem? Está a ouvir? Agora vai esperar um bocadinho, não vai? – Ele não respondeu. O lento e irresistível avanço da porta não parava. Encostada a ela, sem mais nada vestido além da combinação, ela parecia uma marioneta num qualquer número burlesco de rapto e perdição. Encostada à porta, olhos no chão, imóvel, parecia mergulhada em profunda meditação, como se a marioneta a meio da cena se tivesse perdido completamente. Depois voltou-se, afastando-se da porta, com a combinação apertada contra o peito, protegendo-se. Ele já estava lá dentro; tudo indicava que tinha estado a observá-la, à espera, durante todo aquele lapso de hesitação e interminável pressa.
Estava ainda com o macacão e agora também de chapéu. Não o tirou. E de novo os seus olhos cínzeos, frios e dementes pareciam não estar a vê-la, não olhar para ela. – Nem que fosse Nosso Senhor em pessoa a vir ao quarto de uma de vocês! Vocês iam logo pensar que Ele vinha para poucas-vergonhas. – E depois: – Já lhe disse?
A mulher estava sentada na cama e parecia enterrar-se nela cada vez mais ao mesmo tempo que apertava a combinação contra o peito, lívida, a fitá-lo. – Disse-lhe?
– O que é que ela vai fazer com ele?
– Fazer? – Ela não tirava os olhos dele: daqueles olhos brilhantes e estáticos que pareciam estar, não tanto a olhar para ela, mas mais a envolvê-la. A boca dela estava escancarada, como a boca de um idiota.
– Para onde é que eles o vão mandar? – Ela não respondeu. – Não me minta, não minta a Deus Todo-Poderoso. Eles vão mandá-lo para um de pretos. – A boca dela fechou-se; era como se tivesse finalmente percebido do que ele estava a falar. – Oiça, eu estive a pensar. Eles vão mandá-lo para um orfanato para pretos. – Ela não respondeu, mas continuava a observá-lo, com uns olhos ainda amedrontados, mas ao mesmo tempo secretos, calculistas. Agora ele estava a olhar para ela e os olhos dele pareciam contrair-se, incisivos, sobre a sua forma, o seu ser. – Responde, Jezebel! – gritou ele.
– Chiu! – disse ela. – Sim. Não têm outro remédio. Quando descobrirem...
– Ah – disse ele. O olhar dele esmoreceu; os olhos dele libertaram-na e de novo a envolveram. Ao olhá-los, ela parecia ver-se neles mais pequena do que o nada, insignificante como um graveto a boiar num charco. Então, os olhos dele tornaram-se quase humanos e começaram a percorrer aquele quarto de mulher, como se nunca tivessem visto nenhum outro antes: aquele quarto fechado, quente, desarrumado, com um perfume rosa de mulher. – Porcarias – disse ele. – Perante os olhos de Deus. – Deu meia-volta e saiu. Algum tempo depois a mulher levantou-se. Ficou parada por uns momentos, a apertar a combinação, estática, a olhar apalermada para a porta escancarada, como se não conseguisse pensar no que havia de dizer a si mesma para fazer. Nisto, deu uma corrida. Correu para a porta, atirou-se para cima dela, bateu-a com toda força e fechou-a à chave, deixando-se ficar encostada a ela, ofegante, apertando entre as duas mãos a chave que acabara de rodar.
Na manhã seguinte, ao pequeno-almoço, o zelador e o menino tinham desaparecido. Nem sinal deles. A polícia foi avisada imediatamente. Descobriram que uma das portas laterais, da qual o zelador tinha a chave, estava aberta.
– É porque ele sabe – disse a nutricionista à diretora.
– Sabe o quê?
– Que esse miúdo, esse Natal, é preto.
– É o quê? – disse a diretora. Recostada na cadeira, olhava furiosa para a jovem. – Pre... Não acredito! – exclamou. – Eu não acredito!
– Não precisa de acreditar – disse a outra. – Mas ele sabe que assim é. Foi por isso que o levou.
A diretora já passava dos cinquenta e tinha um rosto flácido e uns olhos brandos, afáveis, frustrados. – Eu não acredito! – repetiu. Mas, passados três dias, chamou a nutricionista. Parecia não dormir há bastante tempo. A nutricionista, pelo contrário, estava muito fresca, muito serena, muito descontraída, quando a diretora lhe deu a novidade de que o homem e o menino tinham sido encontrados. – Em Little Rock – disse a diretora. – Tentou meter lá o rapaz num orfanato. Julgaram que ele estava doido e prenderam-no até a polícia chegar. – E, fitando a mulher mais jovem, prosseguiu: – Você disse-me que... No outro dia disse-me... Como é que sabia?
A nutricionista não desviou o olhar. – Não sabia. Não fazia a mais pequena ideia. Claro que eu sabia que, quando as outras crianças lhe chamavam Preto, isso não queria dizer nada...
– Preto? – disse a diretora. – As outras crianças?
– Há anos que lhe chamam Preto. Às vezes penso que as crianças têm uma maneira de perceber coisas que as pessoas adultas, da sua idade e da minha, não conseguem ver. As crianças e os velhos como ele, como esse velho. Era por isso que ele se ia sentar sempre junto daquela porta, quando eles estavam a brincar no recreio: para vigiar o garoto. Talvez ele tivesse ficado a saber por ouvir os outros miúdos chamarem-lhe Preto. Mas podia ser que já soubesse. Se pensar bem, eles chegaram os dois aqui mais ou menos ao mesmo tempo. Ele ainda não trabalhava cá há um mês, quando, naquela noite... naquela noite de Natal, não se lembra... quando o Na... quando encontraram o bebé na soleira da porta. – Falava suavemente, vendo os olhos pasmados, amedrontados da outra mulher mais velha pregados nela como se não pudesse desviá-los. Os olhos da nutricionista eram doces e inocentes. – Por acaso um dia destes estávamos a falar e ele parecia querer contar-me qualquer coisa a respeito do miúdo. Qualquer coisa que ele me queria contar, contar a alguém, mas depois deve ter perdido a coragem e já não me quis contar nada, e eu vim-me embora e não pensei mais no assunto. Já me tinha esquecido completamente, quando... – Calou-se. Fitou a diretora enquanto o rosto se lhe iluminava, como se, de repente, tivesse percebido tudo; ninguém seria capaz de dizer se era ou não simulação. – E isso, foi por isso que... É isso, agora percebo tudo. O que se passou na véspera de eles se terem ido embora... desaparecido. Eu ia no corredor, a caminho do meu quarto; foi no mesmo dia em que estive a falar com ele e ele se recusou a acabar o que tinha começado a contar, quando, de repente, ele veio ter comigo e me obrigou a parar; na altura achei curioso, porque nunca o tinha visto andar pela casa. Ele disse... parecia louco, estava com cara de louco. Eu fiquei assustada, assustada de mais para me mexer, com ele a barrar-me a passagem... E ele disse: «Já lhe contou?», e eu disse: «Contei o quê? Contei o quê a quem?», e então percebi que ele se referia a si; se eu lhe tinha contado que ele tinha tentado contar-me qualquer coisa a respeito do miúdo. Mas eu não sabia o que é que ele queria que eu lhe contasse e só me apetecia gritar e ele disse: «O que é que ela vai fazer se descobrir?», e eu não sabia o que dizer nem como me havia de livrar dele e ele então disse: «Não precisa de me dizer. Eu sei o que é que ela vai fazer. Ela vai mandá-lo para um de pretos.»
– De negros?
– Não sei como é que nós não descobrimos há mais tempo. Basta olhar para a cara dele, para os olhos, o cabelo. Claro que é terrível. Mas é para onde ele tem de ir, acho eu.
Por detrás das lentes, os olhos brandos e perturbados da diretora tinham uma expressão aflita, amedrontada, como se estivesse a tentar forçá-los a ser algo que estava para lá das suas capacidades de coesão física. – Mas porque é que ele havia de querer levar daqui o garoto?
– Bem, se quer saber a minha opinião, eu penso que ele é doido. Se o tivesse visto no corredor naquela noi... dia como eu vi. Claro que é mau para a criança ter de ir para um asilo de pretos, depois de ter estado neste, depois de ter crescido entre brancos. Ele não tem culpa de ser o que é. Mas nós também não... – Calou-se e fitou a diretora. Por detrás dos óculos, os olhos da mulher mais velha estavam ainda aflitos, brandos, desesperados; a boca tremia-lhe ao pronunciar as palavras. Palavras que eram também desesperadas, mas suficientemente incisivas, suficientemente determinadas:
– Temos de lhe arranjar um lar. Temos de lhe arranjar um lar imediatamente. Que pedidos temos? Traga-me o ficheiro...
Quando o menino acordou, estava a ser transportado. A escuridão era de breu e fazia muito frio; estava a ser levado pelas escadas abaixo por alguém que se movia em silêncio e com cautela infinita. Apertada entre ele e um dos braços que o seguravam, estava uma trouxa que ele sabia serem as suas roupas. Não gritou, não disse nada. Sabia onde estava pelo cheiro, o ar da escada de serviço que começava no quarto onde, desde que se lembrava, o seu catre se alinhava entre outros quarenta, descendo até à porta lateral. Sabia também pelo cheiro que a pessoa que o levava ao colo era um homem. Mas não fez qualquer ruído, deixando-se ir deitado e tão quieto e inerte como se estivesse a dormir, empoleirado naqueles braços invisíveis, avançando, descendo lentamente para a porta lateral que dava para o recreio.
Não sabia quem o levava. Não se preocupava com isso, porque achava que sabia para onde ia. Ou, melhor, porquê. Por enquanto, também não se preocupava em saber para onde. Recordou o que se passara dois anos antes, quando ele tinha três anos. Um dia, desapareceu uma menina de doze anos chamada Alice. Ele tinha simpatizado com ela o suficiente para a deixar fazer às vezes de mãe dele; ou talvez por isso mesmo. Por isso, para ele, ela era tão madura e quase tão grande em tamanho como as mulheres adultas que o mandavam comer, lavar-se e ir para a cama, com a diferençade de que ela não era e nunca seria sua inimiga. Uma noite, ela acordou-o. Estava a despedir-se dele, mas ele não sabia. Estava cheio de sono e um bocado rabugento, sem ter chegado a acordar completamente, e só a aturou, porque ela sempre o tinha tratado bem. Não sabia que ela estava a chorar, porque não sabia que os grandes também choravam, e quando aprendeu isso, já a tinha esquecido. Voltou a adormecer, ainda a ouvi-la, e na manhã seguinte ela tinha-se ido embora. Tinha desaparecido sem deixar rasto, nem sequer uma peça de roupa, e até o catre onde ela sempre tinha dormido já estava ocupado por outro rapaz. Nunca chegou a saber para onde ela teria ido. Nesse dia pôs-se à escuta, quando algumas das raparigas mais velhas que a tinham ajudado a fugir comentavam o acontecimento entre segredos e murmúrios bichanados, como acontece quando meia dúzia de raparigas ajudam uma sétima a preparar-se para o casamento, cochichando acerca do vestido novo, dos sapatos novos e da carruagem que a levou à igreja. Só então percebeu que ela se tinha ido para sempre, tinha passado para lá do portão de ferro aberto na vedação de arame de aço. Parecia vê-la agora, qual heroína, a passar para lá do portão desengonçado, desvanecendo-se sem diminuir de tamanho até se transformar em algo anónimo e esplêndido como um pôr do sol. Só passado mais de um ano ficou a saber que ela não tinha sido a primeira e não seria a última. Que já outras Alices tinham desaparecido pelo portão que rangia, de vestido novo ou jardineiras novas, levando uma trouxa pequena e bem amarrada, por vezes mais pequena que uma caixa de sapatos. Julgava que estava agora a acontecer-lhe o mesmo. Julgava que as outras também tinham sido levadas, como ele, pela calada da noite.
Pressentia agora a porta. Estava já muito perto; sabia o número exato de degraus invisíveis que ainda faltavam, e que o homem que o transportava descia com o já referido silêncio e cautela infinita. Sentia a respiração do homem, silenciosa, acelerada e quente bater-lhe no rosto; por baixo do corpo sentia os seus braços tensos e rígidos, a trouxa enrolada que na escuridão percebera pelo tato serem as suas roupas. O homem parou. Ao curvar-se, os pés do menino balançaram e acabaram por tocar no chão, com os dedos encaracolados, para fugirem às tábuas frias como metal. O homem falou pela primeira vez. – Põe-te de pé – ordenou, e a criança percebeu quem ele era.
Reconheceu o homem imediatamente, sem surpresa. Surpresa teria a diretora, se soubesse até que ponto ele conhecia o homem. Não sabia o nome do homem e nos seus três anos de vida consciente não tinham trocado nem cem palavras. Mas o homem era mais importante na vida dele do que qualquer outra pessoa, mesmo a Alice. Ainda com três anos, o menino já tinha percebido que existia alguma coisa entre eles que dispensava as palavras. Sabia que não passava um segundo no recreio sem que o homem estivesse a vigiá-lo da cadeira colocada à porta da casa da caldeira, e que o homem o vigiava com uma atenção constante e desmedida. Se o menino fosse mais velho, talvez tivesse pensado Ele odeia-me e tem medo de mim. Tanto assim é que não me perde de vista Com mais vocabulário, mas com a mesma idade, poderia ter pensado É por isso que eu sou diferente dos outros: porque ele está sempre a vigiar-me E aceitou a situação. Por isso, não ficou surpreendido quando descobriu quem o tinha levado a dormir, tirado da cama e carregado ao colo pela escada abaixo; tal como, já em pé ao lado da porta, em plena escuridão, enquanto o homem o ajudava a vestir-se, poderia ter pensado Ele odeia-me até ao ponto de tentar impedir que alguma coisa que está para me acontecer aconteça mesmo
Ele vestiu-se obedientemente, a tiritar, tão depressa quanto podia, procurando os dois as peças mais miúdas e enfiando-as de qualquer maneira. – Os sapatos – disse o homem, num sussurro abafado. – Toma. – O menino sentou-se no chão a calçar os sapatos. O homem agora não estava a tocar-lhe, mas o menino ouvia, sentia que o homem também estava curvado a fazer qualquer coisa. «Também está a calçar os sapatos», pensou ele. O homem tocou-lhe outra vez, agarrando-o e pondo-o de pé. Os sapatos tinham os atacadores desapertados. Ainda não tinha aprendido a fazer isso sozinho. Porém, não disse ao homem que não tinha apertado os sapatos. Não disse nada. Deixou-se ficar muito quieto e, em seguida, uma peça de roupa maior envolveu-o completamente... pelo cheiro percebeu que era do homem... e depois sentiu-se novamente elevado no ar. A porta abriu-se sem ruído. O ar frio entrou, acompanhado da luz dos candeeiros da rua; ele via as luzes, as paredes nuas da fábrica e as chaminés altas e agora sem fumo recortadas contra as estrelas. À luz dos candeeiros, a vedação de aço parecia um pelotão de soldados famintos em parada. Quando iam a atravessar o recreio vazio, os pés do menino balançavam ao ritmo das passadas do homem, com os sapatos desapertados a dançarem-lhe à volta dos tornozelos. Alcançaram os portões de ferro e saíram.
Não precisaram de esperar muito tempo pelo elétrico. Se ele fosse mais velho, teria reparado como o homem calculara bem os tempos. Mas não achou estranho nem registou o facto. Deixou-se apenas ficar ao lado do homem, com os sapatos desapertados, embrulhado até aos tornozelos no casaco do homem, com os olhos muito redondos e desmedidamente abertos e a cara pequenina, imóvel, acordada. O elétrico chegou, com a sua correnteza de janelas, chiando ao parar e continuando a zumbir enquanto entravam. Ia quase vazio, pois já passava das duas. Só agora o homem reparou nos sapatos por apertar e apertou ele mesmo os atacadores, perante o olhar atento do menino, muito quieto no lugar, com as pernas esticadas para a frente. A estação do comboio ficava muito longe, e como ele já tinha andado de elétrico antes, quando chegaram à estação ia a dormir profundamente. Quando acordou já era dia claro e já iam há algum tempo no comboio. Ainda nunca tinha andado de comboio, mas ninguém diria. Ia sentado muito quieto, como fizera no elétrico, completamente embrulhado no casaco do homem exceto as pernas, esticadas para a frente, e a cabeça, a olhar para a paisagem, os montes, as árvores, as vacas e coisas que tais que nunca antes tinha visto fugirem-lhe assim diante dos olhos. Quando o homem percebeu que ele já estava acordado, desembrulhou uma folha de jornal, tirou um pão com presunto e deu-lho. – Toma – disse o homem. Ele pegou no pão e comeu-o, sempre a olhar para a janela.
Não disse uma palavra, não tinha mostrado qualquer surpresa, nem mesmo quando, no terceiro dia, o polícia veio para o levar a ele e ao homem. O sítio onde estavam agora não era diferente daquele que tinham abandonado durante a noite... as mesmas crianças, mas com nomes diferentes; os mesmos adultos, mas com cheiros diferentes: não via qual a diferença entre ir para ali e ficar no sítio de onde saíra. Mas não ficou surpreendido, quando eles vieram dizer-lhe que se levantasse da cama e se vestisse, sem no entanto lhe dizerem por que razão o faziam ou para onde o iam levar. Talvez soubesse que ia regressar; talvez, na sua sabedoria de menino, sempre tivesse sabido o que o homem ignorava: que aquela situação não podia, não iria durar. De novo no comboio, via os mesmos montes, as mesmas árvores, as mesmas vacas, mas agora de um ângulo diferente, na direção oposta. O polícia deu-lhe qualquer coisa para comer: pão com presunto, mas desta vez não tinha saído de uma folha de jornal. Reparou nisso, mas não disse nada, talvez nem tenha sequer pensado nada.
Viu-se de novo em casa. Talvez estivesse à espera de ser castigado, embora não pretendesse sequer saber por que crime, exatamente, pois já tinha aprendido que, embora as crianças aceitem os adultos tal como eles são, os adultos nunca aceitam as crianças a não ser que se portem como adultos. Já tinha esquecido o episódio da pasta dos dentes. Evitava agora a todo o custo encontrar-se com a nutricionista, tal como, há um mês, andara constantemente a atravessar-se no seu caminho. E andava tão preocupado em fugir dela que já esquecera há muito a razão por que o fazia; como depressa esqueceu a viagem, pois jamais viria a saber que as duas coisas estavam relacionadas. Pensava nisso de vez em quando, de forma difusa, fugaz, mas só quando olhava para a porta da casa da caldeira e se lembrava do homem que lá se costumava ir sentar a vigiá-lo e que agora se tinha eclipsado sem deixar rasto, sem deixar sequer a cadeira de verga esquecida à porta, como sempre acontecia com todos os que de lá saíam. Que rumo tinha tomado era coisa em que o menino nem sequer pensava e muito menos o preocupava.
Uma noite entraram no dormitório e levaram-no. Foi duas semanas antes do Natal. Duas das funcionárias mais novas – a nutricionista era uma delas – levaram-no para a casa de banho, lavaram-no, pentearam-lhe os cabelos molhados, vestiram-lhe um macacão de ganga lavado e conduziram-no ao gabinete da diretora. Estava um homem sentado no gabinete, um estranho. Ele olhou para o homem e percebeu, antes mesmo de a diretora lhe dizer fosse o que fosse. Talvez fosse o saber guardado na memória, o saber feito recordação; talvez até desejo, pois aos cinco anos é-se novo de mais para se ter aprendido o suficiente acerca do desespero para se poder ter esperança. Talvez de repente se tivesse lembrado da viagem de comboio e da comida, pois a sua memória não recuava muito mais do que isso. – Joseph – disse a diretora – gostavas de ir viver para o campo com uma família que te tratasse muito bem?
Ele estava parado diante deles, com as orelhas e a cara muito vermelhas, a arderem do sabão azul e branco e da toalha áspera, enfiado no macacão lavado, muito teso, a ouvir o desconhecido. Tinha olhado para ele uma vez e o que viu foi um homem robusto, de barba castanha cerrada e cabelo cortado muito curto, mas não há muito pouco tempo. O cabelo e a barba denotavam ambos uma rigidez e um vigor notáveis, sem um único cabelo branco, como se a pigmentação fosse imune aos quarenta e muitos anos que a cara denunciava. Os olhos eram claros e gélidos. Envergava um fato rígido, dignamente preto. Sobre os joelhos repousava um chapéu preto que segurava com a mão rude e muito limpa, mas crispada como um punho, mesmo tratando-se do feltro mole do chapéu. O colete era atravessado por uma corrente de relógio em prata. Os sapatos pretos, pesados, pousavam no chão lado a lado; via-se que tinham sido engraxados manualmente. Até mesmo uma criança de cinco anos percebia, ao olhar para ele, que o homem não consumia tabaco nem o tolerava nos outros. Mas o menino não se atrevia a olhar para o homem, por causa dos seus olhos.
No entanto, sentia o homem a fitá-lo com um olhar frio e incisivo, mas não deliberadamente duro. Era o olhar com que poderia examinar um cavalo ou um arado em segunda mão, convencido de antemão de que lhe iria encontrar defeitos, convencido de antemão de que o iria comprar. A sua voz era deliberada, descontínua, soturna; a voz de um homem que exigia ser ouvido, não tanto com atenção, mas sim em silêncio. – E a senhora não pode, ou não quer, dizer-me mais nada sobre os pais do rapaz?
A diretora não olhou para ele. Os seus olhos pareciam ter congelado por detrás dos óculos, pelo menos de momento, e a resposta chegou imediata, talvez até um pouco imediata de mais: – Nós aqui não fazemos qualquer esforço para saber quem são os pais. Como já lhe disse, ele foi abandonado à nossa porta na véspera de Natal, faz cinco anos daqui a duas semanas. Se para si é importante conhecer a filiação desta criança, então é melhor não adotar nenhuma.
– Não me refiro apenas a isso – disse o desconhecido. O seu tom de voz era agora apaziguador. Pretendia desculpar-se sem no entanto recuar nas suas convicções. – Pensei que pudesse falar com Miss Atkins (era este o nome da nutricionista), uma vez que foi com ela que troquei alguma correspondência.
Mais uma vez a voz da diretora soou cortante e imediata, dizendo, sem o deixar completar a frase: – Eu talvez lhe possa dar tantas informações como Miss Atkins sobre esta ou qualquer outra criança, pois as suas funções aqui dentro têm apenas a ver com o funcionamento do refeitório e da cozinha. Só que, neste caso, ela fez o favor de escrever as cartas que lhe enviámos.
– Não tem importância – disse o desconhecido. – Não tem importância. Só tinha pensado que...
– Pensado o quê? Nós não obrigamos ninguém a levar as nossas crianças, tal como não obrigamos as crianças a irem contrariadas, se as suas razões forem aceitáveis. Isso é um problema para ser resolvido por ambas as partes. Nós só podemos dar conselhos.
– Está bem – disse o desconhecido. – Não tem importância, como já lhe disse. Não tenho quaisquer dúvidas de que o catraio serve perfeitamente. Ele vai gostar de viver comigo e com Mrs. McEachern. Já não somos novos e gostamos de levar uma vida pacata. Ele não vai encontrar nem luxos nem tempo para mandriar. Mas também não vai trabalhar mais do que lhe é dado. Não tenho dúvidas de que connosco ele vai crescer temente a Deus e sem preguiça nem vaidade, sejam quais forem as suas origens.
E assim era cobrada a promissória que ele assinara com um tubo de pasta dos dentes numa bela tarde, havia dois meses, indo agora o signatário, já esquecido do acontecido, sentado numa sege, enrolado numa manta limpa de cavalos, pequeno, informe, imóvel, aos solavancos por cima dos sulcos enregelados de uma estrada, naquele crepúsculo de dezembro. Tinham viajado todo o dia. Ao meio-dia o homem tinha-lhe dado de comer tirando de debaixo do banco uma caixa de cartão com comida caseira feita há três dias. Mas só agora o homem falou com ele. Disse apenas três palavras, apontando para a estrada, com a mão enluvada que segurava o chicote, na direção de uma luz isolada que brilhava no crepúsculo. – A tua casa – disse ele. O menino não abriu a boca. O homem olhou para ele. Também ia enrolado numa manta para se proteger do frio, atarracado, corpulento, sem formas, como um rochedo, indómito, não propriamente agressivo, mas implacável. – Ouviste?, disse que aquela era a tua casa. – Mas o menino voltou a não responder. Não sabia do que ele estava a falar e por isso não tinha comentários a fazer. E ainda não tinha idade para falar sem dizer nada. – Ali vais encontrar um teto, comida e os cuidados de gente cristã – disse o homem. – E trabalho à medida das tuas forças, para te manter longe dos maus caminhos. Eu vou fazer-te aprender bem depressa que as duas piores abominações são a indolência e a irreverência, e que as duas maiores virtudes são o trabalho e o temor a Deus. – E de novo o menino nada disse. Nunca tinha trabalhado nem sentido o temor a Deus. Sabia menos de Deus que do trabalho. Já tinha visto o trabalho, a ser feito por homens no recreio, com ancinhos e com pás, durante seis dias por semana, mas Deus só existia ao domingo. E mesmo assim – tirando a inevitável provação da higiene semanal – era uma música agradável ao ouvido e palavras que também não feriam os ouvidos, uma experiência agradável, se bem que um pouco cansativa. Ele não disse uma palavra. A sege continuou a saltitar estrada fora, com os cavalos possantes e bem tratados ansiosos por chegarem a casa, ao seu estábulo.
Havia uma outra coisa de que ele não viria a lembrar-se senão muito mais tarde, quando a memória já não se contentava com a fachada, a camada mais superficial das lembranças. Estavam no gabinete da diretora; ele de pé, imóvel, sem olhar para os olhos do desconhecido, mas sentindo-os pousados nele, à espera de ouvir o desconhecido dizer o que os seus olhos estavam a pensar. E disse-o: – Natal. Isso é um nome pagão. Um sacrilégio. Mas ponho-lhe outro.
– É um direito que lhe assiste – disse a diretora. – A nós não nos interessa o nome que lhes possam dar, mas sim como vão ser tratados.
Mas o desconhecido já não ouvia ninguém, já não estava a falar para ninguém. – De hoje em diante o nome dele vai ser McEachern.
– Acho muito louvável que lhe dê o seu nome – disse a diretora.
– Ele vai comer do meu pão e seguir a minha religião – disse o desconhecido. – Porque não há de usar o meu nome?
O menino não estava a ligar. Tanto lhe fazia. Importava-se tanto com isso como se o homem tivesse dito que o dia estava muito quente, quando não estava. Nem sequer se deu ao trabalho de dizer para consigo O meu nome não é McEachern. O meu nome é Natal Ainda não precisava de se preocupar com isso. Tinha muito tempo à sua frente.
– Sim, porque não? – disse a diretora.
5 ver Salmos, 8:22; S. Marcos, 21:16.