[Gutenberg 28526] • Othello

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From Content: "Era a epoca mais feliz e florescente da aristocratica Republica de Veneza. As esquadras disputavam vantajosamente aos turcos a supremacia no Mediterraneo, e nas costas gregas, Rhodes e Chypre unidas ao feliz povo da poderosa Senhoria, diziam eloquentemente ao ottomano que não era nada facil arrancar a presa ao leão de S. Marcos, quando este a colhera nos seus afilados dentes. Vivia-se por então no tempo em que a espada não podia enferrujar dentro da bainha, pois nos breves intervallos durante os quaes os exercitos não luctavam de povoado em povoado, de nação em nação, os individuos, sem distincções de cathegorias nem de classes, inventavam mil pretextos para guerrearem entre si, receosos talvez de olvidarem no repouso o manejo das armas. Por causa d'isto e tambem com receio dos innumeraveis « *briganti* » e roubadores de bolsas que, durante a noute, vagueavam pela poetica cidade dos canaes, nem todos se atreviam a transitar por ella fóra de horas, pois estavam certos de que nada bom encontrariam nas suas escuras e mysteriosas ruas. Eis porque causava certa extranheza ver a tranquilidade com que dois cavalleiros, jovens e de elegante porte, se bem que tal elegancia fosse mais notavel no que aparentava menos edade, conversavam passeando pela solitaria praça de S. Marcos á uma hora da madrugada d'uma noute de inverno. Devemos ponderar que a tranquilidade, a que acabamos de alludir, referia-se sómente ao facto dos cavalleiros não recearem dos perigos nocturnos que os ameaçavam em tal sitio e a horas tão mortas da noute; por outro lado, os dois homens pareciam dominados por viva agitação, a julgar pela vehemencia dos gestos e pela animação com que sustentavam o seguinte dialogo: —Digo-te, meu caro Yago, que semelhante coisa é impossivel, dizia o mais novo e de melhor apparencia dos dois interlocutores, tão impossivel como o Adriatico poder devolver a sua Senhoria o Doge o annel que este lhe deu no dia das suas nupcias.  Allude á cerimonia que celebravam os Doges no dia do seu advento, e no qual simulavam casar com o Adriatico arrojando para o mar uma preciosa joia, que era o annel de nupcias. —Pois eu asseguro-te, nobre Rodrigo, replicou o mais velho dos cavalleiros, que trajava á militar e ostentava a divisa de alferes, que vi com os meus poprios olhos tua prima Desdemona, ha pouco mais de uma hora, fugir de casa do pae, o senador Brabancio, e saltar para uma gondola, onde a esperava esse maldito africano, que Deus confunda. —Pois bem, os teus olhos trahiram-te, apresentando á tua fantasia como real o que não era mais do que um sonho. Ah! as garrafas de vinho de Chypre que bebeste esta noute, tiveram mais força do que a tua resistencia de bebedor habituado ás libações, e puzeram-te completamente borracho, respondeu de mau humor aquelle a quem o seu companheiro dava o nome de Rodrigo. —Dizem, e com razão, que de namorado a tonto não vae mais do que um passo! exclamou o alferes Yago em tom desdenhoso. —Porque dizes isso? porguntou com altivez Rodrigo. Tratas acaso, de insultar-me? —Deus me livre de tal coisa, respondeu Yago. Queres dizer-me o que ganharia com isso? —Seja pelo que fôr, o facto é que me chamaste tonto. —Não, disse que estavas enamorado, e desafio a que o negues. —Seria inutil, pois sabei-o tão bem como eu, confessou Rodrigo.