Capítulo Dezenove

CLOUD ACORDOU AOS POUCOS. Primeiro veio a percepção da dor, depois a da respiração e do cheiro de limpeza. Isto lhe disse onde ela estava.

Hospital. Ela estivera em hospitais o suficiente para reconhecer os sinais e cheiros. Era novembro de 2005, e ela estava fugindo.

Ficou deitada em silêncio, com medo de abrir os olhos. Cloud se lembrava da noite anterior em imagens desconexas — uma luz vermelha, ser colocada numa maca e entrar numa sala branca. Médicos e enfermeiras ao redor dela, perguntando quem a espancara e para quem podiam ligar. Ela fechou os olhos e os ignorou. Sua boca estava tão seca que ela não poderia falar se tivesse o que dizer, e agora o tremor nas suas mãos voltara.

Havia alguém no quarto com ela. Cloud podia ouvir a respiração e o virar das páginas do prontuário. Com cuidado, abriu o olho bom. O outro estava inchado e fechado.

— Oi, Dorothy — disse uma negra gorda com dreadlocks e um monte de sardas em suas bochechas cheias de carne.

Cloud engoliu em seco. Ela poderia ter corrigido a mulher e dito que Dorothy morrera em 1973, mas quem se importava?

— Vá embora — disse ela, querendo poder erguer a mão para gesticular. Tinha medo de revelar o quanto estava tremendo. Nunca se quer mostrar fraqueza num hospital. Um movimento errado e você pode ir para a ala psiquiátrica.

— Sou a Dra. Karen Moody. Não sei se você se lembra, mas você tentou atacar um dos paramédicos que a trouxeram até aqui.

Cloud suspirou.

— Você está aqui para me avaliar. Me deixe facilitar as coisas. Não sou uma ameaça para mim ou para os outros. Se me descontrolei, foi por acidente.

— Suponho que esta não seja sua primeira avaliação psiquiátrica. Você conhece as regras.

Cloud deu de ombros.

— Estou com seu histórico médico, Dorothy. E falei com a polícia. É uma história e tanto.

Cloud a encarou sem dizer nada.

— A quantidade de ossos quebrados certamente não é normal. Vi marcas de cigarro na sua clavícula. Suponho que haja mais.

— Sou desastrada.

A médica fechou o prontuário.

— Duvido, Dorothy. E suponho que você se automedique para se esquecer.

— É assim que você me chama de bêbada e chapada? Se é, tem razão. Sou as duas coisas. Sou assim há décadas.

A médica a olhou com os olhos estreitos, analíticos. Depois ela pegou um cartão do seu bolso.

— Pegue isto, Dorothy. Trabalho numa clínica de reabilitação. Se você estiver preparada para mudar de vida, eu gostaria de ajudar.

Cloud pegou o cartão e o estudou.

— Suponho que você saiba quem é minha filha. Você acha que ela pagará qualquer coisa.

— Quero ajudar você, Dorothy. É o que eu faço.

— Por quê? Por que você iria querer me ajudar?

A médica lentamente ergueu a manga.

Cloud viu uma série de marcas rosadas na pele escura. Queimaduras de cigarro.

— Sei alguma coisa sobre beber para esquecer.

Cloud não sabia o que dizer.

— Deixa de funcionar. Na verdade, nunca funcionou, mas depois de um tempo a bebida só piora as coisas. Eu sei. Posso ajudar você. Ou gostaria de tentar. Cabe a você.

Cloud viu a mulher sair do quarto e bater a porta atrás de si. Na escuridão silenciosa, ela teve dificuldade para respirar. Não pensava naquelas cicatrizes havia anos.

Fique imóvel, droga, você sabia que isto aconteceria.

Ela engoliu em seco. Na parede diante dela, um relógio indicava a hora. Eram 12h01. Havia passado da meia-noite.

Um novo dia.

Ela fechou os olhos e dormiu.

Alguém a estava tocando, acariciando sua testa.

Tinha de ser um sonho.

Ela abriu os olhos. A princípio, viu apenas a escuridão. Depois, aos poucos, seu olho bom se ajustou. Ela viu uma janela com a luz exterior lançando um brilho dourado para dentro do quarto. A porta estava aberta; para além dela, a estação das enfermeiras estava iluminada e silenciosa.

Era o meio da noite. Ela sabia pelo silêncio.

— Oi — disse alguém.

Tully.

Ela reconheceria a voz da sua filha em qualquer lugar, até mesmo na escuridão antisséptica.

Cloud virou sua cabeça no travesseiro, fazendo uma careta para a dor que isso causou.

Sua filha estava lá, arqueando ligeiramente as sobrancelhas. Mesmo a esta hora, Tully estava linda — cabelos castanhos, belos olhos cor de chocolate, uma boca que deveria ser grande demais, mas que de algum modo se encaixava perfeitamente. Ela tinha o quê, quarenta e quatro agora? Quarenta e cinco?

— O que aconteceu? — perguntou Tully, tirando a mão da testa de Cloud.

Ela não tinha direito, mas sentiu falta do carinho.

— Fui espancada — disse, acrescentando: — por um estranho — para que parecesse menos patética.

— Não estava perguntando o que pôs você aqui. Estava perguntando o que lhe aconteceu.

— Acho que sua preciosa avó nunca lhe contou, né? — Ela queria encontrar a raiva que a alimentara durante tantos anos, mas não havia nada. Só lhe restava a tristeza e o arrependimento e o cansaço. Como podia explicar à sua filha que ela nunca fora capaz de entender a si mesma? Havia uma escuridão nela, uma fraqueza que a consumia toda. A vida inteira ela tentara proteger Tully desta verdade, mantendo-a distante, como quando se diz a uma criança para ficar longe de um penhasco. Era tarde demais para desfazer o estrago agora.

Nada disso importava e saber a verdade não a ajudaria tampouco. Talvez tenha havido um tempo em que falar faria a diferença, mas não mais. Tully ainda estava falando — claro —, mas Cloud não estava ouvindo. Ela sabia o que Tully queria, do que precisava, mas Cloud não tinha forças ou a clareza para ser o que sua filha precisava. Ela nunca tivera.

— Me esqueça.

— Gostaria de conseguir fazer isso, mas você é minha mãe.

— Você parte meu coração — disse Cloud.

— Você parte o meu também.

— Eu queria... — começou Cloud, e parou. Qual era o sentido desta dor toda?

— O quê?

— Gostaria de ser aquilo de que você precisa, mas não consigo. Você precisa se libertar de mim.

— Não sei como fazer isso. Depois de tudo, você ainda é minha mãe.

— Nunca fui sua mãe. Ambas sabemos disso.

— Sempre vou voltar. Um dia você vai estar preparada para mim.

E lá estava, a totalidade da relação delas reduzida à sua essência. A necessidade sem fim da filha e o fracasso avassalador de Cloud. Elas eram um brinquedo quebrado que não podia ser consertado. Agora Tully estava falando algo sobre sonhos e maternidade e se manter. Tudo isso só fazia com que Cloud se sentisse pior.

Ela fechou os olhos e disse:

— Vá embora.

Ela podia sentir Tully ao seu lado, ouvir a respiração da filha no escuro.

O tempo passou com sons: o rangido do piso sob os pés de Tully, o peso de um suspiro.

Por fim, depois do que pareceram horas de fingimento, o quarto ficou em silêncio.

Cloud abriu o olho bom e viu que Tully dormira na poltrona perto da parede. Ela tirou as cobertas e saiu da cama, fazendo uma careta quando apoiou o peso no tornozelo ruim. Mancando, ela abriu a porta do armário, na esperança de que seus pertences ali estivessem.

Por sorte, ela viu um saco de papel. Suas mãos tremiam enquanto ela o abria. Dentro estavam as roupas que ela usava — calça velha, camiseta cinza manchada, camisa de flanela, botas gastas e sua calcinha. Nenhum sutiã ou meia.

No fundo, encolhido como uma cobra, o colar.

Bem, não era mais uma colar, e sim apenas alguns pedaços de macarrão seco e uma única conta pendurados num fio.

Cloud o pegou. A coisinha patética em sua mão a fez se lembrar.

Feliz aniversário. Fiz isso pra você...

A Tully de dez anos o estendia na palma das mãos como se fosse um diamante. Aqui, mamãe.

O que teria acontecido se Cloud tivesse dito: É perfeito. Adorei. Amo você, havia tantos anos?

Ela sentiu dor. Guardando o colar, vestiu-se rapidamente e depois olhou de volta para sua filha.

Ela se aproximou e começou a estender a mão, mas, ao ver sua mão pálida, nodosa, cheia de veias e trêmula — a mão de uma bruxa —, Cloud recuou sem tocar na manga da blusa da filha.

Ela não tinha o direito de tocar esta mulher, de ansiar pelo que nunca fora, de se arrepender.

Diante disso, Cloud pensou: Preciso de uma bebida. Ela olhou sua filha uma última vez e abriu a porta. Movendo-se com cuidado pelos corredores, encontrou a saída.

Lá fora, a escuridão de Seattle a engoliu e mais uma vez ela estava invisível.

Enfiando as mãos no bolso, Cloud encontrou os sessenta dólares que pegara de Truc.

Ele acordaria logo, resmungando como um urso, esticando os braços e gritando para ela lhe trazer café.

Ela tentou não pensar e continuou andando. Mancando. O dia nascia. A luz pálida caía entre os prédios ao lado dela. Quando a chuva começou a cair, aos poucos e depois com mais força, Cloud subiu os degraus de um prédio abandonado e se sentou, puxando os pés para perto do corpo.

Sua dor de cabeça estava piorando. Suas mãos tremiam. Mas os bares ainda não estavam abertos, tampouco as lojas de bebidas.

Do outro lado da rua, o alvorecer iluminava o céu por trás de uma fileira de prédios antigos. Lençóis pendiam de janelas quebradas. Ao lado dela, um gato fuçava entre as latas de lixo. A chuva molhava pedaços de papel e lixo nas calçadas.

Quantas vezes na sua vida ela dormira em lugares como este? E esta era a melhor escolha dentre outras que fizera. Homens como Truc. No escuro, eles eram sempre os mesmos, os homens de sua vida. Punhos, bebidas e raiva.

Ela pegou o dinheiro que tirara da carteira de Truc. Talvez, caso se livrasse dele, caso o deixasse cair na chuva, isso fosse uma espécie de reinício.

Mas o que ela pegou foi um cartão de visitas com uma orelha dobrada.

Dra. Karen Moody [nome engraçado para uma psiquiatra[2]]

Occidental Rehab

No fim do cartão estava escrito: Quando você estiver preparado para mudar.

Cloud ouvira estas palavras milhares de vezes na vida de médicos e assistentes sociais. Até mesmo de sua filha. As pessoas fingiam o tempo todo que podiam ajudar, que queriam ajudar.

Cloud nunca confiara neles, nem quando era Dorothy e jovem o suficiente para acreditar na gentileza de estranhos. Ela jogara fora dezenas de cartões e panfletos como este ao longo dos anos.

Mas, desta vez, ao se sentar sobre uma lixeira, com a chuva pingando de seus pés, a palavra mudança a encheu de ansiedade. Ela percebeu toda a sua solidão, como ela era profunda e escura.

Occidental.

A rua ficava a menos de um quarteirão. Aquilo era um sinal?

Houvera uma época em que ela viveria acreditando em sinais. Os anos do est e do unitarismo. Ela se jogava de uma crença em outra. Os saltos de fé sempre eram seguidos por depressões, humores tão ruins e baixos que ela mal podia se levantar. Sempre fracassava, e cada fracasso tirava algo dela.

O único deus para o qual ela nunca se voltara fora para si mesma. Reabilitação. Sobriedade. Um dia de cada vez. Essas palavras e expressões sempre a assustaram. E se ela realmente tentasse melhorar — ser mais sã — e fracassasse? Sobraria algo dela?

Mesmo assim, lá estava ela. Mais de sessenta anos, namorada de um bêbado mau, um saco de pancadas, essencialmente sem-teto, desempregada, alcoólatra e maconheira. Mãe e não mãe.

Aquilo não bastava para salvá-la. Este era o fundo do poço que ela temera durante toda a sua vida. Ela estava mal. A única maneira de se levantar era se alguém a ajudasse.

Ela estava tão cansada daquela vida... Exausta.

E foi isso, a exaustão, o que a fez tomar uma decisão.

Ela se apegou ao corrimão e se levantou, pisando num terreno trêmulo e inseguro. Rangendo os dentes, mancou para a chuva e continuou em frente.

O centro de reabilitação ficava num predinho de telhado plano que remontava aos tempos pioneiros de Seattle. Perto dali, um viaduto preto de concreto vibrava com o tráfego. Ela respirou fundo e segurou a maçaneta.

Estava trancada.

Ela se sentou no degrau de concreto, desta vez desprotegida da chuva. A chuva a abatia, a encharcava. Sua dor de cabeça continuava, assim como a dor no pescoço e no tornozelo, e o tremor piorava, mas ela não saía dali. Ficou lá, toda encolhida, tremendo, até que um som chamou sua atenção. Ela olhou para cima e viu a Dra. Moody diante dos degraus, sob uma bela sombrinha.

— Vou fracassar — disse Cloud, tremendo muito.

A Dra. Moody subiu os degraus e lhe deu a mão.

— Vamos, Dorothy. Vamos para dentro, onde está seco.

— Acho que é de secura que preciso.

A Dra. Moody riu.

— Senso de humor. Isso é bom. Você vai precisar.

Cloud Hart entrou na reabilitação e, quarenta e cinco dias depois, emergiu como Dorothy Hart. Agora ela estava no seu quartinho, pegando seus poucos pertences: o colar de macarrão e contas e uma fotografia ligeiramente fora de foco com a data Outubro de 1962 marcada em sua margem branca.

Eles pareciam nada quando ela entrou neste prédio, aqueles dois itens pessoais. Tranqueiras, ela diria, mas agora entendia o valor deles. Eram seus tesouros; de algum modo, ao longo dos anos de alcoolismo e vício, ela se apegara a eles. A Dra. Moody dizia que fora a Verdadeira Dorothy que os mantivera; a parte frágil e saudável dela que, de algum modo, fora forte o suficiente para sobreviver a tudo.

Dorothy não sabia disso. Sinceramente, ela sempre tentava não pensar na menina que fora um dia, e em seus dias naquela casa de loteamento em Rancho Flamingo. Não era fácil olhar para a sobriedade. Na verdade, era difícil. Agora ela vivia sua vida em momentos, em inspirações e expirações, em bebidas não consumidas e maconha não fumada. Todo segundo limpo era um triunfo.

Tudo começara como sempre foram seus atos desesperados — uma sensação de alívio. Nada era mais gostoso no início do que relegar o controle. Ela caminhava pelo centro e seguia as regras. Cloud não tinha enxaguantes bucais ou produtos com álcool ou drogas para entregar, nenhuma mochila para ser averiguada. Ela deixou que a Dra. Moody a levasse para o quartinho com janelas com barras que davam para um trecho de concreto do viaduto.

Quando os tremores começaram e as dores de cabeça se intensificaram, Cloud percebera a verdade sobre a decisão que ela tomara pela primeira vez, e ficara louca. Não havia outra palavra para isso, embora ela odiasse a palavra. Sua loucura fora épica — lançando cadeiras, batendo com a cabeça contra a parede até sangrar, gritando para que a deixassem sair.

Ela passara 72 das horas mais compridas da sua vida na ala de desintoxicação. Lembrava-se disso em imagens que se sobrepunham até que nada fizesse sentido. Lembrava-se do cheiro do seu suor ou da bile subindo-lhe à garganta. Ela xingara e chutara e vomitara e gritara. Havia implorado por liberdade, por tomar só uma dose.

E então, milagrosamente, Cloud dormira e acordara noutro mundo. Desorientada, ainda tremendo, fraca como um filhotinho.

Seca.

Era difícil descrever como ela estava vulnerável, frágil e delicada. Ela se sentava nas sessões de terapia de grupo como um fantasma dia após dia, ouvindo seus colegas começarem discursos lamuriosos com: Oi, sou Barb e sou uma alcoólatra. Oi, Barb!

Era como um terrível momento no acampamento Kumbaya, e ela se desfocava, roía suas unhas até sangrarem, batendo o pé, pensando como queria uma bebida e que ela não pertencia àquele lugar — aquelas pessoas tinham tido overdoses e mataram pessoas em acidentes de carro e foram demitidas de seus empregos. Elas eram bêbadas com “b” maiúsculo; ela era apenas uma perdedora que bebia demais.

Lembrava-se de quando tudo mudara para ela. Fora no grupo matinal, umas três semanas depois da desintoxicação. Ela olhava para a unha roída e sangrando do polegar, ouvindo — remotamente — uma menina gorda chamada Gilda reclamando da ocasião em que fora estuprada numa festa de fraternidade, chorando, fungando, e a Dra. Moody olhava diretamente para Cloud.

— Como isso faz você se sentir, Cloud?

Ela começara a rir diante da ideia de que a história significava alguma coisa para ela, e daí sua memória flutuara, emergindo no fundo de seus pensamentos como um cadáver.

Está escuro. Ele está fumando. A ponta vermelha é horrível de se ver. Cheiro a fumaça. Por que você não é boazinha? Você me faz parecer mau. Não sou mau.

Sei que não.

— Cloud?

— Eu era a Dorothy — fora o que ela respondera, apesar de nada daquilo fazer sentido.

— Você pode ser ela novamente — dissera a Dra. Moody.

— Eu quero ser — dissera ela, percebendo imediatamente como aquilo era verdade, havia quanto tempo era verdade e como ela estava com medo de que não fosse capaz.

— Sei que é assustador — disse a Dra. Moody. As pessoas no grupo menearam a cabeça e concordaram com murmúrios.

— Sou Dorothy — dissera ela lentamente — e sou viciada...

Aquele fora o início, talvez o único verdadeiro. A partir de então, a recuperação fora seu vício; a honestidade, sua droga. Ela falava e falava e falava, falava a qualquer um que quisesse ouvir sobre seus blecautes e erros e os homens com quem estivera — eram todos o mesmo, ela via agora, uma fila de homens bêbados com algo a provar. Esse padrão não a surpreendeu quando ela pensou no assunto, o que ela fez incansavelmente. Mas, mesmo com todo o seu novo zelo pela sobriedade, ela nunca falou sobre sua filha ou sua juventude. Algumas dores são difíceis de compartilhar com estranhos.

— Você está preparada para nos deixar?

Ela ouviu a voz gentil da Dra. Moody e Dorothy se virou.

A Dra. Moody estava na porta. Com sua calça jeans alta e justa e sua túnica étnica, ela parecia ser exatamente o que era: uma mulher que devotava todo o seu tempo e energia a ajudar os outros. Dorothy queria ter dinheiro para dar a esta mulher que a salvara.

— Acho que estou pronta, mas não sinto que estou pronta. E se...?

— Um dia de cada vez — disse a Dra. Moody.

Era um clichê, como as palavras da Oração da Serenidade. Ambos a faziam revirar os olhos. Mas agora ela sabia que algumas coisas podiam ser clichê e verdade ao mesmo tempo.

— Um dia de cada vez — disse Dorothy, meneando a cabeça. Ela podia fazer daquele jeito, esperava. Dividir sua vida em pedaços menores.

A Dra. Moody lhe entregou um pequeno envelope.

— Isto é para você.

Dorothy o recebeu, olhando para a imagem de tomates-cereja.

— Sementes de tomate. Para seu jardim orgânico.

Dorothy levantou os olhos. Nas últimas semanas, ela tivera um “plano”. Ela estudara, imaginara, sonhara. Mas como poderia fazer? Será que ela poderia mesmo voltar para a velha casa de seus pais na Firefly Lane e tirar as ervas daninhas, preparar a terra e plantar coisas?

Ela nunca soubera cuidar de nada em sua vida. Nunca tivera sucesso, ponto final. Em nada. O pânico começou a borbulhar lentamente dentro dela.

— Vou na sexta-feira — disse a Dra. Moody. — Levo meus meninos. Vamos ajudar você a começar a limpar.

— Mesmo?

— Você consegue, Dorothy. Você é mais forte do que imagina.

Não, não sou. Mas que escolha tenho? Ela não podia voltar de novo.

— Você vai entrar em contato com a sua filha?

Dorothy suspirou. Várias lembranças surgiram. Todas as vezes “Cloud” abandonara Tully. Ela podia mudar seu nome para Dorothy, mas Cloud ainda era parte dela, e ela partira o coração da sua filha mais vezes do que era capaz de contar.

— Não ainda.

— Quando?

— Quando eu acreditar.

— No quê?

Dorothy olhou para sua conselheira e viu tristeza em seus olhos negros. Era compreensível. A Dra. Moody queria curar Dorothy; este era seu objetivo. Na busca por essa cura, a médica fizera Dorothy passar pela desintoxicação, conversara com ela ao longo do pior período da síndrome de abstinência e a convencera a tomar remédios para suas alterações de humor. Tudo ajudou.

Mas não era uma cura do passado. Não havia pílula capaz de oferecer redenção. Tudo o que Dorothy podia fazer era mudar e se arrepender e esperar que algum dia ela tivesse força suficiente para enfrentar sua filha e pedir desculpas.

— Em mim — disse ela finalmente, e a Dra. Moody fez que sim. Era uma boa resposta. Algo sobre o que conversavam na terapia de grupo o tempo todo. Acreditar em si mesmo era importante — e difícil para as pessoas que se aperfeiçoaram na arte de decepcionar seus amigos e familiares. Para falar a verdade, Dorothy disse as palavras e tentou soar sincera, mas não acreditava na possibilidade de redenção. Não para ela.

Um dia de cada vez, um respirar de cada vez, um momento de cada vez. Era assim que Dorothy aprendera a viver sua nova vida. Ela não perdera sua ansiedade pelas drogas, pelo álcool e pelo esquecimento que eles ofereciam; não se esquecera das coisas ruins que fizera ou dos corações que partira. Na verdade, Dorothy fazia questão de se lembrar deles. Ela se tornara uma militante da própria mudança. Ela suportava a dor e nadava em águas gélidas de clareza.

Ela começou lentamente, e fez as coisas em ordem. Dorothy escreveu para o administrador financeiro da filha e disse que estava se mudando para a velha casa dos pais na Firefly Lane. A casa estava vazia havia anos e ela não via motivo para não usá-la. Assim que enviou a carta, sentiu a ameaça da esperança. Todos os dias, ao verificar a carta do correio, pensava: Ela vai responder. Mas, em janeiro de 2006, o primeiro ano de sua vida sóbria, ela ouviu um simples: Vou lhe encaminhar a permissão para assumir a casa da Firefly Lane do administrador e nem uma palavra da filha.

Claro.

Seus dias naquele primeiro inverno foram uma mistura confusa de desespero, disciplina e cansaço. Ela se esforçou mais do que se jamais esforçara antes. Dorothy acordava ao nascer do sol e trabalhava na terra até a noite, quando caía na cama tão cansada que às vezes se esquecia até de escovar os dentes. Ela tomava o café da manhã (uma banana e um bolinho orgânico) e almoçava (um sanduíche de peru e uma maçã) no campo todos os dias, sentada de pernas cruzadas sobre a terra preta que cheirava a possibilidades fecundas. À noite, ia de bicicleta até a cidade e frequentava reuniões. Oi, meu nome é Dorothy e eu sou viciada. Oi, Dorothy!

Por mais estranho que soasse, a rotina a consolava e confortava. Os estranhos que se reuniam depois dos encontros, beber café ruim em copos de isopor e comer biscoitos, fazer amigos. Ela conheceu Myron lá e, por meio de Myron, Peggy e, por meio de Peggy, Edgar e Owen e a comunidade de cultivo orgânico.

Em junho de 2006, ela havia limpado mil metros quadrados e arado uma pequena porção da terra. Comprou coelhos e construiu um abrigo e aprendeu a misturar seus dejetos com folhas secas e seus restos de comida numa compostagem. Dorothy parou de roer as unhas e trocou sua obsessão por maconha e álcool pela obsessão por frutas e legumes orgânicos. Ela ignorava boa parte do mundo, pensando que uma vida sem escolhas modernas se encaixaria melhor na sua recém-descoberta autodisciplina.

Dorothy estava ajoelhada na terra, arando-a, quando ouviu alguém chamar.

Ela deixou de lado o rastelo e se levantou, tirando a terra de suas luvas grandes demais.

Uma mulher menor e mais velha estava cruzando a rua, aproximando-se do portão. Ela estava usando calça jeans escura e um moletom no qual se lia MELHOR VOVÓ DO MUNDO. Seus cabelos pretos tinham uma mecha mais clara e emolduravam um rosto redondo com um queixo pronunciado.

— Ah — disse a mulher, parando de repente. — É você.

Dorothy tirou as luvas e as colocou no cinto de utilidades. Com o suor pingando da testa, foi até a cerca. Estava prestes a dizer Eu não conheço você quando se lembrou.

Estou deitada no sofá, largada, um bocado de maconha sobre a minha barriga. Tento sorrir para a boa alma que entrou em casa, mas tudo o que consigo fazer é rir e xingar. Tallulah está vermelha de vergonha.

— Você é a mãe da garota prendada — disse Dorothy. — Do outro lado da rua.

— Margie Mularkey. E, sim, para o horror da minha filha, eu a enviei aqui com uma tigela quente por volta de 1974. Você estava... indisposta.

— Chapada. E provavelmente bêbada.

Margie fez que sim.

— Vim ver o que estava acontecendo aqui. Não sabia que você tinha se mudado. A casa estava vazia havia algum tempo. Devia ter notado, mas... Tivemos um ano difícil. Estive muito tempo fora.

— Posso olhar o lugar para você. Pegar a correspondência. — Assim que fez a proposta, Dorothy se sentiu exposta. Uma bela mulher como Margie Mularkey, que recebia bem os vizinhos e provavelmente tricotava, jamais aceitaria a ajuda de alguém como Dorothy.

— Seria ótimo. Agradeço. Há uma caixa de leite na varanda. Você pode colocar a correspondência lá.

— Posso fazer isso.

Margie desviou o olhar. Ela estava olhando para a estrada vazia, encarando diretamente o sol por meio de seus grandes óculos escuros.

— As meninas costumavam fugir à noite e andar de bicicleta por esta rua. Elas achavam que eu não sabia. — Ao dizer isso, suas pernas perderam a força e Margie caiu no chão.

Dorothy abriu o portão e foi ajudar a mulher a se levantar. Segurando-a pelo cotovelo, ela levou a mulher até uma área no jardim e até uma velha cadeira suja.

— Eu... uh... não limpei os móveis externos ainda.

Margie riu.

— É junho. O verão acabou de começar. — Ela colocou as mãos nos bolsos e pegou um maço de cigarros.

Dorothy se sentou de pernas cruzadas no pátio, observando uma lágrima rolar pelo rosto da mulher e cair em sua mão marcada por veias.

— Não se importe comigo — disse Margie. — Tenho guardado isso há muito tempo.

— Ah.

— A Katie, minha filha — disse Margie —, tem câncer.

Dorothy não fazia ideia do que as pessoas diziam em momentos como este. Sinto muito parecia patético e óbvio, mas o que mais havia para dizer?

— Obrigada — disse Margie para o silêncio.

Dorothy inspirou um pouco da fumaça mentolada.

— Por quê?

— Por não dizer “ela vai ficar bem” ou “sinto muito”.

— Coisas ruins acontecem — disse Dorothy.

— É. Eu não sabia disso.

— Como está a Tully?

— Ela está com a Katie agora. — Margie levantou os olhos. — Acho que ela gostaria se você fosse vê-la. Ela acabou de parar com o programa de TV.

Dorothy tentou sorrir, mas não conseguiu.

— Não estou preparada. Eu a magoei demais. Não quero fazer isso novamente.

— Sim — disse Margie. — Ela sempre foi mais frágil do que parecia.

Elas ficaram sentadas sem dizer nada. Por fim, Margie se levantou.

— Bom. Tenho que voltar.

Dorothy fez que sim. Ela se ergueu lentamente e acompanhou Margie até a Firefly Lane. Quando Margie começou a cruzar a rua, Dorothy disse:

— Margie?

Margie se virou.

— Sim?

— Aposto como ela sabe que você a ama. Sua Katie. Significa muito.

Margie fez que sim e limpou os olhos.

— Obrigada, Cloud.

— Sou Dorothy agora.

Margie sorriu cansadamente.

— Dorothy, espero que você não se importe com o que vou dizer: o tempo passa. Confie em mim. Meninas fortes de repente adoecem. Não espere demais para ver sua filha.