Introdução

A rainha Jinga, que, durante o século XVII , governou o Ndongo, um reino da África Central localizado onde hoje é uma parte do norte de Angola, chegou ao poder graças à bravura militar, à manipulação habilidosa da religião, à diplomacia bem-sucedida e à notável compreensão da política. Apesar de seus feitos extraordinários e de seu reinado de décadas, comparável ao de Elizabeth I da Inglaterra, ela foi difamada por contemporâneos europeus e escritores posteriores, que a acusaram de ser uma selvagem incivilizada que encarnava o pior do gênero feminino. [1] Na época, os europeus a retrataram como uma canibal sanguinária que não hesitava em assassinar bebês e trucidar seus inimigos. Acusaram-na também de desafiar as normas do gênero ao vestir-se como homem, liderar exércitos, ostentar haréns de homens e mulheres e rejeitar as virtudes femininas de criar e cuidar dos filhos. Muito mais tarde, escritores do século XVIII e XIX criaram relatos fictícios sobre Jinga, retratando-a como uma mulher degenerada, movida por desejos sexuais heterodoxos, que se regozijava com rituais bárbaros.

A vida de Jinga continuou a ser vista principalmente como uma curiosidade. Mas o registro histórico revela uma coisa diferente: foi essa mesma Jinga que conquistou o reino de Matamba e o governou em conjunto com o remanescente do poderoso reino de Ndongo por três décadas; desafiou treze governadores portugueses de Angola entre 1622 e 1663, mantendo seu reino independente diante de ataques implacáveis; e fez importantes alianças políticas não só com várias entidades políticas vizinhas, mas também com a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais. Foi a mesma Jinga, cuja diplomacia religiosa lhe possibilitou entrar em contato direto com o papa, que a aceitou como governante cristã, e estabelecer o cristianismo em seu reino.


Album Maciet 157-58. Bibliothèque des Arts Décoratifs, Paris, França. Fotografia: Suzanne Nagy.

Representação europeia tradicional da rainha Jinga.

A história de Jinga é importante sob muitos aspectos diferentes. De um lado, é um capítulo significativo da história da resistência ao colonialismo. Ao longo dos quatrocentos anos de ocupação portuguesa de Angola (1575-1975), a resistência nunca cessou. O lugar de Jinga como a mais bem-sucedida entre os governantes africanos na resistência aos portugueses influenciou não apenas o colonialismo português em Angola, mas também a política de libertação e independência na Angola moderna. A vida e a história de Jinga também tiveram implicações para as Américas. Os africanos capturados pelos portugueses ou comprados na região onde Jinga vivia e governava foram enviados como escravos para o Brasil e a América espanhola e foram os primeiros africanos a chegar às colônias norte-americanas. Esses escravos trouxeram a história e a memória de Jinga com eles.

Mas a vida e as ações de Jinga transcendem a história africana e a história da escravidão na África e nas Américas. Sua história revela temas maiores de gênero, poder, religião, liderança, colonialismo e resistência. Contam-se às centenas os livros sobre rainhas europeias famosas e, às vezes, famigeradas, como Elizabeth I da Inglaterra, que governou duas décadas antes de Jinga, e Catarina, a Grande, da Rússia, quase um século depois. Apesar dos muitos paralelos que Jinga compartilha com essas mulheres, não existia até agora nenhuma biografia séria sobre ela em inglês ou em qualquer outro idioma. Este livro revela a vida completa e complexa de Jinga, com foco nas questões de poder, liderança, gênero e espiritualidade.

Montando o cenário

Antes de entrarmos em contato com Jinga, precisamos conhecer o mundo em que ela nasceu em 1582 — em seus aspectos geográficos, políticos e sociais. Antes do reinado de Jinga, o Congo, que fazia fronteira ao norte com Ndongo, era o único reino da África Central conhecido pelos europeus. É para lá que vamos primeiro, a fim de entender a região que Jinga transformaria de um modo que continua a nos informar não só sobre a história de Angola, mas sobre o lugar das mulheres na política na África e no mundo.

Os primeiros europeus chegaram à África Central em 1483, quase exatamente um século antes do nascimento de Jinga. Na época, o maior reino da região era o Congo, que ocupava em torno de 85 mil quilômetros quadrados e se estendia por quase quinhentos quilômetros das regiões de Soyo e Dande, na costa do Atlântico, até o rio Kwango. As fronteiras do norte do Congo incluíam terras logo ao norte do rio Congo, bem como algumas áreas na região sul da atual República Democrática do Congo. A fronteira meridional do reino abrangia as terras entre os rios Bengo e Dande. Uma colônia de cidadãos do Congo também vivia mais ao sul, na ilha de Luanda, onde eles recolhiam os jimbos, pequenas conchas que constituíam a principal moeda do reino. Apesar de seu tamanho, o reino era escassamente povoado, com cerca de 350 mil habitantes, principalmente porque sua zona ocidental árida e plana era inóspita. A maior parte da população se concentrava ao redor da capital, Mbanza Congo (situada hoje no norte de Angola e também conhecida como São Salvador), bem como nas províncias do sudoeste.

O alcance geográfico do reino não foi o único fator que fez dele a potência dominante na região. A organização política do Congo também o distinguia de seus vizinhos menores. Tratava-se de uma entidade política centralizada e governada por um rei escolhido entre várias linhagens reais elegíveis. Uma vez eleito, o rei detinha poder absoluto. Ele selecionava parentes próximos de sua própria linhagem para serem seus cortesãos e chefes de províncias. Mbanza Congo, onde se situava a corte do rei, era o centro administrativo e militar do reino. Era dali que o rei enviava seus cortesãos ou seu exército permanente para transmitir suas ordens ou fazer cumprir sua vontade nas províncias. Os governantes provinciais, apesar das forças militares próprias consideráveis, não tinham segurança no cargo e, durante os primeiros anos do reino, os reis concentravam força militar suficiente na capital para poder remover do cargo os representantes provinciais pretensiosos e confiscar seus bens.

Os primeiros governantes do reino escolheram Mbanza Congo como capital por razões estratégicas e defensivas. Situada em um planalto acima de um rio, a cidade estava bem protegida e tinha um bom abastecimento de água, bem como terras férteis para cultivo no vale do rio. As trilhas que ligavam Mbanza Congo às capitais de cada província estavam sempre cheias de representantes de províncias, assessores, exércitos, religiosos e pessoas comuns que viajavam à capital para participar de cerimônias religiosas e políticas e pagar impostos. Essas mesmas trilhas proporcionavam acesso a exércitos invasores.

Os reinos de Congo e Ndongo (c . 1550).

O Congo aumentou seu poder graças ao relacionamento que seus reis cultivaram com os portugueses, que chegaram pela primeira vez à província litorânea de Soyo em 1483. Em 1491, o rei Nzinga a Nkuwu e toda a liderança do reino se converteram ao catolicismo e puseram em prática medidas para transformar o reino no principal poder católico na região. O governante do Congo que mais atuou para realizar essa transformação foi o rei Afonso (que reinou de 1509 a 1543), filho de Nzinga a Nkuwu. Durante seu longo reinado, ele empreendeu a alteração física da cidade e supervisionou uma revolução religiosa e cultural que transformou o Congo num Estado cristão. Afonso enviou os filhos da elite para serem educados em Portugal e outros países católicos e acolheu missões culturais portuguesas que trouxeram artesãos qualificados para trabalhar ao lado dos congoleses com o intuito de construir as igrejas de pedra que dominavam a capital do reino. Afonso também mandou erguer escolas nas quais crianças da elite estudavam latim e português.

Os planos de Afonso de transformar o reino em um Estado cristão foram além da devoção pessoal, da instrução religiosa e da construção de igrejas e escolas. Uma verdadeira transformação cultural teve lugar durante o seu longo mandato. No Congo de Afonso, os membros da elite adotaram títulos como duque, marquês e conde, e, em pouco tempo, os processos legais portugueses se misturaram aos anteriores para reger os procedimentos judiciais. Além disso, o calendário religioso da Igreja católica governava a vida do reino, e os filhos de famílias tanto de elite como comuns aprendiam o catecismo com professores locais, recebiam nomes cristãos e congoleses e eram batizados. Havia sempre uma escassez de padres no reino, mas as cruzes eram onipresentes nas aldeias e as visitas dos padres serviam para lembrar aos moradores sua condição de cristãos.

A transformação cultural do país e o caráter cristão do reino eram evidentes para os visitantes europeus muito depois da morte de Afonso. Os europeus que conheceram o embaixador congolês Antônio Manuel, marquês de Ne Vundu, durante suas viagens a Portugal, Espanha e ao Vaticano, de 1604 a 1608, ficaram atônitos com sua sofisticação. Notaram que, embora tivesse sido educado apenas no Congo, ele sabia ler e corresponder-se em latim e português e falava essas línguas, além do quicongo nativo.

Mas a engenharia cultural de Afonso teve um custo trágico. Ele precisou envolver-se tanto em guerras de conquista como em tráfico de escravos para financiar e sustentar o projeto (assim como os reis que sucederam a ele). Durante seu reinado, aumentou exponencialmente o número de pessoas que eram capturadas e trazidas para o reino como escravas ou que eram condenadas à escravidão como punição por seus crimes. O comércio de escravos levou à expansão das guerras para sua captura, bem como ao aumento do tráfico e da posse de escravos pela elite do reino e seus parceiros portugueses. Os reis do Congo permitiam que os portugueses se dedicassem ao tráfico de escravos no reino, enviavam escravos de presente aos reis portugueses e às vezes pediam assistência militar portuguesa para enfrentar ameaças do interior do reino ou para auxiliar nas guerras expansionistas e de captura de escravos que faziam contra Estados vizinhos, entre eles Ndongo.

Foi durante o governo de Afonso que surgiram no reino três grupos sociais distintos com diferentes perspectivas de vida. No topo da sociedade, estavam o rei e os membros das várias linhagens reais, identificados pelo título português de fidalgos . Os membros desse grupo residiam na capital e constituíam o conselho eleitoral que escolhia o rei e ocupava cargos na corte. O grupo seguinte era formado por aldeões livres, chamados de gente . Abaixo deles estavam os escravos , cativos de guerras cujos donos pertenciam principalmente à elite, mas também eram encontrados nas casas dos cidadãos comuns.

Os reis que sucederam a ele seguiram o padrão que Afonso havia estabelecido. Por exemplo, Álvaro I (que reinou de 1568 a 1587), o rei que governava o Congo quando Jinga nasceu, expandiu o alcance diplomático e político do Congo. Ele cultivou relações não só com as cortes portuguesa e espanhola, mas também com o Vaticano.

O Congo tinha ainda conexões com outros Estados da África Central, como Matamba, um reino que ocuparia um lugar proeminente na vida de Jinga. Matamba localizava-se a leste do Congo e de Ndongo e se estendia para o leste até o rio Kwango, na região hoje conhecida como Baixa de Cassanje. Muito pouco se sabe sobre a história inicial desse reino. Uma primeira referência a um lugar chamado “Matamba” aparece numa carta escrita por Afonso ao rei de Portugal em 1530. Nela, Afonso dizia que estava enviando dois lingotes de prata (manillas ) que recebera de um nobre que vivia em uma de suas terras chamada “Matamba”. [2] A partir de então, nas cartas que enviavam para Portugal, os reis do Congo sempre incluíam Matamba como uma das áreas que governavam. Outros registros, no entanto, indicam que Matamba se declarou independente em algum momento entre 1530 e 1561. Em 1561, a “grande rainha” que governava Matamba enviou um de seus filhos ao Congo, onde ele conheceu um padre português ao qual disse que a rainha simpatizava com o cristianismo e queria se comunicar com Portugal e tornar-se amiga dos portugueses. [3] Não sabemos no que deu essa proposta, mas, como veremos, Matamba tornou-se mais tarde uma base importante para Jinga.

O reino de Ndongo

Na época da chegada dos portugueses ao Congo, Ndongo era o segundo maior Estado da África Central, com uma área de cerca de um terço do Congo. O reino abrangia o que são hoje as províncias de Cuanza Norte, Cuanza Sul, Malange e Bengo da Angola moderna. (Angola tem seu nome derivado da palavra ngola , título do governante de Ndongo.) Seu limite oeste era o oceano Atlântico, e estendia-se da fronteira com o Congo, na foz do rio Bengo, para o sul, até a baía onde o poderoso rio Kwanza desemboca no oceano. O limite norte de Ndongo se dirigia do Atlântico para o leste através da região dos Dembos e das terras que fazem fronteira com as províncias meridionais do Congo, como Mbwila, até chegar ao rio Lucala. O limite sul seguia o rio Kwanza por cerca de 270 quilômetros, incluindo terras dos dois lados do rio, até atingir uma série de grandes formações rochosas em Pungo Ndongo, localizadas a poucos quilômetros ao norte do rio. O limite oriental de Ndongo começava a alguns quilômetros adiante de Pungo Ndongo e incluía terras mais para o sul, até o rio Kutato. O limite leste continuava na direção nordeste, seguindo o rio Lucala até a fronteira com o Congo.

Ao contrário do Congo, Ndongo tinha alguns rios que eram navegáveis por muitos quilômetros, mas em muitos também havia quedas-d’água traiçoeiras e redemoinhos. O rio Kwanza, a principal via fluvial que levava ao centro do reino, era navegável por pequenas embarcações por cerca de duzentos quilômetros, mas num ponto, a cachoeira de Cambambe, com vinte metros de altura, a navegação se tornava impossível. Uma cachoeira ainda maior a montante impunha outra barreira. O rio Lucala, o outro curso de água importante do reino e tributário do Kwanza, embora navegável em algumas partes, tinha cachoeiras ainda mais espetaculares que também impediam seu pleno uso para o transporte fluvial. A mais impressionante dessas cachoeiras caía de uma altura espetacular de noventa metros numa área repleta de árvores altas e mata densa. Se as cachoeiras eram perigosas para a navegação, a pouca profundidade dos rios em outras partes também impunha limites às viagens fluviais. Partes do Kwanza corriam através de pântanos que continham crocodilos, hipopótamos e outros perigos. Essas condições significavam que até mesmo o transporte terrestre perto das margens dos rios era traiçoeiro, e os viajantes eram forçados a desmontar canoas maiores e contratar ou requisitar homens para transportar os barcos e o material militar para áreas povoadas longe do rio, muitas vezes a quilômetros de distância.

Mas os rios não eram tão desafiadores para a população local mbundu [doravante ambundo] quanto seriam para os portugueses, que chegaram à região em 1575. Os nativos usavam canoas fáceis de navegar pelas corredeiras ou nas águas rasas. A parte alta do rio Kwanza também continha um conjunto de grandes ilhas, as ilhas Kindonga, que eram econômica e estrategicamente significativas. Elas ofereciam excelentes áreas de pesca, e algumas eram grandes o suficiente para sustentar aldeias e agricultura. Umas poucas eram de uso exclusivo do governante: numa ficava a capital do reino, enquanto outra era reservada para os túmulos dos governantes de Ndongo e de membros das linhagens dominantes. As ilhas também possuíam uma localização estratégica: eram suficientemente próximas para que soldados — ou espiões — pudessem mover-se facilmente entre elas, e, durante combates, soldados postados nas colinas baixas poderiam lançar flechas contra exércitos inimigos que se aproximassem em canoas enquanto permaneciam protegidos. Além disso, uma vez que as ilhas não estavam longe da margem do rio, o governante que temesse ser atacado na capital poderia facilmente deslocar a corte para as ilhas e continuar a comandar a guerra, enviar missões diplomáticas e administrar outros assuntos do Estado, como Jinga faria em várias ocasiões. Por fim, se todo o resto falhasse, líderes e soldados poderiam escapar usando canoas para se deslocar de ilha em ilha sem serem detectados até chegarem a um lugar seguro, no lado oposto do rio.

Assim como encontraram maneiras de usar os rios, os ambundos conseguiram explorar os recursos da terra e conectar todas as partes do país. Esse povo adaptara-se a um clima que variava do semiárido na costa, passando por um clima frio e até gelado na região do planalto, a uma condição úmida e tropical nas áreas dos vales e savanas. Nas áreas costeiras baixas ao sul de Luanda, incluindo partes de Kissama, o clima era semiárido e inóspito. No alto Kwanza, porém, o majestoso e imponente embondeiro, o baobá, era o sustento da população local, fornecendo água, comida, abrigo e remédios. A região de Kissama era famosa por grandes placas de sal-gema, que eram extraídas e distribuídas para todas as partes do país.

O clima e os recursos das regiões do planalto no interior de Ndongo diferiam drasticamente dos das áreas costeiras secas. Os muitos rios que desciam das altas montanhas para prados e vales proporcionavam água abundante para campos férteis, onde a população cultivava vários produtos tropicais e pastagens para criar animais domésticos, como gado, cabras, porcos e aves. As terras altas ofereciam uma proteção natural, e foi ali que o ngola (o rei de Ndongo) situou sua capital. Dali, os governantes e seus funcionários supervisionavam os escravos e outras populações dependentes que também faziam parte da força militar e forneciam os vários tipos de tributos e trabalhos agrícolas necessários para sua manutenção.

As viagens entre os centros populacionais podiam ser traiçoeiras. As regiões não cultivadas estavam cobertas por florestas espessas e abrigavam uma grande variedade de animais selvagens, como grandes serpentes capazes de engolir um homem adulto, elefantes, rinocerontes, leões, leopardos e hienas. As terras altas também apresentavam enormes afloramentos rochosos, precipícios íngremes e ravinas que representavam desafios até para os viajantes mais experientes que iam de uma comunidade a outra.

A distribuição de recursos em Ndongo influía em sua estrutura política. O reino dividia-se em dezessete províncias que incorporavam 736 divisões territoriais chamadas murindas . Em algumas províncias, em especial as quatro que ficavam entre a costa e a capital em Kabasa, a densidade populacional era maior e, portanto, mais murinda . O ngola tinha controle administrativo e fiscal mais direto sobre essas quatro províncias. [4]

Kabasa, a cerca de 250 quilômetros da costa, era a residência oficial do ngola , que vivia ali com suas esposas, filhos e parentes ligados por descendência e casamento. A primeira delegação portuguesa que visitou a capital, em 1560, relatou que o rei da época tinha mais de setenta filhos e até quatrocentas esposas e concubinas. A esposa principal dirigia a família e fazia com que os escravos, servos e pessoas livres que viviam dentro dos muros da casa levassem as mercadorias que produziam à feira diária e comprassem os suprimentos necessários para os membros da família. [5] A competição na corte entre diferentes facções era intensa, porque parentes de várias linhagens diferentes relacionadas a ngolas anteriores também moravam na capital ou nas comunidades que a rodeavam.

Vários funcionários que ajudavam o rei na corte também moravam na capital. Os mais importantes eram o tendala , o principal assessor do ngola , que ficava no comando quando o ngola estava longe da capital, e o chefe dos militares. Além deles, os principais homens de Ndongo, chamados de macotas — talvez relacionados aos chefes das dezessete províncias —, também moravam na capital ou nela mantinham residências oficiais. Desse grupo faziam parte o mwene lumbo , que administrava a casa do ngola , o mwene kudya , encarregado de tributos e impostos, e o mwene misete , que mantinha os relicários dos governantes passados. O mwene misete era o mais importante administrador de rituais em Ndongo e supervisionava um grande número de sacerdotes que desempenhavam as funções rituais essenciais que os ambundos acreditavam ser necessárias para a proteção do ngola e do próprio Ndongo. [6]

Além do poder político que tinha em Kabasa e nas capitais provinciais menores, o ngola controlava algumas terras estatais (murindas ) e seus residentes. As pessoas que viviam nessas terras podiam participar de três categorias legais diferentes: pessoas livres, servos (kijikos ) e escravos (mubikas ). As pessoas livres eram a maioria da população e formavam o campesinato. A situação dos servos era semelhante à de seus homólogos na Europa: trabalhavam nas terras do ngola, e ele não podia expulsá-los delas ou vendê-las, já que a terra era propriedade da linhagem real. Os escravos eram prisioneiros de guerra ou estrangeiros, e o ngola tinha o direito de vender ou retirar escravos das murindas na capital e na vizinhança porque as possuía diretamente.

Fora da capital, os macotas tinham autoridade política, econômica e espiritual semelhante à do ngola . Desse modo, mantinham o próprio sistema de hierarquia em seus territórios e alguns deles eram bastante autônomos. Ocupavam sua posição de chefes das murindas não por terem sido enviados da capital como representantes do ngola na região, mas por alegarem ser descendentes das linhagens mais antigas que ocupavam a área. Os sobas constituíam outro grupo de funcionários importantes. Os macotas eram os eleitores e conselheiros, enquanto os sobas realizavam as tarefas cotidianas de direção das aldeias. Da mesma forma que o povo aceitava o direito dos macotas de mandar por descenderem de macotas anteriores, também era esperado que a pessoa que governasse como ngola fosse um descendente legítimo de ngolas anteriores. [7]

O ngola exercia uma grande autoridade militar, política e fiscal sobre as províncias e as murindas . Por exemplo, tinha seu exército baseado em Kabasa, o qual era ampliado quando havia convocação de forças para participar das frequentes campanhas de Ndongo contra seus vizinhos. O ngola comandava as próprias forças em combate, enquanto os capitães experientes que ele havia selecionado conduziam outros batalhões. O exército contava com grandes contingentes de mulheres, que forneciam alimentos, carregavam suprimentos e realizavam os rituais considerados essenciais para seu sucesso. As mulheres ligadas à casa do ngola (sua mãe ou esposas e seus filhos) não participavam da batalha; um general de confiança protegia o local secreto onde se alojavam. Os sacerdotes do lugar também realizavam rituais, como colocar crânios e outros itens sagrados na paisagem, para intimidar os inimigos. Mas as principais ferramentas militares dos soldados de Ndongo eram lanças, flechas envenenadas e machados de guerra, pelos quais eram conhecidos. Os soldados, tanto homens como mulheres, usavam os machados em combates corpo a corpo. Desde a primeira infância, eles praticavam uma dança rítmica que aumentava a velocidade e a agilidade, e possibilitava que se esquivassem das flechas venenosas de seus inimigos. Tal sucesso militar se devia também à familiaridade com as defesas naturais proporcionadas pelas árvores altas e a mata densa da região, que ofereciam excelente cobertura para ataques surpresa. [8]

Além da força militar, o ngola exercia autoridade legal em Ndongo por meio de agentes que viajavam por todo o reino para garantir que a população obedecesse às leis. Ele impunha regulamentos rigorosos, principalmente nas transações comerciais que se davam nas grandes feiras provinciais. Os agentes tinham especial atenção para as transações relativas à venda de cativos (escravos), a fim de se certificar de que a taxa de troca das várias coisas que as pessoas usavam como dinheiro (como tecidos, conchas e sal) fosse regulada e permanecesse estável. O ngola também enviava funcionários judiciais para garantir que os sobas e os macotas cumprissem a obrigação de enviar-lhe tributos periódicos em espécie e em pessoas, e prover alimentação e hospedagem aos seus agentes. Além disso, agentes militares faziam visitas regulares às províncias para garantir o cumprimento da obrigação dos governantes locais de enviar soldados para o exército do ngola . Os exércitos do ngola agiam em todo o reino, fosse com o propósito de fazer cumprir essas políticas ou de invadir territórios vizinhos e trazer novas terras e povos para o controle de Ndongo.

O sistema econômico que sustentava a sociedade ndongo baseava-se num extenso sistema de feiras locais, regionais e centrais. Além das feiras que cada murinda realizava habitualmente, as feiras provinciais e centrais traziam produtos naturais e manufaturados de todo o país para um único lugar. Entre as mercadorias à venda estava uma grande variedade de frutas tropicais, produtos agrícolas e animais domésticos, machados e lanças feitos por ferreiros locais e peixes e carnes de animais domésticos ou selvagens. Essas feiras também exibiam uma ampla seleção de aves, gatos-almiscarados e outros animais pequenos, bem como madeiras raras e uma miríade de tecidos feitos de cascas de árvores ou algodão da produção local. Nos dias de feira, era possível comprar as placas altamente valorizadas de sal-gema, importadas de Kissama.

A posse e o comércio de escravos eram partes vitais da economia de Ndongo. Os escravos eram obtidos durante as excursões militares bem-sucedidas. Também podiam ser oriundos dos aldeões livres condenados por juízes por infrações religiosas ou desobediência civil, como traição e adultério, especialmente se este último incluísse algumas das numerosas esposas do ngola . Nesses casos de adultério, todos os membros da linhagem daquela geração em particular podiam ser condenados à escravidão. Porém, o meio mais comum de obter escravos era fazer cativos em guerras contra governantes provinciais ou reinos vizinhos. Os cativos estavam disponíveis para compra nas feiras provinciais e centrais. Esse comércio era rigorosamente regulamentado e a compra de escravos era uma operação demorada. Nas feiras de Kabasa, os agentes do ngola supervisionavam cada transação para garantir que a venda fosse legítima, numa tentativa de evitar o tráfico sem escrúpulos de kijikos . A lei de Ndongo considerava os kijikos servos, indivíduos ligados à terra, e não escravos. [9] Além do comércio de escravos, o ngola obtinha recursos através de um sistema de tributos pagos pelas províncias e pelas murindas . Os agentes do ngola , com suas escoltas armadas, conseguiam arrecadá-los não só porque tinham a força militar necessária, mas também porque as pessoas consideravam o ngola seu líder supremo, apesar de seus próprios líderes locais também deterem um poder considerável.

Embora uma parte da legitimidade do ngola se baseasse no fato de ele ser membro de uma linhagem dominante, bem como em sua capacidade de levar as forças militares à vitória e de acumular recursos econômicos, grande parcela dela dependia da posição espiritual que ocupava na sociedade ambundo. A tradição de Ndongo atribuía a fundação do Estado a um ferreiro habilidoso do Congo, que se acreditava ter o poder de falar com um deus chamado Zampungu ou Zumbu. [10] O povo respeitava os reis e as autoridades religiosas porque acreditava que possuíam poderes especiais. Esses homens e mulheres poderosos tinham influência tanto mundana como sobrenatural, sendo assim capazes de controlar a chuva e a fertilidade do solo, de exercer autoridade sobre a vida e a morte e de possuir conhecimentos oniscientes. [11] Semelhante à ideia medieval do direito divino dos reis, depois que uma pessoa se tornava o ngola , o povo considerava que seu corpo era investido de poderes espirituais especiais sobre o ambiente físico. Os reis estavam imbuídos também de um poder muito mais formidável: possuíam a autoridade divina para sacrificar pessoas. [12] Acreditava-se também que os membros próximos da família do ngola , bem como as crianças que tinham nascimento incomum ou que sobreviviam a doenças devastadoras, possuíam dons espirituais.

A autoridade religiosa oficial na corte de Kabasa era uma figura muito importante. Um dos jesuítas portugueses que visitaram a corte do rei de Ndongo em 1560 relembrou que o ngola enviara seu feiticeiro-mor, acompanhado de muitas pessoas, para saudar os visitantes e cuidar do bem-estar deles quando a embaixada se aproximou da corte. [13] Esse homem recusou-se repetidamente a ouvir as tentativas do padre Gouveia de falar sobre o cristianismo. Foi inflexível, insistindo que “Deus era seu Senhor” e que ele era o melhor curandeiro de todo o Ndongo. [14] Os portugueses também relataram que o ngola era venerado e que o rei fundador havia instituído novos rituais, inclusive a criação de um grupo religioso chamado xingulas , que podiam ser possuídos pelos espíritos e eram supostamente capazes de criar chuva. [15]

Para os ambundos de meados do século XVI , o ambiente natural às vezes perigoso de Ndongo era uma força espiritual terrível que precisava ser apaziguada. O povo realizava rituais (às vezes envolvendo sacrifício humano) no topo e no sopé das montanhas e transmitia lendas para explicar as origens de alguns dos picos mais impressionantes. Os sacerdotes precisavam executar os rituais religiosos apropriados antes de entrar nos espaços desabitados do reino.

Esses sacerdotes, chamados ngangas (doravante gangas), eram essenciais para a vida espiritual do ngola . Davam conselhos e levavam a cabo missões nas províncias e regiões vizinhas. Seu principal dever era consultar os antepassados reais e executar rituais com os ossos dos antepassados, que, ao lado de outros objetos rituais, eram cuidadosamente guardados em um relicário, ou misete . Os gangas eram curandeiros, adivinhos e restauravam a ordem em épocas de crises e desastres naturais. Seu papel público mais importante era servir de emissários do ngola em tempos de guerra. Os ngolas acreditavam no poder espiritual dos gangas e os consultavam antes de qualquer decisão importante, fosse política, militar ou de outro tipo.

O papel do ngola de juiz principal também fazia parte de seu poder espiritual. De todas as partes de Ndongo, os querelantes afluíam a Kabasa a fim de apresentar seus casos ao ngola e a seus conselheiros. Essas audiências públicas eram realizadas num espaço aberto na primeira das dez áreas circulares cercadas pelas quais todos os visitantes tinham de passar antes de chegar aos aposentos pessoais do rei. Ali, o ngola e seus conselheiros legais deviam repetir as tradições para que os precedentes pudessem ser sustentados, todos os aspectos do caso discutidos e a justiça ser finalmente feita. [16] Em 1560, duas décadas antes do nascimento de Jinga, pela primeira vez um forasteiro fez uma descrição do ngola em seu papel de principal legislador. Conforme esse relato, em todo o Ndongo, o povo temia o rei (não sem razão: ele acabara de ordenar a execução de onze gangas que não conseguiram fazer chover durante uma seca), mas, não obstante, preferia se dirigir à capital quando buscava justiça porque “ele faz grande justiça a eles, e não há dia em que não ordene justiça”. [17]

As mulheres na vida política de Ndongo

De 1518 até 1582, quando Jinga nasceu, os quatro ngolas que governaram Ndongo foram todos homens. Em 1624, quando se tornou rainha aos 42 anos, Jinga foi a primeira mulher a governar o país. As mulheres, no entanto, desempenhavam um papel poderoso na corte, e Jinga teria ouvido muitas histórias sobre elas enquanto crescia na corte de seu pai, Mbande a Ngola. As mulheres da elite costumavam frequentar o círculo íntimo e estar a par do mundo dos homens. (A própria Jinga alegava ter participado de reuniões de conselheiros de seu pai quando era apenas uma criança.) Uma mulher que se destacava nessas histórias era Hohoria Ngola, uma das duas filhas do primeiro fundador de Ndongo. Zundu, a outra filha, matou o filho de Hohoria e depois usou de embustes para assegurar o trono. Zundu foi assassinada por instigação de Hohoria, que buscava vingar a morte do filho. A história cativou os missionários europeus décadas depois, quando a ouviram dos velhos contemporâneos de Jinga. Ela testemunhava um sistema de governo ambundo ainda em construção que desde o início incluía mulheres, mas também dava suporte a uma ideologia política que tolerava a usurpação e o assassinato, o fratricídio, o infanticídio, a expansão militarista e alianças políticas complicadas. [18]

As mulheres ocupavam um lugar importante nas tradições fundadoras de Ndongo e figuram com destaque nos relatos escritos de testemunhas oculares europeias que tiveram contato com governantes de Ndongo a partir dos anos 1560. É significativo que Hohoria fosse nomeada esposa legal de Ngola Kiluanje kia Samba, o primeiro rei da história de Ndongo, e que tenha sido seu filho o herdeiro do reino após a morte do pai. Embora Ngola Kiluanje kia Samba tivesse várias concubinas cujos filhos fundaram as inúmeras linhagens reais que competiam com os descendentes de Hohoria pela liderança de Ndongo, essas mulheres permaneceram anônimas. [19]

Em anos posteriores, à medida que o reino se expandia e Ndongo enfrentava incursões militares portuguesas, as mulheres da elite frequentemente estavam a par de segredos de Estado. Isso fica evidente numa história a respeito de uma filha de Ngola Kiluanje kia Ndambi que soube que o pai planejava matar os membros da primeira missão portuguesa a Ndongo. Essa informação era muito mais do que mera intriga política para a jovem: consta que o chefe da missão, Paulo Dias de Novais, era seu amante. Embora possa não ser verdadeira, essa história revela muito sobre o papel das mulheres na época. A jovem teria contado a intenção de seu pai para Dias de Novais, instigando-o a sair com seu séquito do país, para poupá-los da ira do pai e da morte certa. [20] A filha do ngola jamais teria conseguido organizar a fuga do amante se não tivesse acesso irrestrito ao que acontecia na corte de seu pai.

Outros relatos também detalham o papel essencial, embora mais tradicional, que as mulheres desempenhavam na vida religiosa de Ndongo. Em 1585, Ngola Kilombo kia Kasenda teria feito uma pausa, antes de lançar um ataque através do rio Lucala, para mandar que “sua mãe e muitos praticantes religiosos homens e mulheres” executassem rituais que dariam proteção ao seu exército. [21] Além dos papéis religiosos, as mulheres ligadas a homens de alta posição social costumavam acompanhar o marido aos principais eventos públicos, como foi o caso registrado naquele mesmo ano de um senhor de Ndongo que levou consigo “mais de quinhentas mulheres, todas com ricos toucados ( ferraguelos ) de Portugal”, quando se aventurou a sair em público. [22]

Apesar do que possa parecer aos nossos olhos modernos, a presença de um grande número de mulheres ligadas a um único homem não significava que elas ocupassem uma posição subordinada. Um dos primeiros relatos de testemunhas oculares sobre a posição das mulheres comuns na sociedade de Ndongo observou que a mulher mantinha sua independência mesmo quando vivia numa casa com centenas de outras mulheres. Tanto a esposa principal como as concubinas podiam deixar o arranjo sempre que desejassem. A mulher que deixava o marido não era condenada ao ostracismo ou mesmo repreendida, mas era recebida de volta à linhagem de seu pai, na qual era livre para permanecer até escolher outro marido ou parceiro. [23]

Curiosamente, essa mulher poderia ter passado toda a infância na casa do futuro marido. No começo, o relacionamento assemelhava-se ao de companheiros de brincadeira ou de irmãos. Pelo costume de Ndongo, as famílias podiam mandar uma filha para a casa do rei ou de outro homem proeminente “quando ainda estava sendo carregada nos braços de sua mãe”, para ser criada ao lado do filho escolhido. Quando chegava à idade de casar, o filho montava a própria casa, selecionando uma de suas companheiras de infância preferidas para ser sua esposa principal. As posições das mulheres eram mutáveis, e uma esposa principal podia ser substituída por capricho de seu marido, fosse por alguém do grupo de concubinas já existente na casa, fosse de outra família nobre — a todo momento, meninas eram enviadas para a casa do rei. [24] A mãe de Jinga, Kengela ka Nkombe, foi enviada de presente ao homem que seria o pai de Jinga, Mbande a Ngola, rei de Ndongo. Ele já era casado quando fez de Kengela sua principal concubina, uma posição logo abaixo da de esposa principal. Com ela, teria Jinga e outros três filhos. [25] Saberemos muito mais sobre todas essas crianças. Mas antes vamos tratar dos predecessores de Jinga e dos acontecimentos que ocorreram nas décadas anteriores ao seu nascimento.