Antes mesmo da morte de seu irmão, Ngola Mbande, na primavera de 1624, Jinga já havia se posicionado para assumir a liderança de Ndongo e governá-lo de uma forma que lembrasse o país de sua juventude. Seu avô e seu pai — Kasenda e Mbande a Ngola, respectivamente — haviam controlado um vasto território que abrangia uma grande parte do norte da atual Angola, conquistando respeito e inculcando medo tanto em seus inimigos como em seus adeptos durante a maior parte de seus reinados. Seus exércitos eram poderosos e enormes. Os dois reis punham centenas de milhares de soldados em campo, mas também buscaram relações diplomáticas com os portugueses e vizinhos aliados quando as circunstâncias o exigiam. Sua riqueza pessoal vinha, em parte, dos tributos pagos à corte por numerosos chefes subordinados de Ndongo, bem como da renda obtida mediante o trabalho de centenas de milhares de servos e escravos que cultivavam as terras estatais. Kasenda e Mbande a Ngola complementavam essa renda com impostos que impunham às feiras locais, nas quais seus agentes operavam negociando escravos e outras mercadorias. Além disso, eles controlavam o acesso às rotas para as feiras nas regiões a leste de Ndongo, fora de suas fronteiras territoriais. Mas, além dessa riqueza, grande parte da posição excepcional de Kasenda e Mbande a Ngola decorria do poder espiritual que o povo de Ndongo acreditava que seus líderes possuíam. O avô e o pai de Jinga mantiveram-se fiéis às tradições dos ambundos, apesar dos avanços que o cristianismo proporcionara a bolsões da população de seu país. Os gangas conduziam rituais em todo o reino, reforçando a posição dos líderes. Não surpreende que Jinga aspirasse a recriar o Ndongo de sua infância. Mas, depois da morte de Ngola Mbande, pareceu que ela sonhava mesmo em superar as conquistas políticas e espirituais de seus predecessores.
Jinga destacou-se desde o dia de seu nascimento, em 1582, de acordo com histórias que ela e outros contaram muitos anos depois a Giovanni Antonio Cavazzi e Antonio Gaeta, seus biógrafos que viveram em sua corte. Rodeado por sacerdotes de Ndongo e outros assistentes, seu parto foi na posição que hoje chamamos de “virado”, com o “rosto virado para cima”, e, além disso, o cordão umbilical estava enrolado firmemente em torno de seu pescoço. Segundo as crenças dos ambundos, um bebê nascido desse modo não natural não teria uma vida normal, e a maneira como uma pessoa nascia previa seu caráter quando adulta. Seu pai, aludindo ao nascimento incomum, chamou a filha de Jinga, da raiz quimbundo kujinga , que significa “torcer, virar, envolver”. [1] Os que estavam presentes em seu nascimento executaram devidamente os muitos rituais relativos ao parto, entre eles lavar o bebê nas soluções de plantas que acreditavam serem necessárias para protegê-la. Conta a história que os espectadores olharam para a recém-nascida com “pasmo e admiração” e, pensando na vida que estava destinada a levar, suspiraram: “mà mà o aoê acê ” (Ó minha mãe!). Cavazzi explicou que essa era a expressão habitual de espanto quando ocorriam acontecimentos notáveis. Ele interpretou seu significado como: “Que exemplo de ferocidade essa criança seria!”. De qualquer modo, mesmo quando Jinga já estava com mais de setenta anos, seu povo ainda cantava muitas canções em sua honra, uma das quais tinha o refrão “Ó minha mãe! Ó! Ó!”. [2]
Em sua infância, contam os cronistas, Jinga mostrava uma habilidade intelectual e física que a distinguia dos outros jovens da corte, inclusive de seu irmão, e construiu uma relação especial com seu pai, que continuou na idade adulta. Parece que essa relação estreita com o pai era incomum para uma menina — ou, aliás, para qualquer filho de um rei. Os governantes corriam o risco de se indispor com parentes da esposa principal ou das concubinas se favorecessem um descendente em particular. Mbande a Ngola, no entanto, desconsiderou a convenção, preferindo abertamente essa filha de sua concubina favorita a seus outros filhos. Acreditava-se que Jinga recebera uma bênção especial, e isso reforçou sua posição na corte. [3] As tradições que chegaram aos nossos dias retratam Jinga como duplamente privilegiada: porque herdou a condição real através da mãe, membro de uma linhagem real — os ambundos são matrilineares —, e porque era também filha de um soberano reinante. [4]
Como foi o início da vida de Jinga na corte? Sabemos que sua infância foi marcada por repetidos ataques de inimigos externos e internos e por perturbações constantes causadas pelas guerras que se travaram em torno de Kabasa. Nenhuma família, real ou não, deixou de ser afetada: todos os homens deveriam prestar serviço militar e todas as mulheres eram obrigadas a contribuir com alimentos e mão de obra para o esforço de guerra. Com efeito, no ano do nascimento de Jinga, seu avô Kasenda enfrentou três sucessivas campanhas devastadoras das forças portuguesas. Em janeiro do ano seguinte, antes do primeiro aniversário de Jinga, seu avô e o resto da corte foram forçados a fugir de Kabasa depois de ouvir os sons das armas portuguesas disparadas na direção da capital.
Sabemos muito sobre as muitas batalhas que ocorreram durante a primeira década de vida de Jinga, mas só podemos imaginar o impacto causado sobre a menina por essa violência incessante e pela enorme perda de vidas. Se esperava ou não provar que merecia atenção especial de seu pai, o fato é que em toda a sua infância, até chegar à idade adulta, Jinga aprendeu com entusiasmo as atividades políticas, militares e os rituais geralmente reservados aos filhos dos governantes. Ela teve permissão para participar dos inúmeros conselhos judiciais, militares e outros presididos por seu pai. Também foi uma estudante dedicada das práticas e costumes da corte, que aprendeu com as veneráveis mulheres mais velhas que foram suas amas e cuidadoras. Seus contemporâneos observaram que, ao longo de toda a sua vida, ela foi meticulosa quanto a respeitar e observar “leis, ritos e costumes de seus antepassados”. [5] Jinga também era conhecida por superar o irmão, Ngola Mbande, e outras crianças da família do ngola na habilidade com o machado de guerra, símbolo real do povo de Ndongo. Ela gabava-se de sua perícia mesmo aos setenta anos, e seu biógrafo Gaeta escreveu que ficou impressionado com o conhecimento sobre a arte da dança militar e sua habilidade ao empunhar o machado. [6] Apesar da experiência militar, a jovem Jinga não negligenciava sua aparência e seu lugar de mulher privilegiada na corte. Uma pintura de Cavazzi, que a representa como uma mulher de quarenta anos em audiência com o governador português João Correia de Sousa, em 1622, fornece a única prova que temos do que poderia ser sua aparência (ver ilustração na página 69 ).
Embora seja provável que o gênero de Jinga tenha influenciado sua decisão de se tornar uma estudante tão diligente do ritual, ela deixou claro por suas ações que seu gênero não a impedia de desfrutar das mesmas liberdades que seus equivalentes do sexo masculino. Além de ter a seu serviço um círculo de atendentes e escravas, manteve um grande número de jovens consortes masculinos (concubinos), e teria tido vários amantes durante sua longa vida. Embora nenhum deles tenha se tornado seu marido principal, levou uma vida sexual ativa quando jovem. Cavazzi registrou que, mesmo septuagenária, Jinga, como outros ambundos que seguiam as tradições, tinha “nove ou dez cortes no braço”, ainda visíveis, feitos por seus muitos amantes. O filho que seu irmão assassinou (ou mandou matar) apenas alguns dias após o nascimento foi provavelmente de um desses amantes. [7]
Alguns membros da corte, no entanto, não achavam apropriado que Jinga agisse como um homem. De acordo com Cavazzi, um funcionário escandalizado com os muitos casos amorosos de Jinga disse a ela que seu comportamento era um desrespeito à corte de seu pai. Ele pagou caro pelo “crime” de dar conselhos não solicitados a alguém superior: Jinga mandou matar o filho do homem franco diante dos olhos dele. Depois também mandou matá-lo. [8] Tal como seus antepassados reais, Jinga seguia a tradição de exigir deferência absoluta dos subordinados.
Já quando jovem adulta, Jinga tornou-se uma líder no esforço de guerra. Ao contrário de outras mulheres que acompanhavam o exército na guerra, Jinga parece ter desempenhado algum papel na mobilização da resistência contra os portugueses. [9] É difícil reconstruir a carreira militar de Jinga anterior a 1624, quando se tornou governante de Ndongo. A primeira referência à sua participação em ações militares vem da história de Angola escrita por Antônio de Cadornega. Em seu relato das campanhas de 1602-3, nas quais os portugueses enviaram tropas para debelar a rebelião de sobas na província de Ilamba, ele observa que os rebeldes responderam “à voz da rainha Jinga sua Senhora, que sempre trabalhava para provocar naqueles a quem havíamos conquistado o ódio, encorajando-os a fazer movimentos e alterações”. [10] Jinga teria dezenove ou vinte anos nessa época e, embora não existam detalhes sobre sua experiência no campo de batalha, ela só poderia ter sido eficaz se ela mesma estivesse ativamente envolvida na luta.
Ela aparece pela segunda vez no registro militar de uma batalha na província de Museke, no qual Cadornega descreve uma confederação de partidários de Jinga juntando-se a ela na luta contra os portugueses depois que eles conseguiram conquistar grande parte de Ndongo. [11] Cadornega também destacou que durante os dois últimos anos do reinado de seu pai, em várias campanhas portuguesas levadas a cabo de Kissama a Massangano, o povo encontrou maneiras de resistir ao poder colonial, “induzido e mandado por essa rainha esperta, nossa inimiga capital que nunca se cansa de procurar modos de nos arruinar”. [12]
É provável que Jinga tenha ganhado sua experiência militar mais ampla durante as guerras desastrosas que seu irmão, Ngola Mbande, travou contra João Mendes de Vasconcelos, filho do governador Luís Mendes de Vasconcelos. Talvez sem fé na capacidade de Ngola Mbande de vencer a guerra contra os portugueses, Jinga deixara a corte para viver em outra parte do reino, provavelmente no leste de Ndongo, perto de Matamba. [13] De seu remoto quartel-general, parece que comandou as próprias tropas contra o jovem Mendes de Vasconcelos em suas campanhas contra o leste de Ndongo e Matamba. Durante muitos meses, escreveu Cadornega, João não conseguiu compartilhar nenhuma novidade sobre seu progresso com seu pai em Luanda porque a “Rainha de Angola Jinga” bloqueara o caminho, impedindo toda a comunicação. Ela também teria lutado ao lado de dois líderes imbangalas em 1620, depois que eles romperam com os portugueses, pois Cadornega nos conta que as tropas de João travaram “grandes batalhas” contra Jinga e os imbangalas. [14]
De acordo com Cavazzi, ela se referiu mais tarde às experiências militares que tivera antes de se tornar rainha. Lembrou que quando estava em Luanda como emissária de seu irmão, apesar de estar “acostumada a batalhas”, ficou deslumbrada e intimidada pela exibição de tiros militares e exercícios disciplinados que o exército português realizou como parte de sua recepção. [15] Depois de retornar a Kabasa, voltou imediatamente ao campo de batalha. Na verdade, cada vez mais decepcionada com o comando da guerra exercido por seu irmão, Jinga começou a consolidar sua própria base de apoio entre os soldados de Ndongo. Foi nessa época que também incentivou alguns sobas a se juntarem a ela. O papel de Jinga na resistência contra os portugueses bem como a popularidade que ganhou entre segmentos importantes da população de Ndongo mostraram-se inestimáveis após a morte de seu irmão. [16]
Além de aprimorar suas habilidades de líder militar, Jinga capitalizou outras oportunidades durante os anos desastrosos do breve reinado de Ngola Mbande para se promover como uma alternativa viável ao irmão. Após o retorno de Jinga a Kabasa, Ngola Mbande recebeu, através de uma carta arrogante do governador Correia de Sousa, ordem para se converter, entre outras exigências. É impossível saber se Jinga se ofendeu com a própria exigência ou com o fato de que o formato da carta violava a etiqueta, mas uma coisa ela deixou claro: se fosse a governante, teria lidado com a situação de forma muito diferente. Ela insultou a masculinidade de seu irmão. Se não conseguia agir nem como rei nem como homem, espicaçou Jinga, ele deveria se retirar para uma pequena fazenda e cultivá-la sozinho. Ela lançou estas e “outras palavras injuriosas, [diante das quais] o rei seu irmão ficou muito emocionado e pensou em maneiras de proteger sua soberania diminuída e com medo da audácia de uma mulher que ainda era sua irmã”. [17]
Quando Ngola Mbande pensou em firmar a paz com os portugueses, concordando com um batismo público, a provocação implacável de sua irmã cobrou seu preço. Acredita-se que a depressão de Ngola Mbande no final de sua vida foi provocada pelas ações de Jinga e pelo constante enfraquecimento de sua autoridade por ela. [18]
O fato de Jinga ser mulher, seu porte majestoso e seu orgulho pelas tradições dos ambundos fundiram-se para torná-la uma força política antes mesmo que assumisse o reino. A chefia da delegação a Luanda em 1622 para negociar com o governador João Correia de Sousa ofereceu-lhe uma oportunidade para isso. Vejamos esse evento agora em mais detalhes, valendo-nos dos relatórios minuciosos deixados por várias testemunhas oculares e cronistas, buscando delinear uma imagem de Jinga no limiar de seu reinado.
A partir do momento em que recebeu a missão de Ngola Mbande, Jinga tratou de deixar claro seu contraste com o irmão. O rei, a seu pedido, providenciou-lhe uma grande comitiva para acompanhá-la na viagem de mais de 1500 quilômetros de Kabasa a Luanda. Os ambundos que viviam nas regiões de Ndongo pelas quais a comitiva de Jinga passou viram ou ouviram falar de uma cena impressionante: o grande número de criados de ambos os sexos que atendia Jinga; escravos homens fortes que carregavam a “Senhora de Angola” em seus ombros; outros escravos que transportavam os numerosos presentes que Jinga insistira em levar para as autoridades que ia encontrar. Seu desempenho perfeito, no entanto, deu-se na sala de negociação com o governador e seus conselheiros, onde sua conduta digna de uma rainha e seus argumentos legais se tornariam lendários.
Enquanto esteve em Luanda, Jinga recusou-se a vestir roupas portuguesas, escolhendo estrategicamente destacar os trajes ambundos. Ela sabia que os portugueses respeitariam a postura e a etiqueta aristocrática e impressionou muito os oficiais quando apareceu majestosa na entrada. Durante o encontro, Jinga usou “numerosos panos”, e seus braços e pernas estavam cobertos por “joias inestimáveis”. Além disso, usou “penas coloridas” nos cabelos. As damas de companhia e as escravas estavam vestidas de maneira semelhante. [19] Mais tarde, quando teve acesso a importações europeias, Jinga expandiu seu guarda-roupa para incluir “cortinas de seda, veludos, brocados” e uma variedade de “aromas e perfumes” que usava para realçar sua aparência até os seus sessenta ou setenta anos. [20] A entrada teatral de Jinga atraiu toda a atenção para ela; embora fosse a enviada oficial de Ngola Mbande, colocou-se no centro do palco das negociações de questões políticas e econômicas de peso que viera discutir com os portugueses.
Mas sua performance não ficou nisso. Jinga sabia que as autoridades portuguesas tinham uma maneira de humilhar os líderes ambundos derrotados: enquanto o governador se sentava “numa cadeira coberta de veludo bordado de ouro”, os criados providenciavam assento para os visitantes ambundos estendendo capas de veludo sobre um tapete no chão. O arranjo forçava os que tinham uma audiência com o governador a exibir sua posição subordinada — condição que os portugueses reservavam aos africanos conquistados. Jinga, no entanto, recusou-se a rebaixar-se. Sem pausa, fez um sinal altivo para uma criada, que imediatamente caiu de quatro e assumiu a posição de uma cadeira humana. Ela permaneceu assim durante as longas horas da discussão. [21] Ao acompanhar Jinga até a saída da sala de negociação, o governador Correia de Sousa lembrou a ela que a jovem criada ainda estava de mãos e joelhos no chão. Jinga desconsiderou a preocupação do governador: não se esquecera dela, explicou, mas a deixara lá deliberadamente. Uma emissária de sua posição, que representava um reino como o dela, jamais deveria sentar-se na mesma cadeira duas vezes; afinal, observou ela, tinha muitas outras iguais. [22] Com efeito, Jinga não só alcançou os fins políticos que seu irmão esperava como também ganhou influência política para si mesma. Quando partiu, o governador prometeu em particular que os portugueses manteriam amizade mútua com a região de Matamba, onde Jinga consolidara seu próprio poder. [23]
Mais tarde, ela expressou apreciação pela graciosa maneira com que os portugueses a trataram durante seu período em Luanda. Relembrou que o banquete que o governador havia oferecido em sua homenagem fora uma ocasião de “festividade e alegria [...] e esplendor”. Ela fez-se acessível a todos os altos funcionários de Luanda que a visitaram e trocou presentes com seus visitantes. Exibiu profundo interesse por sua anfitriã, Ana da Silva, esposa do juiz com quem ela e sua delegação ficaram. Mais tarde, ela confessou que durante aqueles meses em Luanda sentiu “uma felicidade profunda e uma paz extraordinária”. [24]
Jinga usa uma criada como cadeira durante seu encontro com o governador João Correia de Sousa, em 1622. Giovanni Antonio Cavazzi da Montecuccolo, Istorica Descrizione de’ tre’ regni Congo, Matamba et Angola (Bolonha: Giacomo Monti, 1687).
As habilidosas negociações de Jinga garantiram o sucesso da delegação; porém, foi a combinação de sua desafiadora exibição de orgulho pelas tradições e pela cultura de Ndongo, seu uso esperto de seu gênero e sua sagacidade política que lançaram as bases de sua carreira posterior de nacionalista ambundo. Se havia sonhado com o dia em que pudesse vingar a ela e suas irmãs da crueldade de seu irmão, conseguira isso agora no próprio palco público onde o representava. Seu sucesso em Luanda contrastava dramaticamente com a liderança ineficaz de seu irmão. Jinga deixara claro para os portugueses e os ambundos que usaria seu gênero e o poder que acompanhava seu status real para se encarregar da política de Ndongo e conduzir o reino de volta à grandeza que seu irmão até então não conseguira alcançar.
Após retornar de Luanda, Jinga tornou-se essencialmente a líder efetiva de Ndongo. Com efeito, Ngola Mbande já havia indicado que ela deveria reinar após sua morte, deixando “o pouco que tinha” para ela. [25] Mas Jinga precisava consolidar sua posição de governante e, logo após a morte do irmão, fez com que partidários que estavam em sua corte nas ilhas Kindonga, no rio Kwanza, a confirmassem no governo mediante a costumeira eleição. Naquela ocasião, também tomou posse de todos os objetos e símbolos rituais associados à realeza de Ndongo, um ato essencial que validou seu poder. Alguns dos detalhes desse período de transição são imprecisos. Jinga talvez tenha viajado de uma das ilhas, chamada Danji, para a corte em Kabasa. O que se sabe é que em 1625 ela já havia aumentado sua corte em Danji e trazido mais pessoas de Kabasa e outras regiões para ocupar várias das ilhas, algumas das quais fortificou. Como observou um cronista, as ilhas tornaram-se “o orgulho do Kwanza” em muito pouco tempo. [26] Não está claro se Jinga recebeu o título de Rainha de Angola (Ngola Kiluanje) nesse momento — como escreveu Cavazzi, baseado em entrevistas com Jinga e seus cortesãos várias décadas depois — ou se os eleitores apenas se dirigiam a ela como “Senhora de Angola” — como o governador português nomeado havia pouco, Fernão de Sousa, relatou em sua carta oficial de 15 de agosto de 1624, alguns meses depois da nomeação dela. [27] Fosse qual fosse seu título oficial na época, Jinga também pode ter feito com que seu concubino principal, Kia Ituxi, recebesse o título de rei. [28]
Uma vez eleita, devia consolidar seu controle. [29] Liderou seus partidários numa campanha para eliminar todos da corte (inclusive membros de sua própria família) que se recusassem a aceitá-la como governante. Seu irmão havia entregado seu filho, sobrinho dela, de sete anos — o legítimo herdeiro do trono — ao imbangala Kasa para guardá-lo e dar-lhe treinamento militar, e um dos principais objetivos da campanha de Jinga era trazer a criança de volta. Na ocasião, o quilombo (acampamento de guerra) de Kasa ficava na região de Kina, não muito longe da base de Jinga. Em setembro de 1625, Jinga já se livrara de seu concubino e se aproximou de Kasa. Consta que usou suas artimanhas e riquezas para persuadi-lo de que estava muitíssimo apaixonada por ele, exibindo sua afeição publicamente e cobrindo-o de presentes. De início, Kasa resistiu, perturbado pelo fato de que Jinga era mais velha do que ele e convencido de que ela queria se casar com ele apenas para pôr as mãos no menino. Porém, acabou concordando em unir-se a ela e entregar o garoto. [30] O casamento foi realizado em algum lugar que não as ilhas Kindonga, mas nas proximidades de Matamba, onde Jinga tinha um de seus quartéis-generais. Seu sobrinho acompanhou Kasa até o lugar. A cerimônia nem havia terminado e Jinga pegou o menino, matou-o, “jogou seu corpo no rio Kwanza e declarou que ela havia vingado seu filho”. Ela também matou muitos outros parentes que estavam presentes no casamento. Embora suas ações levassem alguns de seus seguidores a fugir, muitos ambundos permaneceram leais. Eles consideravam Jinga a governante legítima de Ndongo, e os atos assassinos dela não mudaram essa opinião. [31]
O próximo passo no plano de Jinga era retornar a Kabasa para reocupar a capital tradicional e reafirmar o domínio real sobre as partes de Ndongo que os portugueses, sob o comando de Luís Mendes de Vasconcelos, haviam tomado no reinado de seu irmão. Durante todo esse período de consolidação de sua posição, Jinga enviou frequentes emissários com cartas ao governador Fernão de Sousa, buscando uma solução para a situação com as autoridades portuguesas. Em agosto de 1624, lembrou-o de um acordo que seus antecessores haviam feito com Ngola Mbande segundo o qual, depois que os portugueses removessem o forte de Ambaca e devolvessem os kijikos e sobas tirados de Ndongo por Mendes de Vasconcelos, ela imediatamente deixaria as ilhas e retornaria a Kabasa. Pelos termos do acordo, ela reabriria as feiras em Kisala, onde elas eram tradicionalmente realizadas; seu próprio povo iria à feira com escravos — condição com a qual ela e seus conselheiros já haviam concordado — e o povo voltaria a cultivar. Jinga também explicou detalhes sobre o papel que os missionários jesuítas desempenhariam em Ndongo. [32]
A versão de Jinga dos acontecimentos era corroborada pela documentação oficial que Fernão de Sousa examinou. Seus antecessores haviam concluído que as guerras empreendidas por Mendes de Vasconcelos contra Ndongo tinham sido injustas; recomendaram que o forte de Ambaca fosse removido e os kijikos devolvidos. Fernão de Sousa aconselhou o rei português que finalizar a resolução com Jinga seria benéfico não só para Angola, mas para os cofres do rei: reabrir as estradas e as feiras, escreveu Sousa, seria “muito importante para o tesouro de sua majestade, bem como para este reino que carece de escravos”. [33]
O próprio governador, em seu primeiro relatório oficial ao rei sobre a situação da colônia, disse que Angola estava em “um estado miserável”. Mas Sousa não tinha a intenção de permitir que Ndongo fosse reconstruído sob a liderança daquela ambiciosa mulher ambundo e, como seus predecessores, recusou-se a honrar os termos do acordo ao pé da letra. Ele exigiu que Jinga devolvesse aos portugueses os kimbares (soldados ambundos que serviam sob o comando de oficiais portugueses) e escravos que haviam fugido para juntar-se a ela antes de poder tomar alguma decisão sobre a devolução dos kijikos . Ele também exigiu que ela se tornasse vassala do rei português “em seu próprio nome e em nome de todos os seus sucessores ao reino de Ndongo” e “pagasse um pequeno tributo”. [34]
No início do outono de 1624, quando Jinga recebeu a resposta de Sousa, a situação econômica e política em torno de Luanda se deteriorara, e pelo menos alguns dos termos do acordo já haviam sido violados. Jinga sabia que o governador enviara funcionários portugueses a Ndongo e regiões vizinhas para reabrir os mercados de escravos e centros de provisão, e que novos funcionários haviam sido nomeados para supervisioná-los, algo que Jinga pretendia fazer ela mesma, com seu próprio povo. Além disso, esses funcionários estavam tentando recrutar sobas para a causa portuguesa, oferecendo-lhes a manutenção de condições pacíficas com eles e estimulando-os a se tornarem aliados. [35] Em julho de 1626, Sousa registrou que, além dos 109 sobas que já eram vassalos do rei português, ele acrescentara mais 83. [36]
Cada um desses sobas participou, de bom grado ou pela força, da cerimônia degradante da vassalagem chamada undamento . Todos os aspectos do undamento eram projetados para tirar a dignidade do soba. Ele deveria aparecer no forte para ficar humildemente diante do governador ou de outra autoridade, que lhe explicava os deveres e obrigações de um vassalo do rei: pagamento de tributo em escravos e provisões não só dele e de seus descendentes, mas também de seus conselheiros. [37] Imediatamente depois, o funcionário português jogava farinha nas mãos e nos ombros do soba. Então, para simbolizar sua nova situação, o soba caía no chão diante do funcionário e concordava com as obrigações que passariam dele para seus descendentes. O nome do soba era inscrito num livro e, no final da cerimônia, ele colocava sua marca ao lado do nome. Do começo ao fim, era um espetáculo humilhante, e muitos sobas que se submeteram à cerimônia nunca entenderam que tinham concordado em pagar tributo para sempre. [38]
Ao pressionar os líderes provinciais para se tornarem vassalos, os portugueses reforçaram involuntariamente o apoio deles a Jinga. Ela sentiu-se incentivada quando um número cada vez maior de ambundos se recusou a prestar tributo e procurou sua liderança. Jinga recusou-se a cumprir a exigência de Fernão de Sousa de pagar ela mesma tributo; não se considerava vassala do rei português. Em dezembro de 1624, um grande número de escravos pertencentes aos portugueses, bem como muitos sobas que haviam se tornado vassalos, já tinham fugido da área portuguesa e aderido às fileiras de Jinga.
Através de seus muitos agentes que viajavam entre as ilhas Kindonga e Luanda, Jinga mantinha-se em contato direto com as autoridades portuguesas e o povo ambundo. Em Luanda, por exemplo, um de seus porta-vozes informou ao governador que ela não poderia devolver escravos fugidos, pois não tinha nenhum deles. Fernão de Sousa também despachou seus representantes com mensagens para Jinga, alertando-a de que se não devolvesse os kimbares e os escravos agora alistados em seu exército, ele “encerraria toda comunicação com ela e [...] ela não deveria enviar mais mensagens”. [39] Para atingir a maior população de ambundos que vivia na área controlada pelos portugueses, Jinga utilizou seus mensageiros (makunges ) para entregar uma mensagem em desacordo com as demandas portuguesas. Nas proximidades de fazendas e fortalezas portuguesas, esses makunges transmitiam as instruções de Jinga para os escravos e kimbares que ainda estavam lutando ao lado dos portugueses, instando-os a mudar de lado e aderir à causa de Jinga. Sua rede era extremamente eficaz e instigou muitas fugas de escravos em grande escala durante os primeiros meses de 1625: aldeias inteiras fugiram de fazendas portuguesas e contingentes de kimbares ambundos evadiram-se de suas fileiras. Em carta datada de 19 de março de 1625, Sousa manifestou sua preocupação com a situação e advertiu o rei de Portugal de que Jinga estava persuadindo cada vez mais ambundos a deixar os portugueses e aderir à causa dela com promessas de que “lhes daria terras onde poderiam cultivar e viver” e que “estariam melhores sendo senhores de sua terra natal do que nossos cativos”. [40] Jinga impressionara o povo ambundo de um modo que Ngola Mbande jamais conseguira; sem dúvida, seu desempenho em Luanda em 1622 estava ainda vivo na memória das pessoas que a tinham visto ou simplesmente ouviram falar a respeito. Os ambundos aderiram em massa à causa de Jinga, que ela havia expressado de forma tão apaixonada em suas negociações de três anos antes. No início do verão de 1625, Jinga já havia recrutado tantos ambundos que nenhum dos emissários de Sousa podia persuadi-la a entregar os escravos que se juntaram a ela. Em vez disso, Jinga simplesmente continuou a alegar que havia sido mal compreendida e que não tinha escravos desse tipo. [41]
A posição de Jinga em 1625 representou um ponto de inflexão na relação entre Ndongo e Portugal. De 1575 a 1624, os portugueses mantiveram vantagem em suas relações com Ndongo. Durante os cinquenta anos decorridos desde que Paulo Dias de Novais começara a conquista de Ndongo, os portugueses, com a ajuda de seus aliados imbangalas, conquistaram ou reivindicaram terras cujos governantes costumavam pagar tributo aos reis de Ndongo. Além disso, os exércitos liderados por portugueses mataram ou cooptaram milhares de autoridades locais e transformaram centenas de milhares de aldeões livres e outros grupos dependentes em simples escravos, forçados a trabalhar em plantações de propriedade portuguesa ou vendidos para o tráfico de escravos do Atlântico. Os portugueses também transformaram dezenas de milhares de súditos de Ndongo em kimbares , soldados que eram forçados a lutar contra o próprio Ndongo.
Jinga parece ter criado as condições para a primeira revolta popular ambundo contra a exploração portuguesa. Ela atraiu para sua causa sobas ambundos que faziam parte da Angola portuguesa, inclusive 109 sobas da província de Hari, que se aliaram aos portugueses durante o governo de Luís Mendes de Vasconcelos, mas que agora se recusavam a enviar tributo a Fernão de Sousa. [42] Muitos ambundos apoiaram Jinga porque queriam ver suas terras lideradas por um governante descendente dos reis antigos, em vez de ser um fantoche dos portugueses. A revolta obteve sucesso. Em 1626, Fernão de Sousa escreveu que não conseguira coletar o tributo com que contava devido “à guerra e à revolta de dona Ana [Jinga] e porque muitos dos sobas de sua majestade passaram para o lado dela”. [43]
Jinga criou assim um clima político e militar entre os ambundos que pela primeira vez ameaçava as bases da força econômica e política portuguesa em Angola. Fernão de Sousa resumiu a situação sucintamente numa carta de agosto de 1625 ao rei, observando que estava particularmente preocupado com os “escravos armados” que aderiam às fileiras de Jinga. Os escravos organizados, temia ele, iriam “fortalecê-la e enfraquecer este reino”, e inspirar os “sobas que são inimigos conquistados pela força” a também aderirem a ela. A revolta, advertiu, arruinaria Luanda porque “aldeias inteiras estavam fugindo”; com efeito, um português já havia perdido “cento e cinquenta escravos” que fugiram juntos. [44]
Diante da persistente resistência de Jinga, Fernão de Sousa e seu gabinete decidiram instalar no trono de Ndongo seu próprio candidato escolhido a dedo, enquanto acusavam Jinga de usurpadora e enviavam tropas para expulsar a ela, seus parentes e partidários de sua base nas ilhas Kindonga. Sousa informou ao rei português que havia escolhido deliberadamente um soba chamado Hari a Kiluanje, que ele sabia que era ao mesmo tempo inimigo de Jinga e seu parente próximo, para colocar no trono. Hari a Kiluanje era descendente de Ngola Kiluanje kia Samba, cuja linhagem havia perdido a sucessão para Kasenda, o avô de Jinga. As duas linhagens nunca resolveram suas diferenças, e durante o reinado de Ngola Mbande os membros da linhagem concorrente tornaram-se aliados dos portugueses. A eleição de Jinga para governar tinha sido uma afronta a seus membros, que acreditavam que eram os legítimos herdeiros do trono, e as tensões ressurgiram, especialmente quando a popularidade e a audácia de Jinga cresceram. Sua afirmação de autoridade sobre os sobas que Luís Mendes de Vasconcelos conquistara era particularmente exasperante. Vários membros dessa linhagem ocupariam um lugar proeminente na guerra contra Jinga. [45] No verão de 1625, Jinga agiu contra um dos parentes mais velhos dessa linhagem rival que, embora sendo seu tio, se recusara a aceitar a eleição dela. Quando ele estava a caminho do forte de Massangano com um grande grupo para batizar seu filho mais velho, Jinga o seguiu, decapitou-o e capturou a maior parte de sua gente. Seu filho conseguiu escapar com alguns seguidores e acabou em Luanda, onde foi criado pelos jesuítas. [46]
O maior rival de Jinga na linhagem rival viria a ser Ngola Hari, um meio-irmão de Hari a Kiluanje. Governantes de terras chamadas Hari, localizadas na região naturalmente fortificada de Pungo Ndongo, tanto Hari a Kiluanje quanto Ngola Hari tinham sob sua autoridade muitos sobas que haviam sido aliados de Mendes de Vasconcelos. [47] Durante o governo de João Correia de Sousa, Hari a Kiluanje se tornou um “vassalo do rei nosso Senhor”, e o governador Fernão de Sousa o considerou herdeiro legítimo do reino de Ndongo. Em algum momento de meados de 1625, os portugueses identificaram Hari a Kiluanje como rei de Ndongo. [48] Fernão de Sousa não contava, no entanto, com o fato de que os conselheiros da corte de Ndongo e a população em geral questionariam o status de Hari a Kiluanje e Ngola Hari, uma vez que ambos descendiam de linhagens que não eram consideradas elegíveis para governar. [49] Talvez devido a seu passado obscuro, Hari a Kiluanje temia Jinga e, em agosto de 1625, deixou Pungo Ndongo e viajou para o forte de Ambaca a fim de pedir guarida militar e uma tropa de soldados. Embora na ocasião estivesse em negociação com Jinga, Fernão de Sousa prometeu honrar os pedidos de Hari a Kiluanje e lançar uma campanha militar contra ela. Essa campanha implicava forçar sobas que apoiavam Jinga a cumprir suas obrigações de enviar tributo em escravos e provisões e permitir que as tropas portuguesas passassem por seus territórios. Ele também queria que esses sobas agissem contra outros que apoiavam Jinga. [50] Em dezembro de 1625, Hari a Kiluanje foi ao forte de Ambaca e ganhou um pequeno contingente militar para levá-lo de volta às suas terras. [51]
Quando descobriu que os portugueses haviam fornecido soldados a Hari a Kiluanje, Jinga ordenou que suas próprias forças atacassem as terras dele. Ao mesmo tempo, enviou emissários a Luanda para defender, junto a Sousa, suas reivindicações contra Hari a Kiluanje. Ela reclamou que ele impedira seu povo de viajar para uma feira de escravos perto das terras dele, confiscando os 48 escravos que ela mandara para lá. O governador desconsiderou a queixa e, em vez disso, enviou 34 soldados portugueses, junto com vários arqueiros africanos e kimbares , para defender Hari a Kiluanje. Quando chegaram, os reforços lutaram contra as forças de Jinga. Apesar de numerosas baixas e de alguns oficiais capturados, as forças de Jinga conseguiram matar três portugueses, inclusive o capitão, e capturaram seis soldados, que levaram para ela. [52] Os membros capturados das forças de Jinga foram enviados para Luanda, onde confessaram que, na verdade, Hari a Kiluanje não tinha tomado os escravos de Jinga, mas que ela travara uma guerra contra ele por ter “ido ao forte sem pedir-lhe permissão e ela considerava isso uma traição e uma rebelião contra ela”. Tendo obtido a informação que desejava deles, o governador pôs os presos num navio negreiro e os mandou para o Brasil a fim de serem vendidos no tráfico de escravos. [53]
No início de 1626, a rebelião que Jinga provocou entre os ambundos ainda estava tão disseminada e bem-sucedida que Fernão de Sousa e outros funcionários portugueses precisavam achar uma maneira de justificar a guerra em grande escala que estavam planejando contra ela. Eles decidiram se concentrar no fato de Jinga ser mulher como motivo para a desqualificação ao trono. Em carta ao rei português de fevereiro de 1626, Sousa declarava que Jinga era uma governante ilegítima e argumentava que Hari a Kiluanje era o governante certo de Ndongo porque “uma mulher nunca governou este reino”. [54] Em outra carta escrita duas semanas depois, Sousa dizia que a guerra de Jinga contra os portugueses ameaçava toda a conquista da potência colonial porque muitos sobas estavam aderindo a Jinga e levando com eles escravos portugueses para fazerem guerra “contra nós”. Hari a Kiluanje era o governante legítimo, alegava Sousa, porque era aliado dos portugueses. [55] Jinga rejeitou de imediato essas alegações e tratou de demonstrar aos portugueses que ser mulher não a impedia de governar Ndongo. Sua recusa em permitir que os portugueses deslegitimassem seu direito de governar estimularia sua resistência.
Depois que soube que Sousa e outros funcionários de Luanda tinham votado para montar uma “guerra justa” contra ela, capturá-la e proclamar Hari a Kiluanje rei de Ndongo, Jinga aprimorou seu estilo de liderança e cercou-se de um grupo de funcionários devotos que a protegia da captura. Os dois anos que passou nas ilhas Kindonga permitiram-lhe organizar a rebelião geral a partir de sua base, comunicar-se diretamente com seus funcionários e com os sobas e participar de operações militares. Se houvesse qualquer risco de ser capturada, as próprias ilhas proporcionavam uma rota para a fuga. Ligadas a Luanda por uma estrada que atravessava Pungo Ndongo, as ilhas também estavam conectadas à região vizinha de Dumbo a Pebo, lar dos parentes maternos de Jinga. [56] Com efeito, Jinga contava com passagem segura em muitas regiões porque muitos sobas se ressentiam da política de Sousa de abrir mercados e instalar supervisores portugueses — uma situação que os integrava à força na rede comercial portuguesa, ameaçando sua renda e seu prestígio, ao mesmo tempo que aumentava o poder dos portugueses. [57]
Apesar de sua crescente popularidade e do sucesso contra os portugueses, Jinga percebeu que ainda não estava preparada para uma guerra total. Ela passou a utilizar então a diplomacia como uma tática de protelação. Seus emissários prometeram a Sousa que a paz retornaria a Ndongo sob a liderança de Jinga, e as feiras de escravos voltariam a estar repletas de cativos. Quando as forças portuguesas chegaram ao forte de Ambaca em fevereiro de 1626, Jinga enviou seu principal emissário a Luanda para explicar sua posição; ele indicou que ela estava pronta para aceitar os missionários e fazer a paz. Apresentou também várias perguntas a Sousa: por que o capitão de Ambaca fornecera assistência militar a Hari a Kiluanje quando sabia que ele era soba e súdito de Jinga? E por que o capitão do forte a tratara tão mal? O emissário deixou claro que estava falando em nome de Jinga ao concluir que viera à cidade para “fazer isso por sua senhora como ela lhe havia mandado”. [58]
A resposta de Fernão de Sousa não foi encorajadora. Ele disse ao enviado que a escolha agora dependia de Jinga: ela poderia “escolher a guerra ou a paz, como quisesse”. [59] Poucos dias depois, Jinga fez uma segunda tentativa de negociação, enviando seu porta-voz privado (moenho ) a Ambaca com uma carta dos soldados portugueses capturados ao comandante militar. A carta dizia que, embora os prisioneiros tivessem sofrido a indignidade de serem levados nus até Jinga, ela ordenara imediatamente que eles fossem vestidos e, a partir daquele momento, foram bem tratados e recebiam bastante comida de três em três dias. Os prisioneiros elogiavam os funcionários de Jinga por seu tratamento humano e justiça, especulando que, se não fosse por essa proteção especial, eles certamente teriam sido assassinados. A carta concluía que haveria um pequeno preço para resgatá-los: o governador teria de entregar a Jinga um de seus sobas que os portugueses haviam capturado e deportar Hari a Kiluanje para as Américas ou Portugal. [60] Depois que o comandante leu a carta, o moenho repetiu verbalmente cada detalhe contido nela; esse tipo de comunicação oral fazia parte da diplomacia de Ndongo. Ele desconsiderou a tentativa de negociação de Jinga, dizendo ao moenho que não tinha tempo para levar a sério Jinga ou sua oferta, e se ela não entregasse os cativos portugueses, “ele mandaria [seus homens] procurá-los”. [61]
O governador Fernão de Sousa reconheceu na iniciativa de Jinga uma tática de protelação, destinada a ganhar tempo com o objetivo de garantir reforços para defender as ilhas ou planejar sua fuga. Naquele momento, o capitão Bento Banha Cardoso, o ex-governador que fizera uma aliança com os imbangalas contra Mbande a Ngola, pai de Jinga, estava a caminho do forte de Massangano para Ambaca, e Sousa o exortou a arrebanhar todos os sobas neutros dos contingentes militares e direcioná-los rapidamente para as ilhas. Cardoso obedeceu e forçou muitos sobas a participar da guerra contra Jinga, decapitando os que resistiram à ordem. [62]
Mas essa agressão não impediu Jinga de continuar seus esforços por uma solução negociada. Em 8 de março de 1626, quando as tropas de Cardoso se preparavam para deixar Cambambe, onde haviam parado a caminho de Ambaca após o agrupamento, os makunges de Jinga chegaram com uma longa carta, escrita alguns dias antes e dirigida ao capitão-geral do forte. Mais uma vez, ela expunha suas razões para atacar Hari a Kiluanje: ele havia atacado seu exército e confiscado os escravos que ela enviara para cumprir seus deveres de vassala, conforme o acordo que seu irmão fizera com os portugueses. Na verdade, afirmava Jinga, ela tinha o direito de atacar Hari a Kiluanje porque ele era seu vassalo e, ademais, as forças portuguesas que ela havia recebido bem em suas terras haviam atacado seu exército. Não obstante a presença do exército português em suas terras a preocupasse, ela o acolhera, uma vez que se considerava cristã e, portanto, vassala do rei da Espanha, a quem “reconheço e obedeço como cristã que sou”. Jinga admitia que suas forças haviam de fato capturado seis soldados portugueses. Ela também indicava que havia recebido notícias de um grande número de tropas portuguesas reunidas em Ambaca, que estavam aguardando ordens para avançar contra ela e libertar os seis prisioneiros, mas advertia que nada seria resolvido pela força e que esse ataque seria danoso tanto para ela como para os prisioneiros. A carta terminava em tom ameaçador: se foram os colonos que convenceram o governador e o capitão a iniciar uma guerra para que pudessem sair da dívida — uma referência ao tráfico de escravos —, eles eram bem-vindos a fazer isso, mas ela mesma não desejava nenhum mal ao capitão Bento Banha Cardoso. [63]
Como faria em várias outras missivas enviadas às autoridades portuguesas nos anos seguintes, Jinga incluía um parágrafo em que solicitava vários itens pessoais, entre eles uma rede, algumas lãs, uma capa para seu cavalo, vinho, cera para velas, musselina, toalhas de mesa de renda, um chapéu de aba larga de veludo azul e cem fólios de papel (para correspondência oficial). [64] Ela assinava seu nome de batismo, Ana, mas pela primeira vez por escrito apresentava-se com o título de “Rainha de Dongo [Ndongo]”. Com essa carta, e com as assinaturas contrapostas, ela demonstrava tanto sua vontade de ser cristã como sua determinação em afirmar sua autoridade em Ndongo como governante legítima.
A resposta de Cardoso de 15 de março descartava a reivindicação de Jinga de ser a governante legítima de Ndongo. O capitão negava cada argumento que Jinga apresentara sobre seus direitos e todas as acusações contra os portugueses, ressaltando sua falha em cumprir as promessas que fizera — em particular seus votos de batismo — como a causa dos conflitos entre ela e os portugueses. Ele sustentava que Jinga se recusara a entregar os kimbares e escravos dos portugueses que haviam fugido para suas fileiras e que tratara mal os portugueses capturados por suas tropas ao não os libertar. Por fim, negava-lhe as coisas que ela havia solicitado. Não poderia entregá-las porque já estava a caminho de levar-lhe a guerra. Cardoso terminava a carta com o terrível aviso: “Deus a proteja, se Ele puder”. [65]
Nos esforços de Jinga em encontrar uma solução pacífica para seus conflitos com os portugueses durante seus dois primeiros anos de reinado, ela muitas vezes ressaltou sua vontade de viver como cristã, de dar a seus funcionários permissão para serem batizados e permitir que missionários trabalhassem em Ndongo. Embora Fernão de Sousa e outros funcionários nunca tenham levado essas declarações a sério, Jinga parece ter considerado a espiritualidade uma parte vital do seu estilo de liderança e elemento essencial de toda a sua vida. Ela expandiu o papel das crenças e costumes indígenas além do que haviam desempanhado durante os reinados do avô e do pai, e acrescentou a eles a dedicação ao cristianismo.
O primeiro vislumbre que temos da ênfase de Jinga na espiritualidade veio depois de suas negociações bem-sucedidas em nome de Ngola Mbande em Luanda, em 1622, quando concordou em prolongar sua estada por meses para que pudesse ser oficialmente preparada para o batismo. Tendo em vista seu compromisso com as tradições de Ndongo, por que Jinga concordou em ser batizada? Muitos chefes provinciais e sobas de Ndongo, entre eles membros de sua própria linhagem, haviam passado por elaborados batismos públicos, e Jinga estava bem ciente de que a religião era um componente central da política portuguesa. Embora Ngola Mbande tivesse permitido que Jinga decidisse por si mesma em relação ao batismo, é provável que a concordância dela em fazê-lo teve mais a ver com o papel que ela imaginava que a espiritualidade desempenharia em seus esforços para assumir a liderança de Ndongo do que com a defesa da agenda política do irmão. Jinga também pode ter calculado que, ao submeter-se ao batismo, ganharia o respeito dos portugueses e conquistaria o apoio do grande número de cristãos ambundos que eram escravos na cidade e nas fazendas, ou tinham fugido das guerras e se tornado refugiados. [66]
Talvez isso explique por que Jinga se jogou com tanto entusiasmo nos preparativos para a cerimônia, ouvindo atentamente o governador explicar os benefícios da conversão e o que ela ganharia ao abandonar os ritos e rituais ambundos. Ela obedeceu prontamente quando a Igreja designou um padre experiente na língua quimbundo para ensinar-lhe o catecismo; e no dia aprazado, na presença da “nobreza e do povo”, ela se submeteu solenemente à cerimônia na igreja oficial que os jesuítas construíram em Luanda. O próprio governador João Correia de Sousa foi seu padrinho, e Ana da Silva, sua anfitriã, a madrinha. Jinga recebeu o nome batismal de Ana de Sousa, em homenagem a eles. [67] Funcionários do governo e da Igreja encheram-na de presentes, entre eles ícones religiosos que sugeriam a esperança de que o batismo de Jinga e seu retorno a Ndongo acabariam por levar à conversão de Ngola Mbande e de outros membros da elite governante de Ndongo que até então impediam as tentativas dos jesuítas de levar o cristianismo à região.
Apesar de seu batismo e sua aceitação dos presentes da Igreja, Jinga nunca rejeitou as próprias crenças religiosas, nem os rituais tão essenciais para a elite governante de Ndongo e para os ambundos comuns. Com efeito, durante sua permanência em Luanda, Jinga nunca tirou as várias pulseiras de ferro e relíquias que adornavam seus braços e pernas. [68] Mas ela também abraçou a nova religião, pelo menos na superfície. Na primeira etapa de sua jornada de regresso a Kabasa, cercada pela comitiva oficial fornecida pelo governador, Jinga exibiu orgulhosamente os ícones cristãos que havia ganhado, assegurando seus acompanhantes de sua profunda devoção. O pequeno destacamento de portugueses seguiu com Jinga somente até os arredores de Luanda, assim como a postura dela. Logo depois que os portugueses partiram, Jinga tirou os símbolos cristãos do corpo e os guardou em seus relicários. De acordo com um relato posterior do missionário Cavazzi, ela realizou várias “cerimônias pagãs” para proteger sua viagem de volta a Kabasa e “pôs suas relíquias satânicas usadas por aqueles etíopes [africanos] e vendidas por seus sacerdotes”. [69] De 1622 a 1624, enquanto manobrava para apresentar-se como uma alternativa viável a Ngola Mbande, Jinga usou seu conhecimento privilegiado do cristianismo para tentar aproximar-se de funcionários portugueses e também para frustrar a tentativa de seu irmão de usar a conversão cristã a fim de promover seus próprios objetivos políticos. Com efeito, décadas mais tarde Jinga admitiria a Cavazzi que, em diversas ocasiões, durante aqueles dois anos, aconselhara deliberadamente Ngola Mbande contra o batismo. Jinga talvez temesse que o batismo dele pusesse em risco a posição especial que ela conquistara duramente. [70]
Enquanto aconselhava Ngola Mbande a evitar o batismo, Jinga também promovia as crenças espirituais dos ambundos, assumindo o comando das cerimônias públicas em que os sacerdotes locais invocavam os antepassados, queimavam incenso, realizavam sacrifícios humanos e participavam de danças e outros rituais. [71] A tentativa de Jinga de demonstrar sua familiaridade com as tradições ambundas começou para valer com a morte de seu irmão, em 1624, quando ela organizou para ele nas ilhas Kindonga um complexo funeral que incluía o sacrifício ritual de vários criados, que o acompanhariam à terra dos antepassados. Jinga também preservou alguns dos restos do irmão; removeu respeitosamente vários ossos do cadáver de Mbande, arrumou-os em pratos de prata feitos à mão, cobriu-os com um rico tapete e guardou-os num relicário portátil (misete ), semelhante aos que os sacerdotes de Ndongo carregavam. Com esse ato, Jinga fez da misete o ponto focal de veneração que viria a ser associado a rituais envolvendo sacrifício humano, vasos iluminados, incenso e coisas assim. [72] Os missionários europeus ficariam escandalizados ao saber que Jinga praticava sacrifícios humanos e guardava para consulta os ossos de seus antepassados. Embora os missionários condenassem as duas práticas, a veneração das relíquias de seu irmão não era diferente da tradição católica romana medieval de guardar os restos de santos em mosteiros, conventos e igrejas.
As cartas de Jinga ao governador Fernão de Sousa e a outros funcionários portugueses durante os dois anos de negociações que precederam sua ascensão ao trono proporcionam uma antevisão significativa do papel que a religião desempenharia durante o seu reinado. Na primeira carta ao governador, logo depois que ele assumiu o cargo em Luanda, em junho de 1624, Jinga diz que queria que os missionários jesuítas fossem a suas terras para batizar as pessoas que desejavam se tornar cristãs. [73] Ao fazer isso, Jinga apresentava uma concepção da presença cristã em Ndongo, na qual ela e seus funcionários — e não os missionários — supervisionariam a propagação do cristianismo. Ciente de que membros de sua própria linhagem, aliados aos portugueses, estavam buscando o batismo, Jinga não desejava impedir que os sacerdotes chegassem a Ndongo, mas queria que fosse ela mesma quem determinasse o modo como esses sacerdotes se aproximariam da população.
Fernão de Sousa, no entanto, ignorou o pedido de Jinga; os portugueses tinham os próprios planos para estabelecer uma presença religiosa formal em Ndongo. Com efeito, em junho de 1624, a correspondência da Igreja havia listado Ndongo como um dos locais onde reside o “rei de Angola” e que precisava ter pelo menos uma residência que pudesse acomodar seis missionários. [74]
Não sabemos se Jinga estava ciente desses planos ou não, mas certamente lembrava-se do que acontecera em Ambaca durante o reinado de seu irmão. O governador na época, Luís Mendes de Vasconcelos, encarregara uma fraternidade portuguesa de supervisionar a construção de uma igreja chamada Nossa Senhora da Assunção em Ambaca, a pouca distância de Kabasa, a capital de Ndongo. Para financiar a construção, ele forçara vários sobas da região, inclusive um parente de Jinga chamado Ngola Kanini, a enviar seus pagamentos de tributos à fraternidade, em vez de mandá-los para Kabasa. [75] Na qualidade de nova governante de Ndongo, Jinga queria que iniciativas desse tipo ficassem sob seu controle. Ela sabia que os padres portugueses que acompanhavam o exército possuíam plena autoridade sobre a vida religiosa da população conquistada. Mas a situação era complicada porque Jinga não considerava Ndongo uma área conquistada. Fernão de Sousa deixou clara a preocupação de Jinga numa carta que enviou ao rei da Espanha em dezembro de 1624: “Dona Ana Senhora de Angola está me pressionando muito para manter a promessa que o governador João Correia de Sousa lhe fez de mudar de lugar a fortaleza de Ambaca, e [...] logo ela se mudará para o continente, e trará sacerdotes da Companhia [jesuítas] e construirão igrejas”. [76]
Todas as cartas que Jinga enviou a Fernão de Sousa e Bento Banha Cardoso entre 1625 e agosto de 1626 faziam referência ao lugar que ela estava abrindo em Ndongo para o cristianismo e os missionários, e o mesmo acontecia com as mensagens verbais que seus funcionários transmitiam. [77] De fato, durante aquele período, os sobas contra os quais ela realizou ataques eram muitas vezes parentes dela que tinham sido batizados e que se tornaram (ou pretendiam se tornar) aliados dos portugueses sem sua permissão.
É impossível saber se Jinga teria colaborado com os missionários (como fez vários anos depois) se Fernão de Sousa tivesse respondido positivamente aos pedidos de uma reunião com autoridades da Igreja. O fato é que a conversão cristã era parte essencial da política portuguesa em Angola, e governadores e outros funcionários, inclusive os jesuítas, viam a propagação do cristianismo católico sob o controle português como elemento central de seu projeto colonial. Assim, desde o início, todo governador português em Angola teve dúvidas sobre a sinceridade de Jinga, fosse em seus próprios escritos, fosse quando seus mensageiros levavam relatos de que ela estava pronta para voltar à igreja. O próprio Fernão de Sousa tratou disso em várias cartas ao rei. Em uma extensa missiva escrita em agosto de 1625, ele adverte o rei da Espanha de que é cético em relação ao pedido de missionários feito por Jinga e diz que acredita que ela está agindo mais “por medo do que por devoção”. E propõe uma salvaguarda: se o rei enviasse dois missionários ao forte de Ambaca, deveria exigir antes que Jinga lhes desse alguns escravos, e só então os missionários iriam a Ndongo. Se eles fossem a Ndongo antes que Jinga entregasse os escravos, escreve Sousa, isso “seria razão para fazer guerra contra ela”, e os missionários deveriam ser retidos. [78] As autoridades de Lisboa, ao receber muitos relatos igualmente cheios de dúvidas, também continuavam desconfiadas de Jinga. [79]
Os membros da hierarquia religiosa em Luanda não eram diferentes de seus antecessores, que haviam apoiado totalmente a conquista portuguesa das terras de Ndongo e a escravização da população durante os reinados do avô e do pai de Jinga. Quando o governador e outros funcionários apresentaram a proposta de guerra contra Jinga, as autoridades religiosas foram plenamente de acordo. Escrevendo em fevereiro de 1626, o governador Fernão de Sousa observou que os teólogos do Colégio dos Jesuítas em Luanda concordavam que a guerra era “necessária e justa”. Como fizeram em campanhas anteriores, os jesuítas arcaram com o custo de dois padres para acompanhar o exército. [80] A religião e a força militar continuavam inextricavelmente ligadas.
O exército que Fernão de Sousa reuniu para combater Jinga e suas tropas consistia da mistura usual de soldados portugueses e arqueiros ambundos e kimbares . As tropas deixaram Luanda em 7 de fevereiro de 1626, sob a liderança do ex-governador Bento Banha Cardoso, um comandante experiente nas guerras contra Ndongo. Os portugueses partiram com a habitual música marcial festiva e palavras de encorajamento de Sousa, que lhes lembrou que o propósito deles era lutar “a serviço de Deus, do rei [da Espanha] e do bem do Reino”. [81] Depois que o grupo chegou a Massangano, Cardoso recebeu ordem do governador de dirigir-se diretamente para Pungo Ndongo, onde chegou no dia 30 de março. Pungo Ndongo tornou-se a base para as operações portuguesas contra Jinga graças a suas fortificações naturais e seu fácil acesso às ilhas Kindonga, base das forças de Jinga. Ao longo de abril, Cardoso e Sebastião Dias, os dois comandantes portugueses que presidiam as operações militares contra Jinga, atacaram os poderosos sobas de Museke, em torno do forte de Cambambe e no próprio Ndongo, e forçaram a submissão deles. Os sobas conquistados foram cruciais para o sucesso dos portugueses porque lhes forneceram provisões muito necessárias e comandaram suas tropas na guerra contra Jinga. [82]
Depois que a guerra começou nas regiões principais de Ndongo, onde Jinga desfrutava de seu maior apoio, seu principal problema tático foi manter as linhas de comunicação abertas com os sobas que ainda a sustentavam. Ela sabia que os portugueses haviam postado espiões que relatavam os movimentos ao longo da rota entre as ilhas e o continente. Esse obstáculo à boa comunicação era extremamente prejudicial e perigoso para Jinga, porque Ndongo ficara ainda mais fragmentado politicamente durante o reinado de seu irmão, e Jinga sabia que não podia confiar na lealdade dos sobas, nem naqueles que tinham sido seus principais apoiadores. Quando o soba Ngola Ndala Xosa, por exemplo, viu Cardoso bombardear sua fortaleza e matar muita gente de seu povo, ele pediu perdão ao governador e explicou que, embora durante o governo de João Correia de Sousa houvesse obedecido a Jinga, agora sua lealdade era para com Hari a Kiluanje e o rei de Portugal. E prometia que no futuro faria tudo o que o governador ordenasse. [83]
As campanhas militares bem-sucedidas de Sebastião Dias contra os sobas ao longo do rio Kwanza fizeram com que muitos deles passassem para o lado dos portugueses. [84] Os sobas de Museke e Kissama, fortes adeptos de Jinga no passado, que haviam sitiado a fortaleza de Ambaca, estavam entre os derrotados pelos portugueses antes que Jinga tivesse posto em prática sua estratégia militar geral. [85]
A maré voltara-se contra Jinga, e ela não podia mais confiar no apoio absoluto do povo de Dumbo a Pebo, terra natal de sua mãe. O soba dali, que tinha relações próximas com o soba agora derrotado de Museke, estava entre os seguidores mais leais de Jinga e negou-se a atender ao pedido de assistência militar de Cardoso. Esse soba já havia capturado alguns dos kimbares que estavam passando por suas terras a caminho do acampamento português em Pungo Ndongo. Em retaliação, Cardoso prendeu o soba e alguns dos macotas, e acabou enviando vários cativos a Luanda para serem exportados e vendidos como escravos nas Américas. [86]
O tempo certamente não estava do lado de Jinga. Fernão de Sousa pressionou Cardoso durante a última semana de maio de 1626 para levar suas tropas até a ilha e “tomá-la antes que ela fique mais forte”. [87] A fim de se preparar para o ataque português, Jinga reuniu muitos soldados para proteger a si e aos partidários que se juntaram a ela. Um desses soldados, que os portugueses capturaram depois que ele saiu da ilha, forneceu o único testemunho dos preparativos militares de Jinga. Ele relatou que ela protegeu as ilhas fortificando-as intensamente com trincheiras. Em Danji, abrira uma entrada numa grande rocha e cavara cavernas bem camufladas que serviam de esconderijos naturais. Em torno dessa ilha, posicionara soldados ambundos, que estavam armados com os arcabuzes e os rifles que haviam trazido quando fugiram do exército português. Construíra também defesas em outras ilhas, onde posicionou mais soldados. Uma vez que não tinha armas suficientes para enfrentar o exército de Cardoso e não conseguira mobilizar forças no continente, Jinga havia estocado nas ilhas provisões, gado e pessoas, preparando-se para um sítio prolongado. [88] Apesar de algumas fraquezas, Jinga continuava a ser um inimigo perigoso: ela era popular entre os ambundos do exército de Cardoso e ainda poderia persuadir muitos deles a passar para o seu lado. Cardoso tinha poucos meios de manter a lealdade dos combatentes ambundos e de outros que haviam sido forçados a acompanhar o exército; em termos puramente práticos, ele tinha escassez de suprimentos e Jinga tinha muito alimento e bebida para conquistá-los.
Suas provisões talvez pudessem garantir uma boa popularidade, mas Jinga sabia que isso não era suficiente; mesmo que os soldados ambundos de Cardoso mudassem de lado, ela ainda precisava de mais aliados. Diante da invasão iminente, ela contava com algum apoio indireto de chefes vizinhos, que lhe enviaram suprimentos, mas não tinha o apoio essencial dos imbangalas. [89] Seu ex-marido Kasa, que lutara ao lado de seu irmão Ngola Mbande e cuja base ainda era perto, era agora inimigo dos portugueses, mas não lhe mandara ajuda.
As operações militares contra Jinga começaram na última semana de maio de 1626 e terminaram na última semana de julho. As tropas de Cardoso e Dias acamparam na borda ocidental da região hoje chamada Baixa de Cassanje e atravessaram para as ilhas usando canoas, barcos de pesca e duas embarcações especialmente construídas para a campanha. Jinga montara um sistema coordenado de defesa. Quando os barcos dos portugueses se aproximaram das ilhas, soldados (muitos deles kimbares que haviam desertado do exército português) dispararam com seus mosquetes e atiraram flechas de suas posições nas ilhas. As tropas de Jinga não foram surpreendidas porque ela havia inventado um intrincado sistema de comunicações entre sentinelas postadas em guaritas e vigias naturalmente protegidas em cada ilha, que tocavam sinos para avisar da aproximação das tropas. [90]
Jinga postou a maior parte de seus melhores soldados na ilha de Mapolo, que Cardoso e Dias escolheram capturar primeiro, já que servia de entrada para as outras. Os soldados de Jinga lutaram valentemente, usando várias armas e técnicas portuguesas e africanas, entre elas arcabuzes, espingardas de pederneira, arcos e flechas, lanças e troncos endurecidos pelo fogo. Como os soldados de Jinga estavam enfiados em trincheiras, os portugueses tiveram de capturar cada trincheira individualmente. Muitos dos soldados portugueses que tiveram a sorte de escapar da morte por afogamento, ferimentos de balas ou flechas encontraram a morte ou sucumbiram a ferimentos recebidos na luta para tomar as trincheiras. Não obstante, os portugueses conseguiram vencer, tendo matado muitos dos homens mais valentes de Jinga, e foram recompensados com provisões, gado e “tudo o que era necessário para nossas tropas famintas”. [91] Eles conseguiram capturar muitas pessoas na ilha, mas um bom número delas fugiu.
Deixando uma guarnição em Mapolo, Cardoso capturou então uma segunda ilha, que era o quartel-general do tendala (principal funcionário administrativo) de Jinga. Essa ilha estava ainda mais fortificada do que a primeira, com a presença da maioria dos melhores combatentes de Jinga. Tal como aconteceu em Mapolo, as tropas de Jinga sofreram grandes perdas e tiveram que abandonar a ilha quando foram sobrepujadas pelo poder de fogo dos portugueses. Essa ilha também oferecia muitas provisões e tinha uma grande população, mesmo levando em conta os muitos que se afogaram ao tentar escapar para as outras ilhas. Apesar da vitória, Cardoso conseguiu escravizar apenas 150 cativos porque muitas pessoas fugiram. Ele fez da ilha do tendala seu quartel-general, de onde partiram as tropas que conquistaram outras ilhas, entre elas uma na qual o comandante das forças de Ndongo estivera estacionado com seus soldados e alguns aliados imbangalas. Além disso, Cardoso tomou a ilha em que o mwene lumbo , outro alto funcionário, tinha seu quartel-general. Desse modo, Cardoso montou uma espécie de bloqueio naval em torno da ilha de Danji, onde Jinga havia instalado a corte. [92]
Em 7 de junho, Jinga emergiu do posto de observação, em plena vista de Cardoso, cercada por kimbares armados com arcabuzes e espingardas de pederneira. Parecia estar pensando se deveria enfrentar as tropas portuguesas. Embora talvez tivesse condições de defender a ilha, ela aparentemente achou melhor não atacar de imediato. No fim de junho, decidiu buscar uma paz negociada. A escolha do momento estava certa: os portugueses estavam com pouca munição, uma epidemia de varíola matara quatro mil kimbares portugueses, e o resto estava morrendo de fome em consequência de suprimentos inadequados. O surto da varíola já havia começado a afetar também as forças de Jinga e pode explicar, pelo menos em parte, por que ela resistia a lutar. [93]
Os portugueses ainda estavam em vantagem. Jinga estava isolada em sua ilha-fortaleza, sem a possibilidade de pedir novos estoques de munição ou de soldados, mas Cardoso conseguiu receber reforços e suas tropas desembarcaram em Danji no dia 12 de julho sem encontrar nenhuma resistência. No entanto, Jinga possuía um trunfo: os seis reféns portugueses que capturara no início do ano e estavam detidos em seu quartel-general. Ela decidiu tentar usá-los como uma tática para retardar um ataque militar português o suficiente para que seus seguidores restantes pudessem escapar com segurança para Tunda. De sua base fortificada, despachou um mensageiro (makunge ) para se encontrar com Cardoso. Sabendo que encurralara Jinga, Cardoso desconsiderou a declaração do makunge de que Jinga era uma “filha obediente do capitão”, que desejava saber “por que ele estava fazendo guerra contra ela e que estava disposta a viajar para onde estava o acampamento dele localizado em Tabi e render-se junto com sua corte em três dias”. Expressando impaciência com Jinga, Cardoso disse ao mensageiro que sua senhora “não tinha vergonha”; ela deveria saber que os portugueses haviam pegado em armas contra ela porque ela não havia obedecido aos julgamentos que tinham sido feitos contra ela. Depois de receber a resposta de Cardoso, Jinga enviou outro representante, desta vez seu mwene lumbo , cuja mensagem não era diferente da do makunge . Embora tenha percebido que Jinga estava embromando, Cardoso queria ter certeza de que ela entregaria os seis reféns portugueses vivos, então ouviu o secretário — que era, afinal, um alto funcionário — e deu a Jinga um prazo de 24 horas para entregar os reféns. Jinga obedeceu e, antes que o prazo expirasse, o mwene lumbo voltou com os seis cativos portugueses de aparência saudável — bem como com mais uma mensagem para Cardoso: ela não queria mais danos às ilhas e desejava tornar-se vassala dos portugueses. O mwene lumbo relatou que dentro de três dias ela apareceria pessoalmente em seu acampamento, com membros de sua corte, para assinar um tratado de paz. Ao discutir sua oferta, Cardoso e alguns outros veteranos de campanhas anteriores se referiram a Jinga como “belicosa”, apesar de ser uma “mulher e rainha, ou rei, como ela se chamava, porque não gostava de admitir que era mulher”. Após a discussão, Cardoso mandou o mwene lumbo dizer-lhe que tinha dois dias (ou três, de acordo com Cadornega) para entregar os kimbares que haviam desertado do exército português. [94]
Cardoso voltou então para sua base em Tabi, onde esperou que Jinga aparecesse. [95] Mas entregar os kimbares equivaleria a admitir a derrota. Então, enquanto Cardoso esperava, Jinga ordenou que seus melhores combatentes recuassem em canoas durante a noite, afrontando as armas e flechas que os sentinelas portugueses disparavam. Também instruiu seu pessoal a queimar os barcos que Cardoso planejava usar contra suas fortificações na noite seguinte e atear fogo aos alimentos que havia armazenado. Ela mesma escapou para Tunda, debaixo do nariz dos soldados de Cardoso. Embora eles a tenham perseguido, talvez estivessem exaustos demais para vasculhar completamente as muitas e grandes cavernas da região de Kina, onde ela e seu povo se esconderam no caminho para Tunda. Qualquer que tenha sido o motivo, o fato é que, quando Cardoso enviou seus batedores em perseguição, eles não tinham ideia da rota que Jinga havia tomado em sua fuga da ilha. [96] Os sobas e outros ambundos que permaneceram na ilha mataram muitos portugueses com suas flechas. Mas muitos deles morreram de ferimentos de bala ou se afogaram ao tentar fugir. [97]
Não há dúvida de que manobras diplomáticas hábeis foram, ao menos em parte, responsáveis pela fuga de Jinga, mas sua manipulação da espiritualidade ambundo também pode ter ajudado. Um pouco antes de escapar, ela fez uma mudança ideológica tão importante como a que fizera em 1622, quando decidiu ser batizada em Luanda. Enquanto as tropas de Cardoso cercavam seu esconderijo, Jinga percebeu que os portugueses jamais a aceitariam como governante de Ndongo. Naquele momento, ela também já sabia que eles tinham a intenção de substituí-la por um candidato próprio. Consciente de que nunca poderia sobreviver como líder de Ndongo sem um compromisso firme com a espiritualidade ambundo, ela apelou para as relíquias que fizera com os ossos de Ngola Mbande. Jinga sabia que, de acordo com as crenças espirituais dos ambundos, Ngola Mbande era uma força espiritual mais forte depois de morto do que quando estava vivo e aproveitou essa crença para que seus partidários tivessem plena fé em suas decisões. Se abandonasse a ilha sem prestar deferência adequada ao irmão morto, arriscaria sofrer a vingança dele e poria em risco o apoio de seus seguidores. Assim, antes da evacuação, ela convocou seus sacerdotes para realizar os rituais que lhes permitiriam comunicar-se com o espírito de Ngola Mbande. Durante a cerimônia, o espírito de Ngola Mbande possuiu um sacerdote, que transmitiu seus desejos e advertiu Jinga de que ser “um vassalo dos portugueses era perder liberdade e tornar-se um escravo” e que “era melhor manter a liberdade mediante uma fuga”. Jinga aceitou esse conselho e honrou seu irmão sacrificando catorze mulheres jovens sobre seu túmulo. [98]
Ao seguir cuidadosamente o conselho de Ngola Mbande, Jinga esclareceu a seus seguidores que tinha as bênçãos dos antepassados para continuar a resistência contra os portugueses. Desde o momento em que tomou a decisão de venerar as relíquias de seu irmão até sua morte, em 1663, ela manipularia a espiritualidade e faria dela um elemento central em sua arte de governar. Ela acrescentava elementos novos quando necessário, mas sempre se assegurou de que, em última análise, o controle estava em suas mãos.