4.
Política traiçoeira

Depois de ter fugido das ilhas Kindonga, Jinga encarou dificuldades assustadoras em suas tentativas de voltar à política de Ndongo. O governador Fernão de Sousa queria ter certeza de que ela permaneceria fora de combate; os portugueses ainda não haviam conquistado o leste de Ndongo, e ele temia que ela usasse a região como base para atrair partidários e solapar os ganhos que ele havia obtido, ameaçando possivelmente a sobrevivência da colônia. Os planos do governador de instalar Hari a Kiluanje no trono e capturar ou prender Jinga foram frustrados porque ele morreu de varíola um pouco antes de outubro de 1626, sem que fosse coroado rei de Ndongo. Outro dos planos de Sousa — persuadir Jinga a se tornar uma agente portuguesa e convencer os sobas das terras além de Ndongo a serem vassalos dos portugueses — também foi frustrado. [1] Mas Sousa tinha outras opções. Escolheu imediatamente Ngola Hari, um meio-irmão de Hari a Kiluanje que controlava a área de Pungo Ndongo, para rei de Ndongo.

Ngola Hari não estava no topo da lista de Sousa de substitutos de Jinga; ele descendia de outro ramo da linhagem real de Ndongo, mas era considerado inelegível para governar porque era filho de uma escrava da corte de Ngola Mbande. Jinga e sua irmã Kambu o consideravam dependente delas; embora seu nascimento na corte o protegesse de ser tratado como escravo, a falta de linhagem real de sua mãe tornava sua posição social indefinida. [2] As noções de parentesco dos ambundos diziam que os sobas não deveriam obedecer-lhe. A escolha de Hari a Kiluanje para rei baseara-se na premissa de que ele era um candidato mais respeitado e elegível. Para evitar rumores sobre a legalidade da indicação de Ngola Hari, Sousa exigiu que o capitão Bento Banha Cardoso reunisse todos os sobas leais a Ngola Hari junto com os macotas e outros eleitores do reino e os fizessem passar pelos procedimentos tradicionais da eleição de um novo rei. [3]

Foi nesse momento que Sousa apresentou o argumento de que o fato de Jinga ser mulher a desqualificava para governar. Ele instou Cardoso a persuadir os sobas e eleitores de que “Jinga não era uma rainha, nem podia ser, por ser mulher” e que ela fora “tiranicamente” colocada na chefia de Ndongo. Além disso, exigiu que Cardoso insistisse com os eleitores que tinham de escolher Ngola Hari para sucessor legítimo do trono de Ndongo, de acordo com o costume ambundo, e “colocá-lo numa cadeira e obedecer-lhe como a um rei natural”. [4] A eleição de Ngola Hari ocorreu em 12 de outubro de 1626, no forte de Ambaca, na presença de funcionários portugueses e seus “sobas, quizicos [kijikos ] e os macotas que eram eleitores”. O novo rei prestou juramento de vassalagem ao rei português e concordou em pagar um tributo anual de cem escravos de primeira ( peças das Índias ), juntamente com outras obrigações. Embora os termos do contrato de vassalagem que Ngola Hari assinou no seu empossamento não subsistam, o documento teria contido uma linguagem semelhante àquela do contrato que Hari a Kiluanje havia assinado, incluindo pagamento de tributo em escravos, conversão ao cristianismo, envio de soldados para lutar ao lado dos portugueses e o cumprimento de outras obrigações onerosas e humilhantes. [5]

Para garantir que o povo aceitasse Ngola Hari como seu rei legítimo, os portugueses mandaram que ele saísse de Pungo Ndongo e construísse uma nova residência em Kabasa ou Vungo, onde os reis de Ndongo tradicionalmente situavam suas cortes. Fernão de Sousa posicionou duas companhias de infantaria junto com tropas adicionais em Pungo Ndongo para proteger Ngola Hari de qualquer possível ataque de Jinga ou de seus partidários. [6] As condições que Sousa impôs a Ngola Hari eram as mesmas que Jinga havia rejeitado quando negociou em nome de Ngola Mbande em 1622. Sua recusa em aceitar essas condições continuaria a persegui-la e a ser um problema central durante suas muitas tentativas ao longo dos anos de chegar a um acordo pacífico com os portugueses. Ela jamais perdoaria Ngola Hari por aceitar ser vassalo dos portugueses.

A fuga de Jinga

Nos meses anteriores à eleição de Ngola Hari, os portugueses, sob o comando de Cardoso, fizeram esforços valorosos, mas que resultaram infrutíferos, para perseguir e capturar Jinga. Ela conseguiu evitar a captura através de uma combinação de desenvoltura e conexões políticas. Os primeiros quatro dias após sua fuga das ilhas Kindonga foram angustiantes. Cardoso mandou oitenta soldados de cavalaria e infantaria atrás de Jinga e sua comitiva, composta por seus parentes, funcionários mais próximos, adeptos e escravos que haviam escapado das ilhas. Eles evitaram por pouco a captura escondendo-se em várias cavernas grandes e naturalmente fortificadas. O grupo heterogêneo, do qual faziam parte muitas pessoas que sofriam os efeitos da varíola, teve de abrir caminho pela parte leste de Ndongo.

Durante a jornada, Jinga abandonou muitos dos escravos que haviam escapado com ela. Foi uma brilhante manobra tática: como os portugueses priorizavam arrebanhar escravos a seguir Jinga, ela ganhou tempo. [7] A distância entre ela e os portugueses deu-lhe a chance de lutar contra sobas que se recusaram a ajudá-la, bem como ganhar novos seguidores. A permanência da fidelidade de seus adeptos talvez dependesse de terem prestado ou não um juramento específico que os prendia a ela. Depois que faziam esse juramento, os ambundos preferiam a morte a rompê-lo. [8] Apesar da retirada penosa e da perda de muitos de seus seguidores e parentes próximos para a varíola, Jinga sobreviveu. Quando a cavalaria e os espiões de Cardoso chegaram à fronteira de Ndongo, Jinga estava longe de ser encontrada. Alguns relatos dizem que o imbangala Kasa permitiu que ela passasse com segurança por seu acampamento, enquanto outros afirmam que ele se recusou a ajudá-la. [9] Qualquer que seja a verdade, o fato é que Jinga foi parar na pequena região de Kina, onde o soba Catamuito teve piedade dela e de seu grupo desesperado.

A popularidade de Jinga cresceu durante essa fuga extraordinária. Ela conseguiu persuadir muitos sobas relutantes do leste de Ndongo e de reinos vizinhos a aderir à sua causa e manter seu paradeiro em segredo. Não foi pouca coisa. As tropas de Cardoso atacaram as terras dos sobas e os torturaram com a esperança de que revelassem seu paradeiro. Eles continuaram mudos.

Durante a busca por Jinga, Cardoso montou uma grande máquina de propaganda, enviando mensageiros e espiões ao leste de Ndongo para louvar Ngola Hari. Eles disseram aos sobas e a seus povos que a eleição seria legítima e que ele traria muitos benefícios materiais depois que fosse coroado rei. Teriam segurança e acesso gratuito às feiras, entre outras coisas. Os agentes de Cardoso entraram nas regiões vizinhas de Malemba e Matamba, onde um grande número de ambundos de Ndongo se refugiara, e tentaram subornar seus governantes, oferecendo aliança com os portugueses e outros incentivos para quem concordasse em não ajudar Jinga. Os representantes de Cardoso advertiram que, se Jinga aparecesse, as pessoas deveriam expulsá-la de suas terras ou entregá-la. Se não obedecessem, deveriam esperar retaliação. [10]

Enquanto Fernão de Sousa tinha Cardoso e seus agentes à procura de Jinga e planejavam a eleição de Ngola Hari, ela abria caminho através de Malemba. Se encontrasse refúgio temporário na base de Kasa, não ficaria por muito tempo nas proximidades de seu quilombo, pois não confiava nele, a quem havia traído no passado. Ela estava certa: alguns meses depois, um dos espiões de Ngola Hari informou que o chefe imbangala estava disposto a entregar Jinga ou matá-la se lhe garantissem uma recompensa. [11] Jinga tampouco poderia encontrar abrigo seguro em Malemba, pois Sousa pusera sua cabeça a prêmio. Com efeito, alguns dos sobas dessa região a perseguiram com seus exércitos durante sua fuga. Ela conseguiu escapar deles e refugiar-se na mata densa adiante de Malemba. [12] Mesmo ali, não estava segura, pois Ngola Hari declarara guerra a alguns de seus partidários, entre eles um parente de Jinga, o soba Zunge a Moke, porque se recusavam a obedecer-lhe. O capitão português Sebastião Dias invadiu as terras de Zunge a Moke com um exército de 78 portugueses e muitos kimbares ambundos. [13]

Ngola Hari estava incentivando ativamente os milhares de residentes de Ndongo que haviam se refugiado em Malemba e Matamba a retornar a Ndongo. Se em algum momento Jinga imaginara tentar recrutá-los, ela pensou melhor. Alguns deles não hesitariam em revelar seu esconderijo se isso significasse uma permissão para retornar às suas casas. Qualquer esperança de conquistar o apoio daqueles que permaneceram nas ilhas acabou quando eles proclamaram fidelidade a Ngola Hari e o reconheceram como o rei legítimo. [14]

Apesar desses reveses, Jinga continuava a ser um grande obstáculo no caminho de Ngola Hari para a legitimidade. No início de 1627, ele pediu a Sousa que autorizasse outra campanha contra ela ao saber que Jinga estava perto de Pungo Ndongo e que o imbangala Kasa, Zunge a Moke, Ndala Kisuba e refugiados de Ndongo a estavam ajudando. [15]

Ngola Hari tinha razão em se preocupar com Jinga. Ela não só havia feito alianças com governantes vizinhos como também tinha o apoio do rei Ambrósio do Congo, o mais poderoso reino africano independente da região. Os reis do Congo haviam apoiado Ndongo desde a chegada de Dias de Novais, especialmente depois de 1622, quando as tropas de João Correia de Sousa invadiram seu reino, capturaram muitos cristãos e os mandaram para ser vendidos como escravos no Brasil. Até então, o Congo resistira aos portugueses, e o reino fizera várias tentativas diplomáticas para restaurar a paz, mas seus governantes continuavam alarmados com a incessante expansão militar portuguesa. Ao mesmo tempo que mandara tropas contra Ndongo, Fernão de Sousa também havia enviado soldados para a região dos Dembos; nessas terras, que se situavam entre Congo e Ndongo, os governantes locais mantinham a autonomia e evitavam pagar tributos mudando continuamente de lealdade entre os dois reinos. Porém, o governador português insistia que, por terem anteriormente obedecido ao rei de Ndongo, eles agora deviam tributo ao rei de Portugal, que conquistara Ndongo. Em 1627, ele discutiu o envio de tropas à região para forçar o governante de Mbwila (na região dos Dembos) a reconhecer a soberania portuguesa e pagar tributo. [16] Em 1624, quando Jinga fugiu de Ndongo, o novo rei do Congo, Pedro II , foi solidário com ela: enviou-lhe um representante que levava consigo “uma cadeira e um tapete”, símbolos da realeza. [17]

Embora os sobas de Ndongo nem sempre estivessem dispostos a apoiá-la publicamente, a popularidade de Jinga continuou a aumentar. A maioria dos ambundos julgava sua reivindicação ao trono de Ndongo mais legítima do que a de Ngola Hari. Além disso, a crescente dependência de Ngola Hari dos portugueses prejudicava qualquer apoio que ele tivesse conseguido. Durante os primeiros meses de seu reinado, as muitas tentativas de Sousa de fazer a população ambundo aceitá-lo como o governante legítimo foram, em grande parte, malsucedidas. Um dos primeiros erros de Ngola Hari foi permitir que os missionários agissem em Ndongo. O primeiro missionário que ele acolheu foi o padre jesuíta Francisco Pacconio, a quem Sousa nomeara conselheiro espiritual do novo rei. Em dezembro de 1626, Ngola Hari já construíra uma igreja em Pungo Ndongo e permitira que o padre começasse a ensinar a doutrina católica para sua família, bem como para seus partidários. Mas Ngola Hari viu-se numa situação paradoxal. Ele percebeu que antes de poder residir em Kabasa, como Cardoso e Sousa haviam exigido, teria de participar dos rituais ambundos que possibilitariam que o povo o considerasse um governante legítimo. Assim, tentou postergar seu batismo, explicando ao padre Pacconio que era obrigado a “fazer certas cerimônias costumeiras”; negligenciá-las acarretaria uma falta de legitimidade aos olhos de seu povo. [18]

Embora as autoridades religiosas nativas devessem desempenhar um papel central em algumas dessas cerimônias, o padre Pacconio estava tentando reduzir essa influência e elas não podiam participar abertamente. Na verdade, Ngola Hari mantinha dois sacerdotes ambundos que o aconselharam a não desistir de suas crenças tradicionais, levando o padre Pacconio a pleitear que Sousa os expulsasse. A influência contínua deles sobre o rei e o povo, disse o jesuíta, prejudicava o trabalho missionário. [19] Em fevereiro de 1627, o padre Pacconio queixou-se ao governador que Ngola Hari, seus conselheiros e a população estavam muito apegados aos seus “feitiços” (sacerdotes e objetos rituais). As pessoas procuravam o rei para conseguir chuva, disse ele, e recusavam-se a ouvir os protestos do padre, “porque este era o poder e o costume de seus antepassados”. Desdenhavam especialmente das ideias sobre a vida após a morte, zombando de seus ensinamentos e respondendo que “queriam mandar alguém lá para verificar se o paraíso e o inferno realmente existiam”. [20]

Os portugueses travavam uma batalha árdua para influenciar a opinião pública em favor de Ngola Hari. Além da dificuldade em convencê-lo a rejeitar as crenças e as práticas rituais dos ambundos, não tiveram sucesso em suas campanhas militares contra os sobas e os macotas que suspeitavam de ajudar Jinga. Muitos ambundos se convenceram de que Sousa substituíra Jinga por Ngola Hari simplesmente porque ele era mais flexível. Com efeito, em carta ao secretário de Estado em Portugal, Sousa admitiu isso. Ele explicou que atacara Jinga porque os portugueses que moravam em Angola temiam-na mais do que a Ngola Hari: suas “contínuas persuasões levaram os sobas a se revoltar e os escravos portugueses fugiram para ela e, de fato, criaram uma rebelião geral e uma grande perda de receita”. [21] Sousa estava otimista de que a substituição de Jinga por Ngola Hari melhoraria a situação econômica da colônia.

O governador fez muitas exigências onerosas a Ngola Hari. Primeiro, ele deveria centralizar o comércio de escravos em feiras específicas que estavam sob o controle de um de seus funcionários, em vez de deixá-lo para funcionários das aldeias, como era costume. Em segundo lugar, deveria garantir que todos os comerciantes portugueses pudessem viajar com segurança às feiras, sem ter de pagar impostos. Terceiro, teve de concordar em participar de campanhas de propaganda conjunta com funcionários portugueses em toda a área para convencer as pessoas de que Jinga fugira e que ele era o rei legítimo. Por fim, deveria respeitar o padre Pacconio e ouvir seus conselhos, como “os reis e senhores de Portugal o fazem”. [22] Fernão de Sousa também advertiu Ngola Hari de que ele não tinha autoridade para enviar seus funcionários para coletar tributos dos sobas ou de outros senhores regionais sem o acompanhamento de representantes do forte, já que os sobas eram aliados do rei português e não seus vassalos; e os sobas deveriam pagar-lhe agora apenas um determinado imposto tradicional. Finalmente, Ngola Hari tinha de entregar aos portugueses, dentro de duas semanas, qualquer escravo pertencente aos portugueses que fugira para as terras de um soba, caso contrário, teria de pagar o custo do escravo. [23] Em suma, Sousa esperava que Ngola Hari não se comportasse como um rei independente que se aliara aos portugueses, mas como um soba conquistado que estava integrado à colônia portuguesa de Angola.

A relação que Ngola Hari formalizou com Sousa o tornou totalmente dependente dos portugueses, e seu poder foi irrevogavelmente diminuído. Ao contrário dos reis anteriores de Ndongo, ele não poderia exigir o tributo dos sobas sob seu controle, e, durante seus primeiros anos de governo, seus pedidos de assistência militar a Sousa para agir contra os sobas que recusavam suas exigências foram negados. Ngola Hari também não teve permissão para tributar comerciantes portugueses ou africanos sem primeiro obter aprovação dos fortes.

Sua posição fraca ficou evidente desde o início de seu governo, quando ele pediu a ajuda de Sousa para repovoar Ndongo, que se transformara numa região deserta, pois perdera grande parte da população após quase uma década de guerras. Seus vários pedidos para repatriar os kijikos e ambundos livres que estavam em Luanda e em outros lugares sob domínio português foram inúteis. Nada resultou disso, apesar dos vários planos sugeridos por Sousa, um dos quais envolvia uma troca de ambundos livres que viviam em Luanda e em várias plantações portuguesas pelos kijikos que haviam fugido para Ndongo. Sousa chegou a propor a divulgação de um decreto em Luanda e perto dos fortes que incentivasse ambundos livres a retornar a Ndongo. No entanto, os funcionários da Câmara (o órgão consultivo do governador) se recusaram a assiná-lo, temendo que essa medida incentivasse a fuga em massa de kijikos e outros ambundos escravizados e destruísse o sustento econômico dos proprietários portugueses. [24] Mesmo que o plano para repovoar Ndongo tivesse funcionado, Ngola Hari não poderia exigir tributo dos ambundos que retornaram a Ndongo, porque ele não era considerado governante dessas terras. Como parente de Jinga, tinha direitos naturais sobre os kijikos em suas províncias de Pungo Ndongo e Hari, mas não podia reivindicar os mesmos direitos sobre os de Ndongo, que pertenciam à linhagem direta de Jinga.

Esse problema complexo era apenas um dos muitos exemplos do fracasso de Sousa em criar as condições que tornassem Ngola Hari um aliado confiável e governante legítimo no lugar de Jinga. Não bastava instalá-lo no trono. Ngola Hari ainda temia Jinga, e não estava sozinho; muitos dos principais membros de sua linhagem também a consideravam inimiga. Eles acreditavam que, se reconquistasse Ndongo, ela os escravizaria a todos, uma vez que, como dizia o ditado popular, “quem é rei não tem parentes”. [25] Ao mesmo tempo, muitos ambundos estavam decididos a aceitar Jinga se ela voltasse.

Embora não tivesse o poder tradicional associado aos reis de Ndongo, Ngola Hari percebeu que, para manter sua posição, teria de aceitar as exigências de Sousa, entre elas a de se converter ao cristianismo. Deixando de lado sua antiga resistência, ele foi batizado em 1627 pelo padre Pacconio, junto com sua esposa e outros parentes. Ele também enviou seu filho jovem a Luanda para ser batizado numa cerimônia magnífica na igreja principal. E, numa atitude drástica, Ngola Hari abandonou o conceito de casamento plural, tão essencial para a liderança dos governantes de Ndongo, e casou-se com sua esposa conforme o rito cristão. [26]

Jinga reaparece

Os temores de Ngola Hari e dos portugueses relativos ao ressurgimento de Jinga concretizaram-se em 1627, quando ela começou a aproximar-se de alguns de seus antigos aliados, numa tentativa de refazer sua base de apoio. Fernão de Sousa ouviu falar pela primeira vez de sua atividade em março, quando recebeu a notícia de que Jinga enviara dois representantes de baixo nível (makunges ) de Tunda, onde estava temporariamente, a Kissama, uma província produtora de sal, produto que fora uma fonte importante de receita para Ndongo, mas que resistira ao domínio português. Os makunges encontraram-se com vários macotas (anciãos) e sobas que ganharam o opróbrio dos portugueses por abrigar imbangalas e não permitir que os portugueses se instalassem em suas terras. [27]

Alguns meses depois, em setembro, Jinga decidiu ir até a fronteira de Ndongo para testar a situação. Chegando com o imbangala Kasa, com quem estava temporariamente em bons termos, tentou reconstituir sua base. Porém, logo descobriu que o ambiente político mudara tremendamente em favor dos portugueses, embora sem favorecer Ngola Hari. Em consequência das operações militares bem-sucedidas de Cardoso e Sebastião Dias, muitos sobas e poderes regionais nominalmente independentes de uma grande área que se estendia da fronteira sul do Congo à fronteira leste de Ndongo e pelas terras de ambos os lados do rio Kwanza haviam aceitado os termos de vassalagem ou concordado em se aliar aos portugueses, apesar de terem simpatizado anteriormente com Jinga e participado de sua rebelião. Até mesmo os sobas de Tunda e Songo, que haviam resistido aos portugueses, tinham agora feiras de escravos e permitiam que mercadores portugueses e africanos traficassem em seus territórios. [28] Outro fator que tornava difícil para Jinga obter apoio era o papel de Ngola Hari na estratégia de Fernão de Sousa para controlar Ndongo. Em decorrência do batismo de Ngola Hari e sua aparente disposição de recorrer à ajuda militar portuguesa, muitos sobas se sentiram intimidados e relutaram em aceitar o retorno de Jinga, temendo a reação dos portugueses.

Jinga deu-se conta de que precisava ter cuidado quanto a revelar seu paradeiro e confiou somente naqueles sobas que eram membros de sua linhagem e tinham terras localizadas em Ndongo. [29] Em consequência, teve o apoio de apenas dois sobas. Depois de ter sido abandonada novamente por Kasa, ela ficou sozinha no novo acampamento de guerra que construíra no leste de Ndongo. [30] Sabia que tinha apenas duas opções: voltar para o mato e continuar lutando para recuperar o trono, ou tentar reabrir negociações com Sousa. Jinga escolheu a segunda via.

Em novembro de 1627, ela enviou o seu mais alto funcionário (seu mwene lumbo ) e alguns funcionários ao forte de Ambaca para apresentar sua defesa. A maior parte do que o mwene lumbo tinha a dizer não era novidade. Ele reiterou a decisão de Jinga de se tornar subordinada e dependente de Sousa ( filha ). Porém, não abria mão do direito de governar Ndongo, e o mwene lumbo enfatizou que a rainha retornara porque era a governante legítima e, francamente, estava cansada de vagar pelas matas. Informou ainda que Jinga culpava seus conselheiros por aconselhá-la a fugir e agora estava pronta para participar da cerimônia de vassalagem e pagar tributo ao rei de Portugal. Falando sobre as origens do conflito, ressaltou que Jinga acreditava que, quando se tornara vassalo dos portugueses em 1624, Hari a Kiluanje o fizera somente porque queria herdar o reino dela. E disse também que Ngola Hari, a quem os portugueses haviam eleito, estava mentindo quando dissera que ela retornara para começar uma guerra. Como isso poderia ser verdade, se ela não tinha inimigos em Ndongo? Todos eles eram seus dependentes. Em conclusão, o mwene lumbo indicava que Jinga estava pronta para reabrir a feira de escravos. Em nome dela, presenteou o capitão-geral do forte com vários escravos: seis para o governador e quatro para Cardoso. Além disso, ele entregou quatrocentos escravos e 150 cabeças de gado como tributo ao rei português em nome de Jinga e Kasa. [31]

Ao saber do reaparecimento de Jinga, Ngola Hari enviou seu próprio mwene lumbo com uma carta ao governador português em que se queixava de ter sido informado sobre os mensageiros de Jinga no forte e observava que ela tinha um grande número de escravos acorrentados esperando em Ambaca para serem enviados a Sousa. Acusava Jinga de ter pagado subornos para permitir seu retorno a Ndongo. Ademais, enfatizava que os sobas que viviam ao longo do rio Kwanza ainda preferiam Jinga a ele e dizia que ela poderia ter ido para a ilha onde seu irmão Ngola Mbande estava enterrado, presumivelmente para começar a refazer novamente suas forças. Ngola Hari pleiteava que Sousa o ajudasse, pois era seu pai. [32]

Fernão de Sousa, ao receber apelos de Jinga e Ngola Hari, preferiu apoiar o último. A manipulação que Jinga fizera de Cardoso e sua fuga das ilhas o haviam embaraçado e ele agora estava firmemente empenhado em apoiar Ngola Hari, que era influenciável e fraco. Sousa sabia que Ngola Hari não seria capaz de cumprir seus deveres se Jinga continuasse uma ameaça e tratou rapidamente de encorajá-lo. Ao mesmo tempo que o repreendeu com severidade por acusar os portugueses de aceitar subornos de Jinga, prometeu mandar reforços. Mas ordenou que ele mantivesse o povo longe das ilhas — a fim de evitar que se juntassem a Jinga — e enviasse soldados para coletar informações sobre Jinga. Sousa exigiu que Ngola Hari preparasse seus soldados para a batalha e encorajasse seu povo a plantar para que os soldados tivessem comida. Além disso, instou o capitão-mor de Ambaca e o padre Pacconio a encorajar Ngola Hari: em nenhuma circunstância, deveriam abandoná-lo naquele momento. [33]

Com Jinga, o governador não se arriscou. Não só recusou o apelo dela como acusou seu mwene lumbo de ser um espião e mandou o capitão-mor prendê-lo. O mwene lumbo foi acorrentado junto com os que o acompanharam, e os escravos que trouxera foram confiscados. Ordenou ao capitão-geral que reunisse tropas, perseguisse e matasse Jinga e cortasse a cabeça de qualquer soba que aderisse a ela. [34]


Giovanni Antonio Cavazzi da Montecuccolo, “Missione evangelica nel Regno de Congo” (1668), v. A, livro 1, p. 37. Manuscritos Araldi, Modena, Itália. Fotografia: Vincenzo Negro.

Rainha Jinga proferindo sentença. Antonio Cavazzi, c. 1668.

Preocupada por não ter notícias do mwene lumbo , Jinga enviou dois de seus makunges favoritos a Ambaca, com mais escravos. Eles chegaram ao forte em 5 de dezembro de 1627, mesmo dia da prisão do mwene lumbo . Num curto espaço de tempo, o capitão-mor os prendeu, junto com alguns outros adeptos de Jinga.

Evidentemente, àquela altura Jinga não sabia nada a respeito do destino de seus emissários. Enquanto aguardava notícias, tentou esclarecer aos portugueses sua disposição de viver em paz. Mudou-se para a ilha de Zongo, nas ilhas Kindonga, a cerca de dois dias de viagem de Ambaca, para evitar lutar contra o soba Andala Gonga Cangombe da região de Lucala, que a atacara depois que ela pedira que ele devolvesse ao forte todos os kimbares (soldados escravos) dos portugueses que haviam fugido para suas terras durante a revolta anterior. [35] E chegou mesmo a mandar seus makunges pedirem permissão a Cardoso para permanecer na ilha. Além disso, enviou um dos seus partidários em missão ao soba Candele de Kisos, uma das principais bases de apoio a leste de Pungo Ndongo, para pedir-lhe que tratasse bem os kimbares portugueses e os pumbeiros (comerciantes africanos que trabalhavam para mercadores portugueses) que estavam em suas terras com suas mercadorias. Candele rejeitou o pedido de Jinga e, em vez disso, atacou os comerciantes, roubou-os e matou três africanos pertencentes aos portugueses, um homem livre e dois escravos. Os outros comerciantes portugueses e escravos fugiram para as terras do soba Ndala Kisuba, um vassalo dos portugueses que prometeu protegê-los com sua vida. [36]

Esse incidente expôs a principal fraqueza de Jinga. Ela precisava agora enfrentar a realidade de que havia perdido o apoio que tivera entre os principais sobas da região. Atormentada por essa revelação, Jinga caiu numa depressão severa, trancou-se num quarto e recusou-se a falar com todos. Foi nesse estado que enviou, de sua nova localização numa ilha diferente do rio Kwanza, mais dois emissários a Ambaca para dizer a Sousa que não era responsável pelo que Candele fizera em Kisos. Para convencê-lo de sua sinceridade, pediu que, quando os enviados chegassem, fossem submetidos a um teste brutal chamado kilumbo , no qual uma faca quente era colocada na pele da pessoa que fazia um juramento; se nenhuma ferida fosse detectada, considerava-se que a pessoa falara a verdade. [37] Novamente sem receber notícias de seus mensageiros, Jinga, ignorando que o destino deles havia sido selado, ficou desesperada e mandou seu secretário pessoal ao forte, em 4 de janeiro de 1628. Porém, ele não teve permissão para atravessar o rio Kwanza: foi bloqueado por um soba que declarara apoio a Ngola Hari. Jinga estava efetivamente isolada na ilha. A maioria das sobas da região em torno do rio Kwanza que a apoiavam estava agora acampada em Pungo Ndongo, esperando reforços que lhes permitissem atacá-la sob a liderança de Ngola Hari. [38]

Nesse meio-tempo, os dois enviados de Jinga submeteram-se à provação no forte. Eles defenderam sua rainha e afirmaram sua inocência, negando que tivesse mandado matar e capturar os kimbares e pumbeiros em Kisos ou confiscar as mercadorias dos comerciantes. [39] Mas esses procedimentos legais eram apenas uma encenação: o governador já decidira que os funcionários de Jinga o estavam espionando e descartou os resultados da provação. Sousa convocou um tribunal militar em Luanda para iniciar um processo formal contra o mwene lumbo . O tribunal condenou-o por espionagem, transportar mensagens falsas de Jinga e, ainda, pela responsabilidade por quase todas as ações dela, inclusive unir forças com o imbangala Kasa e estimular os sobas a se rebelar. O tribunal condenou-o à morte por decapitação na presença dos sobas. A vida dos dois makunges foi poupada, mas eles foram condenados a serem transportados para o outro lado do Atlântico e vendidos como escravos. Antes de cumprir as sentenças, o capitão-mor e outros militares portugueses de Ambaca torturaram o mwene lumbo e os dois makunges . Sob coação, o mwene lumbo forneceu detalhes sobre como Jinga conseguira retornar a Ndongo. Mas ele continuou a insistir que Jinga estava genuinamente interessada em fazer a paz com os portugueses e preparada para se tornar vassala de Portugal. [40] Os makunges também revelaram detalhes sobre os movimentos de Jinga desde seu retorno a Ndongo, mas, tal como o mwene lumbo , afirmaram separadamente que Jinga estava disposta a fazer a paz e se subordinar aos portugueses. Suas confissões, no entanto, não os salvaram. O mwene lumbo foi decapitado em 23 de dezembro de 1627.

Três semanas após a execução, em 15 de janeiro de 1628, o capitão-mor de Ambaca enviou onze emissários e seguidores de Jinga para Luanda. Do grupo faziam parte os dois makunges e outros funcionários que foram presos após sua chegada ao forte ou apanhados em outros lugares de Ndongo. Entre eles estavam um soba de Lucala e três companheiros que apoiavam Jinga. Todos deram testemunho sob juramento que revelava o paradeiro e as ações de Jinga. Todos, no entanto, juraram unanimemente que Jinga voltara porque queria fazer a paz com os portugueses. [41]

Enquanto os dois makunges condenados ficaram presos em Luanda, aguardando embarque para o Brasil, Sousa devolveu o resto do grupo para o forte de Ambaca. Acompanhados por um funcionário português, eles levavam uma mensagem do governador para Jinga. Nela, Sousa dizia que se ela era sincera em querer ser sua dependente, precisava ir ao forte em Cambambe. Tranquilizava-a afirmando que garantiria sua segurança e a circulação pelas estradas, fosse ela por Ambaca ou por outro caminho. Assegurava-lhe que, na qualidade de cristã e pessoa de alta posição, seria tratada com dignidade, e pedia-lhe que não arriscasse sua vida voltando para a mata. Como incentivo adicional, Sousa permitiria que ela trouxesse Kasa. Pedia-lhe que tivesse confiança nele, pois ele a considerava uma dependente. Não obstante, o governador deixava claro que aquela era a última chance de Jinga. Se ela não aceitasse sua oferta, os portugueses “iriam buscá-la”, e ela não gozaria das garantias que a mensagem prometia. Na verdade, Sousa declarava que, se Jinga enviasse mais emissários ao forte, eles seriam decapitados. Em conclusão, aconselhava Jinga a pensar seriamente no que perderia se não obedecesse e a lembrava dos riscos que já enfrentara durante sua fuga. Certamente seria melhor para ela passar o resto de sua vida descansando, sem precisar se preocupar com sua sobrevivência e manutenção. [42]

Mobilizando o apoio popular

Através de seus vários emissários, Jinga indicara a Fernão de Sousa que estava disposta a se tornar vassala do rei português. A resposta dele mostra como os dois líderes concebiam de forma muito diferente o papel de uma mulher numa família real. A visão de Sousa baseava-se no modelo europeu do início dos tempos modernos. Ele esperava que Jinga desistisse de reivindicar as terras e o trono de Ndongo e aceitasse Ngola Hari como o rei legítimo. Ele também queria que ela aceitasse o título com menos status de “irmã do rei” e concordasse em retirar-se da esfera pública para viver tranquilamente da generosidade de seu guardião, o próprio governador. [43]

Sob muitos aspectos, o que ele estava oferecendo a ela era uma opção melhor do que aquelas com que se deparava a maioria das mulheres das famílias reais europeias se contestassem sua exclusão da liderança política. Na Europa, uma mulher igualmente desafiadora poderia ser obrigada a casar com um príncipe de uma terra distante, banida para um convento ou calabouço, ou mesmo assassinada. [44] Nesse contexto, não é difícil entender por que o governador português esperava que Jinga julgasse sua oferta atraente. Ele desconhecia a realidade política de Ndongo, onde as mulheres tinham um papel importante na governança. [45]

Sousa tentou resolver a crise política em Ndongo, causada por décadas de guerras e por uma política comercial baseada na extração de escravos, identificando o gênero de Jinga como a principal causa do conflito. Quando apresentou as duas opções a Jinga — submeter-se e tornar-se uma mulher sem poder, ou encarar as tropas portuguesas —, ele calculou mal. Havia tomado os apelos de Jinga como um sinal de fraqueza e claramente não entendera a profundidade da percepção de Jinga de si mesma como líder, tampouco as tradições políticas e culturais que a motivavam. Se tivesse entendido esses fatores, não ficaria surpreso com a resposta de Jinga: ela lutaria até a morte por seu reino. Estava disposta a tornar-se vassala em condições que lhe permitiriam reter o poder, mas não nas condições que Sousa estava oferecendo.

Entre dezembro de 1627 e março de 1628, no momento em que os emissários de Sousa estavam a caminho com sua mensagem, Jinga iniciou uma intensa campanha para recrutar sobas para sua causa. O governador, sem esperar por uma resposta dela, já estava se preparando para a guerra. Sua prioridade maior era garantir que Jinga não consolidasse sua posição nas ilhas Kindonga ou na região entre Ndongo e Matamba. Ele enfrentava o problema recorrente de que os sobas ainda se recusavam a aceitar Ngola Hari como líder legítimo. Mesmo aqueles que, no início, o apoiaram com relutância simplesmente ignoravam suas ordens de trazer homens e suprimentos para a nova campanha contra Jinga.

Mais uma vez, as exigências de Ngola Hari aos sobas tiveram o efeito de minar o apoio deles. Quando Jinga chegou às terras de Ndala Kisuba e Matamba, onde muitos dos sobas de Ndongo e sua gente se refugiaram, eles a saudaram e ela logo conseguiu montar um acampamento de guerra na região. A crescente popularidade de Jinga contrastava com o desprezo que os portugueses e os ambundos sentiam por Ngola Hari.

Ngola Hari estava numa situação lamentável. Não tinha soldados próprios e os sobas de Ndongo estavam em rebelião aberta contra ele. No fim de março de 1629, os portugueses e ele já tinham planejado atacar esses sobas. Antes de fazê-lo, enviaram mensagens ordenando que eles comparecessem perante Ngola Hari. Nenhum apareceu porque, como Ngola Hari e seus macotas reconheceram, todos obedeciam a “Jinga Ambande”. Ngola Hari teve um ataque de raiva quando Paio de Araújo de Azevedo, o capitão-geral que substituiu Bento Banha Cardoso, exigiu que ele obrigasse os sobas a cumprir suas ordens. [46] Exclamou que ele e Jinga eram ambos dependentes (filhos) de Azevedo, e que ele poderia muito bem permitir que ela voltasse para Ndongo; ele mesmo deixaria Ndongo e voltaria para Andongo ou para Lembo, perto do forte de Massangano, onde os portugueses poderiam “cortar sua cabeça”. Durante o ataque, Ngola Hari pegou uma palha, entregou-a ao intérprete e se afastou. Com esse gesto, indicava que desistia de seus direitos ao reino. [47]

Os portugueses sabiam que os sobas preferiam obedecer suas ordens às de Ngola Hari, desprezado como ele era por sua indigência e incapacidade de manter o reino por conta própria. No entanto, a aliança com Ngola Hari era importante, e Sousa estava empenhado em dar suporte ao rei tentando forçar os sobas a obedecer-lhe. Ngola Hari instou Sousa a ir mais longe e a decapitar vários dos macotas ou sobas de Jinga como um incentivo para que seus adeptos se entregassem no forte. Ele também queria que os portugueses capturassem Jinga, advertindo que, se continuasse livre e desse prosseguimento a sua aliança com Ndala Kisuba, ela se tornaria mais poderosa ou até mesmo destruiria o reino. [48] Sousa seguiu essencialmente o conselho de Ngola Hari.

A partir de junho de 1629, o capitão-geral do forte de Ambaca deteve e aprisionou muitos sobas de Ndongo, que foram libertados somente depois que concordaram em se tornar vassalos do rei de Portugal. Outros foram presos e receberam na pele a marca do rei. Essas ações não fizeram nada para melhorar a situação de Ngola Hari; na verdade, apenas exacerbaram os maus sentimentos dos sobas em relação a ele. Os sobas ambundos tinham grandes expectativas em relação a seus reis. Todos os governantes anteriores de Ndongo, bem como Jinga, ganharam o respeito dos sobas e de outros senhores regionais por liderarem grandes exércitos e vencerem batalhas. Ngola Hari fora despojado da capacidade de fazer tal coisa. Ao impedi-lo de realizar campanhas militares independentes deles, os portugueses o privaram de uma das principais funções que separavam os reis de Ndongo dos sobas. Como vassalo dos portugueses, Ngola Hari jamais poderia alcançar esse status. Ele admitira isso numa ocasião anterior, quando fez uma visita inesperada a Ambaca. Ele queria saber por que não podia ir à guerra, já que “sua vida e liberdade [quietação ] consistiam em fazer a guerra para sustentar o reino”. O único conselho que o sargento-mor pôde oferecer-lhe foi sugerir que ele voltasse para Pungo Ndongo em vez de ir a Lembo para plantar; mudar-se para Lembo indicaria ao povo que “ele não queria ser rei”. [49]

A situação de Ngola Hari ficou tão patética que ele se queixou de ter apenas “seus conselheiros (macotas) e mulheres” ao seu redor, e que não conseguia iniciar uma campanha nem mesmo contra os sobas descontentes. [50] Com efeito, os sobas desrespeitavam tanto Ngola Hari que o capitão-mor de Ambaca prendeu muitos deles, forçando-os a retornar a Pungo Ndongo e declarar novamente que eram seus vassalos. Essas tentativas dos militares portugueses só pioraram a situação, e a posição de Ngola Hari continuou a se deteriorar. [51] A situação era especialmente explosiva na província de Hari, onde muitos sobas deixaram de pagar os tributos. O próprio Ngola Hari não conseguiu levantar os cem escravos que era obrigado a fornecer como tributo. [52]

Enquanto isso, Jinga continuava seus esforços para mobilizar o apoio popular. Ela aceitara o fato de que Sousa recusara suas várias ofertas (a partir de 1625) de se tornar vassala de Portugal sob certas condições e agora acreditava que ele desconfiava dela inteiramente: em uma palavra, era seu inimigo. [53] Ela também estava ciente dos muitos obstáculos que teria de encarar para continuar a se opor a ele. Soubera que ele havia encomendado cavalaria e reforços de soldados portugueses de Luanda para todos os fortes, bem como numerosos soldados africanos livres e escravos de muitas regiões.

A estratégia de Jinga era mover-se com rapidez para impedir que os reforços portugueses chegassem a Ambaca e Pungo Ndongo para apoiar Ngola Hari. Em julho de 1628, ela já havia conseguido recuperar o apoio dos sobas próximos ao rio Kwanza, que foram a uma reunião pública onde ela apareceu com o imbangala Kasa ao seu lado. Nessa reunião, Jinga proclamou-se “Senhora [de Ndongo]”. E não parou aí: anunciou que Ngola Hari era seu escravo e que estava preparada para tornar-se vassala do rei de Portugal e pagar-lhe tributo “das terras que seu pai lhe dera”. [54] Pouco depois, Sousa recebeu a notícia de que Kasa estava liderando uma grande força em direção a Ambaca. Enquanto isso, Jinga recebera outra mensagem do governador que lhe ordenava que aparecesse em Luanda para negociar as condições de sua vassalagem. É claro que ela desconsiderou a ordem e enviou um emissário para dizer a Sousa que o considerava “seu inimigo que queria mandá-la para a América espanhola [presumivelmente como escrava]”. [55]

Continuando sua luta contra Ngola Hari, Jinga travou uma guerra psicológica contra ele, além de enfrentá-lo no campo de batalha. Quando soube que Cardoso deixara Pungo Ndongo, onde estivera protegendo o rei contestado, Jinga enviou uma mensagem ameaçadora a Ngola Hari, junto com alguns fetiches que, segundo Sousa, “esses pagãos temem mais do que armas”. Ngola Hari ficou aterrorizado e não conseguiu enfrentar Jinga nem reunir coragem para liderar suas forças através de Ndongo para mostrar que estava no comando. Em vez disso, permaneceu em Pungo Ndongo e enviou mensagens em que pedia reforços aos portugueses para “protegê-lo da mulher negra”. [56]

Àquela altura, Jinga já havia retornado às ilhas Kindonga, e seu prestígio entre os sobas aumentava diariamente. Apesar dos esforços de Sousa para obrigá-los a aceitar Ngola Hari como rei, eles acreditavam que Jinga era a governante legítima de Ndongo e que, de acordo com as noções de linhagem ambundo, Ngola Hari era dependente de Jinga. [57] Não era apenas seu próprio povo que não respeitava sua autoridade. Os soldados portugueses que moravam em Pungo Ndongo e que deveriam protegê-lo eram extremamente desrespeitosos e o exploravam sem piedade. [58]

O fato de saberem que Jinga estava nas ilhas, tinha viajado para Matamba e para as terras de Ndala Kisuba e contava com o apoio do imbangala Kasa encorajou mais sobas a apoiá-la. Muitos deles expressaram esse apoio simplesmente resistindo às exigências de Ngola Hari ou dos portugueses, enviando muito pouco tributo ou ignorando completamente os pedidos. Em alguns casos, nem sequer lhes era possível pagar o tributo necessário: muitos sobas ficaram destituídos desde a primeira campanha contra Jinga, durante a qual milhares de pessoas foram capturadas e escravizadas ou morreram na epidemia da varíola. Mais importante, no entanto, era o fato de que várias rotas do tráfico de escravos haviam sido interrompidas. Os laços renovados entre Jinga e Kasa bloquearam as estradas para as terras de Ndala Kisuba, e as guerras fecharam rotas que atravessavam Ndongo. Além disso, a presença de Jinga nas ilhas levara ao fechamento de algumas rotas para o forte em Ambaca. [59]

Enquanto Jinga trabalhava para obter apoio, Sousa enviava emissários a Ndala Kisuba para negociar a reabertura das rotas. Ele considerava Ndala Kisuba um “senhor muito poderoso” e acreditava que, se conseguisse reabrir o mercado de escravos em suas terras, Ngola Hari e os sobas de Ndongo participariam novamente do tráfico de escravos e poderiam pagar seus tributos. [60] Fernão de Sousa construíra o mercado nas terras de Ndala Kisuba durante a primeira campanha contra Jinga. Ndala Kisuba ganhara muito graças a essas campanhas. A fronteira para escravizar estava muito mais ao leste do que quando os reis de Ndongo eram poderosos o suficiente para evitar o contato direto entre os portugueses e as terras mais orientais. Desde 1628, a região já era uma fonte importante de escravos. [61] A principal preocupação de Sousa era agora manter Ndala Kisuba, que num certo momento dera abrigo a Jinga, como aliado dos portugueses; seu emissário tinha muitos itens para dar conta e precisava ser excepcionalmente persuasivo. Os portugueses queriam que Ndala Kisuba deslocasse a feira de escravos para acampamentos militares, onde sua segurança estaria assegurada. Para adoçar o acordo, levaram-lhe muitos presentes e transmitiram garantias verbais de paz e segurança a longo prazo contra seus inimigos, com Jinga no topo da lista. Além de subornar Ndala Kisuba com presentes, Sousa construiu um novo forte entre Pungo Ndongo e as ilhas Kindonga para que as tropas portuguesas e africanas pudessem patrulhar a região e forçar os sobas vizinhos a contribuir para o esforço de guerra. [62]

Fernão de Sousa percebeu que, para abrir a rota dos escravos e possibilitar que Ngola Hari governasse, teria de começar uma nova campanha contra Jinga. Ela seria comandada por Paio de Araújo de Azevedo, o novo capitão que chegara no outono de 1628 para substituir Cardoso, que morrera no verão anterior. Em setembro de 1628, Azevedo liderou um ataque contra Jinga. O exército era composto pelos mesmos veteranos portugueses e africanos de Luanda que haviam lutado em campanhas anteriores, junto com tropas escravas adicionais comandadas por capitães como Sebastião Dias, que vieram dos fortes de Massangano e Ambaca. Azevedo esperava acrescentar tropas locais que deveriam ser fornecidas por Ngola Hari e os sobas. O governador reunira uma grande quantidade de informações sobre o paradeiro de Jinga, e seu objetivo agora era defender Ngola Hari, “impedir que aquela mulher negra se fortalecesse na ilha onde estava” e persegui-la onde quer que estivesse para que não conseguisse reconstruir sua base. [63]

Azevedo não atacou Jinga imediatamente após sua chegada à região próxima das ilhas Kindonga. A estação das chuvas dificultou a viagem, mas ele também reconheceu que precisava coletar informações sobre a força militar e os movimentos de Jinga. Além disso, tinha de fortalecer a confiança de Ngola Hari. Os informantes de Sousa haviam sugerido que as tropas de Jinga e Kasa estavam por todo o Ndongo e que ela continuava a atrair sobas que se recusavam a pagar tributo a Ngola Hari e que, devido às perdas anteriores de seu povo, fugiram. Quando as tropas de Azevedo vindas de Luanda (com 150 soldados europeus e cavalaria) chegaram com seus escravos, juntaram-se aos milhares de soldados africanos que estavam sob o comando de Dias e atacaram os sobas da província de Hari que estavam apoiando Jinga através de uma resistência passiva. [64]

Além disso, antes de atacar Jinga, as tropas combinadas intimidaram alguns dos sobas mais poderosos e ocuparam locais estratégicos, onde o apoio a Jinga era forte. Os sobas de muitas regiões diferentes, inclusive aqueles da região em torno do rio Lucala, em áreas fronteiriças, foram o alvo, e aqueles que mandavam em certas áreas estratégicas, como Ndala Kisuba, foram ameaçados de guerra se se recusassem a informar a presença de Jinga ou se permitissem que ela escapasse através de suas terras. [65]

Por fim, Azevedo e suas tropas avançaram sobre as ilhas Kindonga. Mas, quando chegaram, não encontraram Jinga.

O jogo de gato e rato

Apesar de a campanha ter de ser interrompida por quase oito meses devido às chuvas, Azevedo nunca parou de procurar por Jinga e continuou a fustigar os sobas suspeitos de ajudá-la. Em fevereiro de 1629, Jinga ainda não fora localizada. O pequeno apoio que Ngola Hari obtivera entre os sobas já se desfizera, e ele enfrentava uma rebelião aberta. Numa petição que seus funcionários levaram a Azevedo, Ngola Hari queixava-se de que grande parte da população de Ndongo fugira para Matamba e questionava a estratégia portuguesa. A petição dizia que o exército se empenhava tanto em capturar e destruir Jinga e seu povo — o próprio Ngola Hari recebera ordens para atacar aldeias de Ndongo — que estava destruindo o que restava do reino. Ngola Hari estimava que os soldados portugueses haviam tomado quatro mil escravos de primeira, junto com muitos sobas. [66]

Através das palavras de seus emissários, o desespero de Ngola Hari era evidente. Ele era desrespeitado em todos os cantos e não controlava mais os soldados que comandava. A carta descrevia um incidente em que seus carregadores abandonaram de repente suas responsabilidades, declarando descaradamente que não estavam mais interessados em procurar por Jinga ou participar da guerra contra ela. Acrescentando um tremendo insulto ao prejuízo, eles o chamaram de cachorro. [67] Como havia feito antes, Ngola Hari ameaçava deixar Ndongo e se mudar para Luanda ou Lembo.

Em resposta, Azevedo mandou tropas para a batalha contra os sobas de Matamba, que eram conhecidos por abrigar os chefes que haviam fugido de Ndongo para evitar o pagamento de tributo a Ngola Hari e a guerra contra Jinga. Embora os partidários de Jinga tenham se organizado e lutado bravamente, o lado português venceu, destroçando vários acampamentos, capturando três sobas poderosos e forçando vários outros a jurar vassalagem a Azevedo. [68]

As operações portuguesas em Matamba ajudaram muito a desvendar a estratégia de Jinga. Em primeiro lugar, elas frustraram ainda mais suas esperanças de unir forças com o mais poderoso dos líderes imbangalas, Kassanje. Ele atraíra uma grande quantidade de refugiados ambundos, e o número de seus arqueiros foi estimado em mais de oitenta mil. Ele rejeitara as tentativas iniciais de aproximação de Jinga, matando mais de nove dos emissários que ela lhe enviou. [69] E depois foi expulso pelas incursões portuguesas. Quando soube dos planos portugueses para invadir seu quilombo, Kassanje fugiu para a vizinha província de Wandu, no Congo, recentemente desocupada por seu próprio governante. De Wandu, vangloriou-se de que estava pronto para enviar aos portugueses o gado e os escravos que trouxera para a capital do Congo — em troca de bens comerciais, pólvora, armas e munições. [70] Se Kassanje tivesse obtido sucesso, ele se tornaria a força política africana dominante na região, representando um desafio aos portugueses e, possivelmente, superando Jinga.

Enquanto esses eventos se desenrolavam, Jinga mantinha sua relação com muitos dos sobas que se recusavam a obedecer a Ngola Hari. Essas alianças garantiam que permanecesse bloqueada a rota de comércio de escravos entre Ambaca e pontos a leste até Kisos, localizados na fronteira com as terras de Ndala Kisuba. As incursões portuguesas em Matamba enfraqueceram a determinação de muitos sobas de Ndongo, que fugiram e se ligaram a sobas do interior de Matamba e das terras de Ndala Kisuba. Jinga continuava com suas tentativas de reunir uma coalizão mais ampla, às vezes chegando a ameaçar cortar a cabeça de um soba se ele se recusasse a aderir. Ela enviou mensageiros aos três líderes imbangalas cujos acampamentos estavam localizados em torno de Ndongo, mas essas tentativas fracassaram. [71] Sua esperança de uma aliança com o imbangala Kassanje não dera em nada, e Kasa voltara-se contra ela novamente: ele matou os dois makunges que ela enviou e fugiu para Tunda. Kalunga, outro líder imbangala que estava em Haku — uma região na qual Jinga contava com algum apoio —, também se recusou a unir-se a ela e mudou-se para Libelo.

No início de maio de 1629, Jinga já encontrara alguns locais seguros para seus acampamentos de guerra nas fronteiras das terras do soba Ndala Kisuba, perto de Matamba, onde três de seus irmãos a apoiavam e havia muitos de seus partidários. A sobrevivência de Jinga dependia dos alimentos, do gado e de outros suprimentos fornecidos por vários sobas poderosos de Ndongo. [72] Ela também tinha apoio de outro irmão de Ndala Kisuba, cujas terras ficavam na fronteira com Ngangela, a sudeste de Matamba. [73] Jinga sabia que o exército português recrutara muitos macotas de Ndongo para forçar Ndala Kisuba a enviar seu exército para encontrá-la ou enfrentar uma invasão das forças portuguesas. Os portugueses também ameaçavam as tropas de Ndongo com a perda de suas posições se não fornecessem informações sobre o paradeiro dela. Não obstante, a fidelidade a Jinga continuava forte; muitos dos sobas lhe haviam jurado lealdade e temiam morrer imediatamente se revelassem sua localização. [74] Assim, embora alguns enfrentassem castigos dos portugueses, outros desafiaram a captura e viajaram de Ndongo para o grande acampamento que Jinga havia construído em Ngangela para levar-lhe suprimentos. [75] O exército português, composto por cem mosqueteiros, alguns cavaleiros e um exército de soldados africanos, perseguia Jinga dia e noite, deixando um rastro de destruição.

A grande fuga

Diante da sombria realidade, Jinga foi forçada a voltar à guerrilha. Na última semana de maio de 1629, mudou seu acampamento de guerra das terras de Ndala Kisuba para uma área muito além de Malemba, na região de Ngangela. Ela não conseguira livrar-se de seus perseguidores, mas a paisagem acidentada dessa região remota representava um grande obstáculo para eles. De acordo com o relato que Fernão de Sousa fez desses eventos, quando o exército português topou pela primeira vez com o acampamento dela, em 25 de maio de 1629, os vigias, arqueiros de Jinga, escaparam com sua rainha correndo até um precipício rochoso que lhes oferecia proteção. Uma pequena entrada para o precipício permitia que apenas uma pessoa de cada vez passasse rastejando. Chegava-se a ela atravessando uma ravina profunda tão traiçoeira que muitos soldados portugueses caíram e morreram tentando chegar ao outro lado. O destemor, a habilidade militar e o conhecimento do ambiente de Jinga destacaram-se durante essa fuga penosa. Os soldados portugueses a perseguiram por cerca de cinco quilômetros, mas não conseguiram recuperar o atraso — a passagem estreita fez com que ela ficasse um passo à frente deles. Jinga conseguiu atravessar ravinas e rios perigosos que entravaram os soldados que a seguiam, e estava protegida por atiradores habilidosos na retaguarda. [76]

Porém, ela sabia que não estava segura. Em 26 de maio, novas forças, das quais faziam parte sessenta mosqueteiros, chegaram à área, depois de atravessar quatro rios e sete ravinas para encontrá-la. Quase a alcançaram: passaram a noite de 27 de maio no próprio acampamento que Jinga ocupara na noite anterior. Àquela altura, ela não se atrevia a permanecer em um local por muito tempo.

Ao atravessar um precipício estreito, Jinga foi avistada por alguns soldados ambundos do exército português. Na pressa de encurralá-la, cinco deles correram para a borda, perderam o equilíbrio e caíram no precipício, tendo seus corpos despedaçados durante a queda. Para proteger Jinga, várias centenas de seus soldados a cercaram, fazendo uma parede. Quando estavam discutindo qual o melhor método para capturá-la, os soldados que a perseguiam testemunharam um espetáculo espantoso. Jinga, então uma guerreira experiente de quase cinquenta anos, agarrou o que parecia ser uma corda (talvez fosse uma das trepadeiras fortes que cresciam nas superfícies rochosas) no alto do precipício e desceu por ela até uma ravina onde gente sua a esperava. O precipício que Jinga desceu era supostamente tão alto que, para alguém que estivesse no topo, as vozes das pessoas que estavam embaixo eram inaudíveis. Não temos como saber como ela planejou isso, mas Jinga pousou no meio de uma multidão de pessoas, garantindo sua própria sobrevivência e a dos duzentos soldados (de um total estimado em quinhentos) que haviam feito um cordão ao redor dela. [77] Jinga se afastou sem ferimentos.

Após essa façanha, a trégua de seus perseguidores portugueses, se houve, foi de curta duração. O capitão português mandou imediatamente que os soldados ambundos tirassem os sapatos e descessem por cordas atrás dela. Eles capturaram trezentos dos soldados restantes de Jinga que tinham conseguido escapar durante a primeira batalha no quilombo. As revelações de alguns sobas e kimbares capturados dão uma ideia do estado de espírito de Jinga e de seu pequeno grupo de adeptos. Após intenso interrogatório, eles relataram que ela estava inicialmente inclinada a render-se, quando reconheceu a gravidade de sua situação. Foram os kimbares , que haviam fugido dos portugueses para se juntarem a ela, que a encorajaram, prometendo que “onde ela morresse eles também morreriam”. [78]

O apoio incansável deles deve ter estimulado a confiança de Jinga. Os portugueses não tinham entusiastas desse tipo. Percebendo que suas tropas não podiam imitar os feitos de Jinga, o capitão português enviou alguns soldados para procurar uma rota alternativa. Quando eles finalmente chegaram a uma colina menos intimidante, ela já havia tomado a distância de mais de um dia de seus perseguidores.

Depois de passar alguns dias inspecionando as aldeias pelas quais Jinga passara, o capitão concluiu que era inútil continuar a persegui-la e cancelou a busca. Além disso, ela tinha apenas cem soldados em sua defesa. Estava convencido de que não seria capaz de sobreviver por muito tempo num lugar onde não era conhecida e onde os residentes tinham a fama de canibais. Nas operações de limpeza realizadas no caminho de volta para Ndongo, os soldados portugueses encontraram armas, pólvora, munições e roupas que as tropas e os carregadores de Jinga haviam deixado pelo caminho. [79] Ela obviamente encontrara pouca dificuldade para comprar armas, o que levou Sousa a empreender uma investigação sobre a administração dos suprimentos militares nos fortes e impor uma proibição de venda de armas aos africanos. [80]

Embora Jinga tivesse escapado de suas mãos, seus perseguidores conseguiram encontrar o acampamento em Malemba para o qual suas irmãs, outros parentes e conselheiros haviam se mudado. No acampamento estavam também vários prisioneiros portugueses que ela capturara, bem como um grande número de sobas e macotas. O exército português montou um ataque surpresa ao acampamento ao amanhecer. Obedecendo à última ordem de Jinga de lutar até o fim, os defensores mostraram uma resistência valente e sangrenta, mas foram superados pela potência de fogo do inimigo. Os soldados portugueses capturaram várias pessoas importantes, entre elas, as irmãs de Jinga, Kambu e Funji. [81]

Com Jinga em fuga e pelo menos temporariamente fora do quadro, Fernão de Sousa começou a pautar o governo de Ngola Hari de uma maneira que não havia feito antes. Mandou que ele começasse imediatamente a construir assentamentos em dois lugares de Matamba, onde os reis de Ndongo haviam instalado anteriormente suas cortes e onde ele não conseguira até então impor seu mando. Sousa também aconselhou-o a construir um assentamento nas terras de Ndala Kisuba, onde Jinga encontrara uma recepção calorosa e exigir que os sobas da região mandassem de volta os refugiados de Ndongo que estavam lá. Para estabelecer-se como senhor e garantidor de segurança, Sousa instruiu Ngola Hari a enviar presentes aos líderes das regiões vizinhas em que os reis de Ndongo haviam tido vassalos. Por fim, o governador mandou Ngola Hari abrir as rotas de comércio e as feiras de escravos.

Antes mesmo de ter notícias de Ngola Hari, Ndala Kisuba enviou-lhe emissários com presentes e jurou obediência a ele e aos portugueses. Não foi o único soba a fazê-lo, depois que ficaram sabendo que os adeptos de Jinga não seriam punidos por ter tomado o partido dela. Os sobas foram instados a pagar os cem escravos de tributo que não tinham pagado no ano anterior e lembrados da obrigação de prover Ngola Hari com homens e suprimentos para manter a segurança do reino. Em junho de 1629, com Jinga fora do caminho, Ngola Hari estava tão confiante em sua posição de rei que prometeu abrir as feiras de escravos e coletar tributo dos sobas. [82]

Embora o paradeiro de Jinga fosse desconhecido, suas irmãs eram agora cativas que poderiam ser usadas para fins políticos. As decisões que os portugueses tomaram a respeito dessas cativas influenciariam muitas das escolhas que Jinga faria nas décadas subsequentes. Após a captura, Kambu, Funji e sua tia Kiloge, bem como onze sobas e macotas, foram levados para Luanda através de Ndongo e foram exibidas nuas ao longo do caminho. Ngola Hari enviou uma mensagem confessando que era “escravo” de Kambu e observando que, embora não fosse visitá-las, queria que aceitassem as roupas e os presentes que enviava. Kambu e Funji foram tão inflexíveis quanto Jinga em relação a suas reivindicações ao reino e permaneceram dedicadas à causa dela. Elas recusaram os presentes, dizendo aos mensageiros que jamais lhe obedeceriam; enquanto estivessem vivas, proclamaram, o reino era delas por direito. [83]

Fernão de Sousa, no entanto, considerou a marcha dos cativos para Luanda o palco perfeito para encenar seu sucesso militar sobre Jinga. Quando os prisioneiros chegaram, em julho de 1629, fez com que as irmãs passassem por uma variação da cerimônia de vassalagem que normalmente era imposta aos sobas conquistados, mas à qual Jinga nunca fora submetida. Ao se preparar para encontrá-las, organizou uma cerimônia semelhante àquelas que os governadores anteriores haviam realizado para a realeza africana. Combinou com o capitão da guarda da residência do governador que as prisioneiras nuas fossem levadas a uma audiência pública. Nas palavras dele: “Eu as recebi sentado numa cadeira cujos braços estavam cobertos de veludo carmesim, encostada a uma parede da antecâmara, onde estavam as armas, com minha equipe militar, uma corrente e uma espada de ouro, vestido de marrom com um cinto pequeno, e encostados na parede estavam mais pessoas e capitães da cidade”. [84] Quando o grupo chegou, Sousa levantou-se ligeiramente da cadeira e abriu os braços como se quisesse abraçá-las. Ordenou então que pusessem um tapete para que elas se sentassem, e através de um intérprete, que estava ajoelhado, disse-lhes que estava contente em recebê-las e que desejava que tivessem vindo em circunstâncias diferentes, com a irmã delas. Ele tentou acalmá-las. Não deveriam ficar tristes, pois tiveram sorte porque Deus lhes mostrara boa fortuna, e o rei de Portugal lhes mostraria misericórdia. No final de seu discurso, o governador ordenou que se vestissem e as enviou para a casa de dona Ana da Silva, a mesma mulher que hospedara Jinga e se tornara sua madrinha quando foi batizada, em 1622. O espetáculo tornou-se ainda mais humilhante quando Sousa se levantou de sua cadeira, deixando todos os prisioneiros deitados no chão “em pele descoberta”, e se virou para felicitar o guarda delas, capitão Domingos Lopes de Sequeira, louvando-o por agir “com valentia”. [85]

Após meses de lavagem cerebral intensa, Kambu e Funji finalmente concordaram em ser batizadas. O batismo, que ocorreu na igreja oficial, lembrou a cerimônia de Jinga anos antes, com toda a “nobreza da terra” presente para testemunhar o evento. Fernão de Sousa foi o padrinho, e duas proeminentes “senhoras de Luanda” serviram de madrinhas. Funji, a mais velha das duas irmãs, recebeu o nome de Graça, e Kambu ganhou o nome de Bárbara. Após a cerimônia, o governador manteve as duas irmãs reféns em Luanda enquanto esperava a orientação das autoridades de Portugal sobre o que fazer com elas. [86]

Fernão de Sousa também estava esperando por uma informação definitiva sobre o paradeiro de Jinga. Recentemente, haviam chegado relatos de que ela não fora comida por canibais ou morta por animais selvagens, mas, em vez disso, havia atravessado o rio Kwango e se juntado ao imbangala Kassanje. Dois ambundos, Alexandre Ladino e Manuel de Nóbrega, foram enviados do forte de Ambaca para visitar um soba cujas terras margeavam o Kwango. A ordem era irem diretamente ao quilombo de Kassanje e verificar se Jinga realmente havia se associado ao poderoso imbangala. Os dois devem ter chegado logo depois que Jinga atravessou o rio, pois conseguiram coletar detalhes sobre seus movimentos com alguns sobas do lugar. Os detalhes que obtiveram alarmaram-nos quando perceberam que Jinga se unira temporariamente a Kasanje e jurara continuar a resistência.

Depois de sua fuga espetacular no precipício, Jinga concluíra que o pequeno bando de seguidores que ainda estava com ela não conseguiria protegê-la da gente que os portugueses haviam subornado para expulsá-la de suas terras. Ela continuou sua marcha mais para o leste, mas, quando soube que Sousa havia retirado seus soldados, voltou para Malemba, onde começou a construir um novo acampamento no mesmo lugar em que os portugueses haviam capturado suas irmãs. [87] Dali, enviou uma mensagem desesperada ao imbangala Kassanje, cujo acampamento ficava do outro lado do rio Kwango, e pediu-lhe refúgio dos portugueses. Kassanje, que anteriormente se recusara a colaborar com Jinga e até matara os mensageiros dela, decidiu ajudá-la dessa vez.

Ajudar era uma coisa, mas confiar era outra. Kassanje não confiava em Jinga, mas acreditava que, ao subordiná-la, não só se livraria de uma rival feroz como aumentaria seu prestígio. Além disso, Jinga traria consigo muitos partidários ambundos, o que aumentaria o número de pessoas sob seu controle.

Mas Kassanje não estava interessado em ajudar de graça. Ele disse a Jinga que só a aceitaria em seu acampamento com a condição de que concordasse em se tornar sua esposa e dispor de seu lunga (o grande sino militar levado para a guerra pelos capitães militares ambundos). Deixou claro para Jinga que ele mandaria em seu quilombo: não queria dois chefes em seu acampamento. [88]

Kassanje talvez tivesse pouca expectativa de que Jinga aceitasse sua proposta, já que ela tinha a reputação de ser uma mulher poderosa e dominante — uma fêmea alfa, em termos modernos. Tinha vários concubinos e valorizava sua posição de guerreira formidável, representada pelo próprio lunga . Esse grande sino era o símbolo precioso da autoridade militar. Com certeza, Jinga não concordaria em assumir o papel de esposa de um capitão dos imbangalas, sem poder participar de guerras e obrigada a abster-se de todos os contatos sexuais até que seu marido voltasse da batalha. Uma dama de companhia que acompanhava Jinga desde que ela fugira de Ndongo estava presente quando ela recebeu a primeira resposta afirmativa e as condições de Kassanje. Mais tarde, ela contou a Alexandre Ladino, um dos ambundos enviados pelos portugueses para coletar informações sobre o paradeiro da rainha, que Jinga não hesitou quando recebeu a resposta de Kassanje. Aceitou seus termos sem questionar, e, quando ele chegou para encontrá-la em sua canoa, despediu-se de seus seguidores restantes, jogou o lunga no mato e atravessou o rio com Kassanje, acompanhada de suas ajudantes. [89] Enquanto Jinga atravessava o rio Kwango, outra ajudante lhe avisou da captura de suas irmãs. [90]

Os partidários que haviam permanecido com ela até o momento em que partiu com Kassanje se dirigiram com relutância para Matamba ou para as terras de Ndala Kisuba e outros sobas, armados com o material de guerra restante e esperando para ver o que aconteceria com as irmãs de Jinga. Muitos deles, desanimados, como vários sobas do leste de Ndongo, se recusaram a voltar para Ndongo e viver sob o reinado de Ngola Hari. Até mesmo o tendala (principal chefe administrativo) de Ngola Hari se recusou a obedecer-lhe, estabelecendo-se com seu povo numa área próxima das ilhas Kindonga. [91]


Giovanni Antonio Cavazzi da Montecuccolo, “Missione evangelica nel Regno de Congo” (1668), v. A, livro 4, quarta página não numerada após a p. 32. Manuscritos Araldi, Modena, Itália. Fotografia: Vincenzo Negro.

Uma sacerdotisa realizando um ritual (segunda a partir da esquerda ) e uma assistente carregando uma misete (terceira a partir da direita ). Antonio Cavazzi, c. 1668.

A luta contínua de Ngola Hari

Apesar de estar em lugar remoto, Jinga nunca se afastava da mente de Fernão de Sousa. O governador percebeu que os ambundos estavam cada vez mais ligados a Jinga, bem como a suas irmãs cativas. Embora Ngola Hari se permitisse durante um tempo acreditar que se encontrava seguro em sua posição de rei graças ao planejamento estratégico de Sousa, a presença de Jinga continuava a ter um impacto devastador sobre ele. Ainda não conseguia impor sua vontade aos sobas que haviam retornado a Ndongo sem apelar para a ajuda militar portuguesa; mesmo aqueles que lhe aceitavam de má vontade estavam sujeitos a ser privados de suas posições. Alguns dos que retornaram só pagavam tributo quando eram obrigados a isso, mas muitos tinham muito pouco para entregar. Durante a guerra, o meio ambiente fora dizimado; os soldados haviam cortado palmeiras e confiscado gado, galinhas, óleo de palma e porcos, que compunham o tributo esperado. A população também fora profundamente afetada. As tropas portuguesas haviam capturado muitos de seus membros jovens e saudáveis e os levaram para Luanda, onde foram escravizados ou vendidos para o tráfico negreiro do Atlântico. Isso deixou poucos jovens para Ngola Hari enviar como tributo ao rei português. Muitos sobas que eram forçados a pagar simplesmente se viraram com o que tinham, enviando cativos de oitenta anos que chegaram a Luanda mortos ou tão doentes que não tinham valor no mercado. Outros sobas que permaneceram nos acampamentos de guerra na fronteira oriental de Ndongo se recusaram a enviar qualquer tributo e se refugiavam com sua gente na floresta quando o exército vinha atrás deles. Alguns pegaram a trilha para o rio Kwango na esperança de encontrar-se com Jinga, enquanto outros simplesmente desapareciam no mato. [92]

Essa situação agravou-se porque, apesar de Sousa ter convidado imbangalas como Kasa a retornar às terras de onde tinham sido expulsos e tornar-se vassalos (convites que alguns acabariam aceitando), Jinga tinha simpatizantes nas regiões vizinhas, como Mbwila, Kissama e Matamba, que continuavam desobedecendo ao governador. Sobas e outros representantes locais dessas regiões contestavam continuamente os tributos impostos pela autoridade portuguesa, evitavam participar de cerimônias de vassalagem e não se comunicavam com Luanda. [93]

Quando Fernão de Sousa chegou ao fim de seu mandato de governador, Kambu e Funji permaneciam reféns em Luanda. Nos anos seguintes, Jinga concentraria sua atenção na obtenção da liberdade de suas irmãs, ao mesmo tempo que dificultaria as coisas para Ngola Hari governar. Embora ele retivesse o título de rei, o verdadeiro futuro político da região estava com Jinga, que em breve abriria um novo capítulo de sua vida.