Após a morte de Jinga, sua memória continuou viva nas histórias que se contavam sobre ela. Essas histórias desenvolveram-se de maneiras muito diferentes nas tradições da Europa em comparação com as da África e das Américas, como ilustram dois poemas contrastantes sobre Jinga.
O primeiro poema foi escrito por Antonio Cavazzi, o missionário capuchinho que morou na corte de Jinga nos últimos anos de sua vida. Ele foi incluído na versão manuscrita do livro de Cavazzi de 1687, Istorica Descrizione de’ tre’ regni Congo, Matamba et Angola [Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola]. Porém, o poema não fez parte da versão publicada e permaneceu escondido por mais de três séculos no manuscrito inédito que Cavazzi terminou entre 1666 e 1668, dois anos após a morte de Jinga. [1]
Apesar de Cavazzi ter testemunhado a conversão de Jinga ao cristianismo e estar presente em seu leito de morte, ele nunca se convenceu da sinceridade dela e, com efeito, em seu poema, apresentava-a ao lado de mulheres, como Medeia, que ganharam notoriedade pelo suposto uso de magia negra, pela astúcia e crueldade. Para Cavazzi, Jinga superou todas elas porque enganou o céu, roubando-o de sua alma:
Sob este pano três vezes dobrado
Neste túmulo escuro que vês
Jinga, que se fez Rainha de Dongo e Matamba,
Jaz enterrada, um cadáver seco
Neste túmulo escuro que vês
[...]
Aqui jaz aquela que viveu para morrer
Aqui jaz aquela que morta vive
Neste túmulo escuro em que se escondeu.
[...]
Por Agripina, Roma rebelou-se
Por Helena, a Grécia rebelou-se
Por Uxodonia, a Alemanha rebelou-se
Por Hécuba, a Espanha rebelou-se
Mas a Etiópia não se rebelou por Jinga
Em vez disso, Jinga transtornou, destruiu e arruinou a Etiópia.
Jinga na morte
roubou do tesouro do Céu
Neste túmulo
Seu corpo está trancado
Portanto, podemos cantar uma ladra muito esperta
Uma ladra muito esperta roubou do tesouro do Céu. [2]
Pouco mais de três séculos depois que Cavazzi escreveu esse poema, a poeta e jornalista afro-cubana de ascendência iorubá Georgina Herrera escreveu um poema muito diferente sobre Jinga. Herrera ressuscitou em linguagem poética uma Jinga muito distante da construção de Cavazzi. Em seu poema de 1978, “Canto de amor e respeito para dona Ana de Sousa”, Jinga torna-se a “santa dama e rainha”, bem como a “mãe de todos os primórdios”. Herrera reivindica Jinga, santifica sua memória na diáspora africana e traz vida e legitimidade para ela, superando a separação que Cavazzi interpusera entre a governante e a “mãe África”:
Oh! Dona Ana, avó
de ira e bondade. Tantos
anos de batalha contra o inimigo
[...]
fazem de você uma mulher inimitável.
É lindo fechar meus olhos, olhar
para você ao longo dos séculos
e circunstâncias, falar
com o seu povo [...] [3]
O poema de Herrera, publicado três anos depois da Primeira Conferência Mundial das Mulheres promovida pelas Nações Unidas em 1975, não só falava para as mulheres da diáspora africana como também reivindicava Jinga para todas as mulheres. Essa Jinga saltou do túmulo escuro em que Cavazzi a encaixotou para ocupar seu lugar de figura histórica notável.
Essa recuperação era extremamente necessária porque, ao longo dos séculos, a memória de Jinga ficou cativa da versão de sua história com que os missionários Antonio da Gaeta e Antonio Cavazzi alimentaram o público europeu. Esses dois homens, cuja legitimidade nunca foi questionada, justamente por terem vivido na corte de Jinga durante seus últimos anos, tiveram muito a ver com a imagem de Jinga que chegou aos europeus. Eles coletaram tradições orais enquanto foram seus confessores e conselheiros e pregaram para seu povo. Eles registraram os diversos elementos contraditórios que Jinga combinou de forma criativa para garantir sua sobrevivência política, cultural, espiritual e física. As cartas e os relatórios privados que enviaram ao Vaticano compuseram o substrato do relato biográfico, histórico e psicológico da história de Jinga. Eles e seus editores no Vaticano moldaram a história que chegou ao público.
O autor da primeira biografia publicada de Jinga foi Antonio da Gaeta, o primeiro capuchinho que pregou para ela em Matamba e que reivindicou o sucesso de sua conversão ao cristianismo. A biografia apareceu em 1669, apenas seis anos após a morte de Jinga, com o título laudatório de La Meravigliosa Conversione alla Santa Fede di Cristo della Regina Singa e del suo Regno di Matamba nell’Africa meridionale [A maravilhosa conversão à santa fé de Cristo da rainha Jinga e de seu reino de Matamba na África Meridional]. A obra fazia elogios silenciosos a Jinga, referindo-se a ela como uma “dama altamente nobre”. [4] Gaeta punha Jinga na companhia de todas as mulheres da Antiguidade que se tornaram famosas ou infames por sua capacidade de ganhar renome em um mundo masculino. A lista incluía, entre outras, Minerva, Artemísia, Semíramis, Hipólita, Cleópatra, santa Catarina, Maria Ana de Áustria e santa Apolônia. [5] Na biografia de Gaeta, o que se destacava era a incrível façanha dos missionários que conseguiram penetrar no coração dessa “amazona bélica”. [6] A Divina Providência usara Gaeta como o arcanjo conquistador que subverteu o diabo e transformou Jinga, uma “idólatra pagã” monstruosa, imersa em “rituais e cerimônias diabólicas”, numa “cristã devota”. [7]
Uma segunda biografia de Jinga apareceu como parte do livro de Cavazzi, publicado em 1687. O manuscrito passou por várias revisões nas mãos do comitê editorial do Vaticano, que excluiu o poema e removeu outras referências fantásticas que Cavazzi incluíra. A versão impressa trazia informações de cartas escritas às autoridades do Vaticano por contemporâneos de Cavazzi. [8] Embora os editores deixassem de fora o poema em que ele punia Jinga por ousar roubar sua alma do Céu e declarava que seu destino era jazer para sempre escondida em seu “túmulo escuro”, o livro que ele e seus manipuladores publicaram acabou por libertar Jinga dessa tumba.
As publicações sobre Jinga que apareceram após os livros de Gaeta e Cavazzi elogiaram-na fracamente por ser um “gênio selvagem” ou por ser uma convertida relutante. Os escritores concentraram-se principalmente na barbárie de Jinga, sua natureza sanguinária, sexualidade desenfreada e canibalismo. Escritores holandeses e franceses fizeram traduções do livro de Cavazzi que apresentavam apenas aspectos selecionados da vida de Jinga. O dominicano francês Jean-Baptiste Labat, um irmão da Ordem Dominicana que viajara às Índias Ocidentais para fazer trabalho missionário, publicou sua tradução francesa ampliada de Cavazzi em 1732 para destacar o sucesso das missões católicas entre os povos primitivos. Para ele, a história de Jinga ilustrava o poder do Estado europeu e da Igreja católica de colonizar e espalhar o cristianismo pelas terras pagãs. Desse modo, Labat transformou Jinga em uma súdita colonial conquistada que se subordinou às armas e à Igreja europeias. [9]
Autores posteriores que escreveram em diferentes épocas e em diferentes gêneros produziram as próprias versões da história de Jinga. Ignorando o retrato feito por Gaeta de uma líder que a Igreja finalmente convertera, ou o retrato menos elogioso, mas ainda complexo, feito por Cavazzi de uma líder política astuta, escritores franceses, holandeses e alemães dos séculos XVIII e XIX basearam-se em grande medida na versão adulterada que Labat fez de Cavazzi, bem como em um livro de Olfert Dapper publicado em 1668, que descrevia povos e sociedades africanos com base nos relatórios de comerciantes e funcionários holandeses. [10] Na época, a única publicação disponível em português sobre Jinga era um panfleto de oito páginas impresso em 1749. Mas publicações portuguesas sobre Jinga continuaram a aparecer até o século XX . [11] O longo trabalho do historiador e soldado português Antônio de Oliveira de Cadornega, escrito entre 1670 e 1681 e que contém muitos detalhes sobre as relações militares e diplomáticas de Jinga com os portugueses, só foi impresso em 1940. [12]
A tradução de Cavazzi feita por Labat forneceu a base que os intelectuais europeus do século XVIII e XIX usaram para criar suas próprias versões da vida de Jinga. Embora alguns escritores ligassem-na às fábulas sobre monarcas africanos antropófagos e outras histórias estranhas incluídas nos diários de viagem e geografias históricas populares que ganharam ampla circulação na Europa em meados do século XVIII , eles também criaram uma Jinga que mostrava todas as fraquezas de um líder complexo. [13] Zingha reine d’Angola [Zingha, rainha de Angola], publicado em 1769 por Jean-Louis Castilhon, destaca-se como a primeira obra de ficção que tem Jinga como personagem. A Jinga de Castilhon é, por natureza, cruel, mas não canibal; é seu desejo de vingança e de dominar que a faz superar o horror de consumir carne humana e tornar-se uma imbangala. [14] Ela é uma líder inteligente o suficiente para formular estratégias contra as tentativas portuguesas de tomar suas terras. No final, ela se arrepende e é salva pela conversão, apesar de seus crimes. [15]
O grande interesse dos escritores europeus pela vida de Jinga era para usá-la como representante do “outro” africano. [16] Foi como rainha canibal que Jinga dominou os romances libertinos publicados nos anos anteriores à Revolução Francesa. Nesse período, os escritores rejeitaram a hierarquia estabelecida da Igreja e da política e exploraram, entre outras coisas, o mundo do erotismo. Eles criaram seus próprios detalhes lascivos e sangrentos a respeito de Jinga, usando imagens de pintores europeus que a retratavam como uma figura erótica. A filosofia na alcova do Marquês de Sade (1795) usava o exemplo de Jinga para ilustrar a tendência das mulheres de serem conduzidas por sua sexualidade a cometer atos horríveis. Sua “Zingua, Rainha de Angola”, cuja história de vida ele alegava ter conhecido graças a “uma fonte missionária”, era apresentada aos leitores como “a mais cruel das mulheres”, que exercia domínio total sobre os homens. Essa rainha, escreveu ele, “matava seus amantes assim que conseguia o que queria deles”. O espírito maligno e a disposição sexual de Jinga eram de tal ordem que ela tratava os homens como os romanos tratavam seus gladiadores. Como os romanos, ela fazia os guerreiros lutarem até a morte e o “prêmio do vencedor” não era dinheiro ou liberdade, mas ela mesma. Sade criou uma Jinga que não tinha respeito pela vida ordenada, apenas um desejo de prazer. Ela chegou a ponto de baixar uma lei que promovia a prostituição e não tinha problema em moer num almofariz “toda mulher grávida com menos de trinta anos”. [17] Essa Jinga confirmava noções europeias do outro exótico. [18] Quando Jinga apareceu em 1817 numa resenha de The Histories of the Discoveries of Africa [As histórias das descobertas da África] publicada na London Quarterly Review , o resenhista, bem familiarizado com o livro de Cavazzi, e também com outras publicações, aceitou a narrativa existente sobre Jinga. Ele concluía que ela era “um dos monstros mais horríveis que já apareceram na face da Terra em forma feminina”. [19]
Essa imagem de Jinga como um ícone do desvio sexual, do mal e da brutalidade não se limitava aos escritores libertinos franceses nem aos resenhistas ingleses. O filósofo G.W.F. Hegel também propagou um retrato semelhante. Em palestras feitas na Universidade de Berlim no início do século XIX , ele usou os retratos de Jinga conhecidos nos círculos religiosos e literários europeus para ilustrar que a África estava “fora da história”. Para Hegel, Jinga (cujo nome ele escolheu não usar, talvez sabendo que um nome marca a pessoa como sujeito da história), ao lado de outros líderes africanos, representava uma aberração da história. Ela governou um “Estado feminino”, onde cenas sangrentas prevaleciam enquanto homens adultos e crianças do sexo masculino eram rotineiramente massacrados. Além disso, os homens que sobreviviam não tinham poder como homens, uma vez que as mulheres guerreiras (Hegel se refere a elas como “as fúrias”) que cercavam Jinga usavam os cativos masculinos como amantes. Essas mulheres eram tão antinaturais que não cultivavam nem amamentavam nada, destruindo terras colonizadas e indo para o campo para dar à luz os bebês que concebiam. O ódio delas aos homens era tamanho que abandonavam os bebês do sexo masculino no campo, deixando-os morrer. Felizmente, concluía Hegel, esse Estado desapareceu. [20]
Publicado em 1834, três anos antes da obra de Hegel, um capítulo sobre a rainha Jinga apareceu no livro Les femmes célebres de tous les pays [As mulheres célebres de todos os países], de Laure Junot, duquesa de Abrantès, e Joseph Straszewicz, que a retratava como o paradigma da luxúria e da crueldade e contribuiu para uma imagem de Jinga que alimentava as fantasias sexuais reprimidas da Europa, bem como a imagem emergente do primitivo. [21] Junot colocava Jinga ao lado de gente como “Lady Jane Gray, Maria Letizia Ramolino [mãe de Napoleão Bonaparte], Maria Antonieta e Catarina I da Rússia”, todas mulheres famigeradas em suas épocas. Como observou um resenhista inglês, a autora enfocou essas mulheres para ilustrar “retratos horríveis da natureza humana”. A Jinga de Junot, como a de Hegel, era “uma das mais insaciáveis fúrias do seu período”. Essa Jinga jamais poderia ser a “vovó” amorosa que uma neta da diáspora como Herrera desejava contemplar. [22] Em vez disso, Junot apresentava um demônio sedento de sangue que no funeral do pai matou e consumiu duzentos homens, mulheres e crianças. Essas pessoas inocentes foram mortas pela própria Jinga, que depois bebeu o sangue de uma das vítimas. A imagem de Jinga transmitida por Junot foi amplamente propagada em publicações inglesas. Por exemplo, foram publicados longos trechos e resenhas em revistas como Royal Ladies Magazine , Literary Gazette e The Britannica Magazine . [23]
Décadas após a publicação da obra de Junot, fragmentos de informações distorcidas sobre Jinga continuaram a aparecer em jornais, revistas e periódicos publicados na Europa. Naquela época, ensaístas e panfletistas portugueses e brasileiros competiam para apresentar suas próprias versões de Jinga. Os escritores portugueses tinham vários objetivos. Em particular, queriam corrigir o que denunciaram como “a absurda lenda do missionário Cavazzi”, que dava aos estrangeiros imagens distorcidas das conquistas portuguesas em Angola e do lugar de Jinga nesses acontecimentos. Esses escritores lusófonos estavam ansiosos para mostrar que os autores europeus não tinham conhecimento de nenhum dos relatos das testemunhas oculares portuguesas e, portanto, não podiam apresentar histórias imparciais das atividades portuguesas em Angola naquela época. Apesar das alegações de que estavam corrigindo a história e, assim, recuperando uma imagem menos distorcida de Jinga, o que eles fizeram foi criar suas próprias distorções. Ao longo do século XIX , a imagem de Jinga que os leitores portugueses consumiram conservava muitos dos elementos que a tornaram uma figura atraente para os escritores libertinos franceses. Em uma das versões, ela era pintada como uma “rainha varonil” que tinha prazer em realizar os atos “mais cruéis”, enquanto em outra ela aparece como um canibal “que comia o peito de suas vítimas porque era onde estava o coração”. [24] No século XX , quando as autoridades portuguesas usavam a propaganda colonialista como arma ideológica na tentativa de ampliar e consolidar o Estado português em Angola, Jinga era “uma negra selvagem” que, apesar de possuir um “intelecto indígena superior”, foi finalmente conquistada pelo poder militar português superior e se submeteu voluntariamente ao cristianismo. [25]
As tradições dos angolanos colonizados e africanos escravizados e enviados para as Américas durante a vida de Jinga pintavam uma imagem muito diferente da rainha africana. Em Angola, os livros didáticos portugueses contavam a história de Jinga como uma pagã que acabou por se subordinar aos portugueses, ou apagavam seu nome completamente. Quando os africanos da colônia começaram a luta nacionalista contra o colonialismo português, vozes das áreas rurais que Jinga outrora controlara apresentaram uma versão muito diferente. A história de Jinga que o povo das regiões rurais de Angola de língua quimbundo transmitia oralmente para seus filhos e netos era a de uma governante orgulhosa que conquistara terras, ganhara muitas guerras contra os portugueses e mantivera a independência e as tradições de seu povo. [26]
Essa imagem de Jinga que as tradições orais preservaram assumiu uma nova dinâmica na década de 1960, quando os angolanos passaram a olhar para sua história, a fim de encontrar pontos de referência para sua luta de resistência contra os portugueses. Enfrentando um regime colonial racista e explorador, cujas políticas dividiam os angolanos conforme raça, classe, etnias, regiões e línguas, os descendentes de anciãos ambundos que haviam absorvido as tradições orais sobre a resistência de Jinga trouxeram de volta a Jinga heroica. Nos poemas e histórias revolucionárias que publicaram em fontes ocidentais, utilizados como propaganda para encorajar os jovens angolanos a participarem da luta, puseram o exemplo da resistência de Jinga no centro do palco. A Jinga deles não era a pervertida sexual ou a canibal cruel que enchia as páginas de publicações europeias anteriores. Em vez disso, os angolanos fizeram dela uma heroína revolucionária que unira seu povo numa luta épica contra a agressão portuguesa. Essa Jinga proporcionou o modelo para transformar súditos portugueses colonizados em guerrilheiros revolucionários cujo dever, como o dela, era conquistar a independência de Angola e manter o povo unido. [27]
Desde que conquistou a independência, em 1975, o governo do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) vem promovendo a história e a imagem de Jinga. Além de publicar poemas, livros e histórias sobre ela e a história de Angola durante sua época, o governo começou a transformá-la numa heroína nacional. O novo governo, chefiado por ex-prisioneiros e líderes da resistência, tratou de desfazer o legado colonial que excluíra Jinga dos livros didáticos e exigia que os professores punissem os estudantes que falavam quimbundo, e passou a compartilhar as tradições sobre as façanhas de Jinga que haviam recolhido nas aldeias. Os novos líderes escolheram enraizar a história da nova nação na história do século XVII de Jinga. O primeiro passo para torná-la um símbolo da nação foi exigir que todas as escolas e centros de recrutamento militar usassem uma edição revisada do livro História de Angola , que punha a história da resistência de Jinga no centro da história da nação. [28] Além disso, o governo apoiou a publicação de romances históricos e outras obras sobre Jinga e o período em que ela viveu. [29]
Esse foco no nacionalismo assumiu especial importância devido à sangrenta guerra civil que começou alguns meses antes da independência em 1975 e só terminou oficialmente em 2002. Embora a guerra fosse, em parte, um subproduto da Guerra Fria entre a URSS e os Estados Unidos, ela também foi moldada pelas divisões etnolinguísticas que as políticas coloniais portuguesas haviam estimulado.
Após o fim da guerra civil, as autoridades do governo do MPLA , que haviam usado a história da resistência de Jinga para motivar os jovens guerrilheiros angolanos, apropriaram-se de sua história como símbolo para unificar a nação. Embora outras figuras históricas reconhecidas por sua contribuição para a fundação da nação angolana moderna, Jinga recebeu atenção especial. Em 2003, o governo inaugurou uma estátua monumental dela no largo de Kinaxixe, no centro de Luanda, que tivera papel proeminente na história pré-colonial e colonial de Angola. Durante as guerras portuguesas do século XVII contra Ndongo, o Kinaxixe foi um mercado de escravos, e continuou a ser o local onde os ambundos da zona rural traziam seus produtos para vender. Em 1937, os portugueses fizeram dele um lugar de glória colonial quando as autoridades inauguraram um monumento em homenagem aos mortos portugueses na Primeira Guerra Mundial. Em 1975, o governo do MPLA removeu esse monumento e o substituiu por um enorme veículo militar que simbolizava a vitória sobre os portugueses. Quando a estátua monumental de Jinga substituiu o veículo militar, milhões de angolanos que fugiram do campo durante a guerra civil viviam agora em Luanda. A estátua de Jinga naquele lugar simbólico e reverenciado atraiu os angolanos de todas as origens linguísticas e étnicas, que passaram a considerá-la não só um símbolo de resistência, mas uma mãe severa que nutria seus filhos na nova nação. A estátua de Jinga, localizada no espaço mais limpo da capital, tornou-se um lugar onde, por exemplo, participantes de festas de casamento se reuniam para tirar fotografias. Durante a década em que sua estátua enfeitou o histórico largo de Kinaxixe, Jinga foi verdadeiramente a “Mãe da Nação”, como muitos jovens angolanos de Luanda afirmavam. [30]
Os muitos simpósios, fóruns e encontros internacionais que o governo angolano patrocinou sobre a história angolana reforçaram ainda mais a posição de Jinga como uma figura exemplar do passado angolano com relevância contemporânea. [31] Uma das principais iniciativas do governo foi identificar Jinga como a “mãe da nação angolana moderna”. Essa campanha nacional fez muito para resgatar sua imagem daquela que os escritores europeus haviam perpetuado. Em 2013, quando os angolanos comemoraram o 350o aniversário da morte de Jinga com uma série de exposições e livros em sua homenagem, a imagem de Jinga já havia mudado para a de uma líder proeminente de Angola e do mundo. Ela era uma figura da história, da memória e do mito. Nos colóquios acadêmicos que o governo realizou em Angola e na Europa, as guerras de resistência de Jinga ocuparam espaço igual ao da narrativa de Cavazzi sobre sua conversão. Essa Jinga era uma rainha, “uma mulher em armas que lutou no interior africano em defesa de seu povo”. [32]
O esforço do governo angolano que causou o maior impacto na transformação da condição de Jinga foi a encomenda de um filme, Jinga, rainha de Angola , que estreou em Angola no ano do 350o aniversário. [33] Tendo no papel da heroína a linda atriz angolana Lesliana Pereira, o filme criou uma nova Jinga para uma nova nação angolana e para o mundo. Em vez de uma Jinga sexualizada com um seio exposto, como estava representada numa pintura usada no livro de Castilhon (e que ainda continua a ser a imagem icônica de Jinga), a nova Jinga era uma destemida líder guerrilheira. Vestida com uma tradicional roupa de tecido de casca de árvore, que poderia ser confundida com uma cartucheira, ostentando um penteado ao estilo afro politizado dos anos 1960 e 1970, essa Jinga estava decidida a manter Angola independente. [34]
Jinga também teve um renascimento no Brasil, para onde foram enviados milhões de cativos africanos de Ndongo, Matamba e Congo, escravizados antes, durante e depois de sua vida. Nas fazendas e nas regiões de mineração do nordeste do Brasil, do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e outros lugares, eles fundiram elementos de suas línguas e culturas centro-africanas com tradições brasileiras para desenvolver uma cultura afro-brasileira singular. Os primeiros visitantes do nordeste do Brasil registraram as celebrações seculares e religiosas nessas comunidades escravas. Sua língua, suas práticas religiosas, danças e músicas continham referências a eventos históricos e culturais da África Central da época de Jinga. Com o tempo, essas celebrações, especialmente a eleição de reis e rainhas, passaram a incluir africanos escravizados de outras partes da África que também foram levados para o Brasil. Apesar disso, a contribuição da África Central continuou dominante; por exemplo, o rei e a rainha eleitos durante as festividades sempre foram chamados de rei do Congo e rainha Jinga.
A autora Linda Heywood ao lado da imensa estátua de Jinga, em Luanda, Angola.
No século XX , quando os desfiles e festejos de inspiração centro-africana — lundus, maracatus, cucumbis, congadas, umbandas — estavam a caminho de se tornarem sinônimo de cultura afro-brasileira, a história de Jinga e, em especial, suas guerras contra os portugueses e os reis do Congo, foram o ponto focal de dramas encenados em comunidades de todo o Brasil. Desde a região de Pernambuco, onde durante as celebrações anuais dos cucumbis, a mulher que carregava o título de “Jinga” sentava ao lado do “rei do Congo” e tinha assegurada a veneração da comunidade durante todo o ano, até as apresentações públicas das congadas no início do século XX , onde o embaixador de Jinga tentava obter uma audiência com o “rei do Congo”, mas era impedido de prosseguir devido ao medo que o rei tinha da rainha Jinga, seu nome manteve-se vivo no Brasil. A história de Jinga também foi captada na terminologia da arte marcial da capoeira, onde o termo ginga veio significar os movimentos dissimulados reminiscentes do treinamento que os soldados de Jinga recebiam em preparação para a batalha. No entanto, à medida que o termo evoluiu nos centros urbanos afro-brasileiros empobrecidos, repórteres e autoridades policiais passaram a estigmatizar as ações físicas associadas a esses movimentos como perigosas ou criminosas. [35]
Mas Jinga estava no Brasil para ficar. Nas décadas de meados do século XX , à medida que os países africanos ganhavam sua independência, estudiosos brasileiros procuraram na África as raízes da cultura afro-brasileira. Foi nesse período que a primeira biografia em língua portuguesa de Jinga foi publicada no Brasil. Na década de 2000, Jinga já se tornara a querida dos poetas das escolas de samba do Rio de Janeiro. Eles escreveram canções louvando sua bravura e o que eles interpretaram como promoção dos direitos das mulheres e do poder negro. Os afro-brasileiros lideraram o interesse público pela história de Jinga, acreditando que poderiam apresentar à nação a parte escondida até então de sua identidade. Em 2013, quando o filme angolano Jinga, a Rainha de Angola estreou no Brasil, os afro-brasileiros saudaram seu foco revolucionário, que consideraram ligado à sua vida no Brasil. As mulheres afro-brasileiras, especialmente as pertencentes às escolas de samba, cujas danças, comidas e tradições religiosas demonstravam sua resiliência e independência, viam em Jinga sua heroína. Consideravam-se “herdeiras reais da rainha Nzinga de Angola”. [36]
A apropriação estratégica da vida de Jinga pelo governo angolano para representar a resistência colonial e a unidade nacional foi apenas o primeiro passo na reabilitação que a imagem de Jinga recebeu no último meio século. O interesse no Brasil pelas raízes culturais também trouxe a história de Jinga para a consciência de uma nova geração de afro-brasileiros ansiosos para se reconectar com um passado africano glorioso. Mas o impacto de Jinga também se estendeu a outras populações afrodescendentes das Américas. Em lugares como Cuba, Jamaica e Estados Unidos, o interesse pela história de Jinga gerou uma efusão de poesias, peças de teatro, pinturas e até mesmo um livro infantil. [37] O renascimento cultural de Jinga também atingiu uma plateia global maior. Em 2013, a pedido do governo angolano e com o generoso apoio financeiro da República da Bulgária, a Unesco comemorou o 350o aniversário da morte de Jinga, acrescentando seu perfil à série Mulheres na História Africana. A história em quadrinhos de 56 páginas, destinada ao uso em escolas de ensino fundamental, inclui incidentes importantes da vida de Jinga e uma seção pedagógica sobre temas como “resistência” e “governança por uma mulher”. [38] Além disso, a Unesco acrescentou o nome de Jinga a uma lista de dezenove importantes líderes femininas da África que homenageou até agora.
A ressurreição de Jinga, no entanto, ainda está em andamento. [39] Ela precisa ocupar seu lugar na história popular, ao lado de suas quase contemporâneas Elizabeth I da Inglaterra e Pocahontas, nas fileiras das “mulheres famosas da história”, embora a homenagem da Unesco seja um passo nessa direção. Jinga já não representa o outro, mas uma mulher poderosa, com poucos contemporâneos de igual calibre, que fez o que era necessário para manter a independência de suas terras. Ela serviu de inspiração para o seu povo durante sua vida e para os angolanos e brasileiros, séculos após sua morte. Jinga exige ser apresentada como o ser humano complexo que foi, e receber seu lugar merecido na história mundial.