CAPÍTULO 6

O patrimonialismo mostra a que veio

O liberalismo como racismo de classe

A “NOVA CLASSE média” vem sendo percebida como o fenômeno social, econômico e político brasileiro mais importante da última década. Mas a forma peculiar como este fenômeno é percebido varia muito. Recentemente, publicamos trabalho de pesquisa empírica qualitativa,86 coordenada por mim e realizada em todas as grandes regiões brasileiras, que contraria muitas hipóteses dominantes acerca desta classe, inclusive a própria denominação de “classe média”. É que as “denominações” são muito importantes e espelham uma visão muito específica da realidade e do que nela merece atenção. Muitas vezes os conceitos que guiam a pesquisa e “parecem” neutros e objetivos carregam, na verdade, toda uma concepção de mundo eivada de preconceitos e que predeterminam as conclusões da pesquisa.

Um exemplo disso é a pesquisa coordenada por dois ilustres cientistas políticos brasileiros, Bolívar Lamounier e Amaury de Souza, patrocinada pela Confederação Nacional da Indústria, que resultou na recente publicação A classe média brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade.87 Apesar do título abrangente, o principal tema é a questão da “sustentabilidade” da assim chamada “nova classe média”. No entanto, a pesquisa desses colegas não reserva nenhuma surpresa. Na realidade, temos muito bons motivos para crer que seus resultados e sua interpretação já estavam prontos e acabados mesmo antes de a pesquisa começar. Esse tipo de pesquisa quantitativa com questões estereotipadas que não refletem sobre seus pressupostos serve, antes de tudo, como “legitimação científica” ad hoc de teses políticas extremamente conservadoras, que objetivam veicular e naturalizar uma visão distorcida da sociedade brasileira. A reflexão sobre os pressupostos de dada pesquisa é sempre necessária porque não existe ponto de partida “neutro” na ciência, embora o tipo de pesquisa, como esta feita pelos colegas citados, viva deste tipo de ilusão.

No caso da pesquisa em apreço, a forma como as questões são colocadas e interpretadas é tributária da interpretação liberal que estamos reconstruindo e criticando neste livro. Não existe, que fique bem claro ao leitor para evitar mal-entendidos, nenhum problema com o liberalismo, enquanto doutrina da liberdade econômica e política individual, o qual é o fundamento básico de qualquer regime democrático. Sem as garantias liberais consolidadas constitucionalmente não existe liberdade individual possível. Mas os liberalismos são vários e servem a fins muito distintos. Nosso liberalismo hegemônico, na esfera pública, na grande imprensa conservadora e em boa parte do debate acadêmico é, certamente, uma das interpretações liberais mais mesquinhas, redutoras e superficiais que existem em escala planetária. Se fôssemos completamente sinceros, teríamos que dizer que essa interpretação nada mais é, hoje em dia, que pura “violência simbólica”, sem nenhum aporte interpretativo efetivo e sem qualquer compromisso, seja com a verdade, seja com a dor e o sofrimento que ainda marcam, de modo insofismável, a maior parte da população brasileira.

Por violência simbólica entendemos aqui a ocultação sistemática de todos os conflitos sociais fundamentais que perpassam uma sociedade tão desigual como a brasileira em nome do velho “espantalho” da tradição intelectual e política do liberalismo brasileiro que é a tese do “patrimonialismo”. Na verdade, o que precisa ser dito é que a questão não é apenas a absoluta fragilidade dessa noção velha, gasta e, como vimos acima, sem qualquer poder explicativo. Nem que ela é retirada de contrabando do aparato explicativo weberiano, em que apenas o prestígio deste grande autor é manipulado como forma de garantir “legitimidade científica”.

O que é mesmo fundamental nesse tema e que explica, em última análise, sua permanência nesses últimos oitenta anos, quando o Brasil se transformou de maneira radical mas sua “interpretação” continuou a mesma – um paradoxo evidente para qualquer pessoa inteligente que reflita dois minutos sobre o tema –, é que ele permite legitimar a ideologia mais elitista e mesquinha sob a “aparência” de “crítica social”. Como isso é conseguido? Ora, basta simplificar e eliminar a ambiguidade constitutiva do mercado e do Estado – os dois podem servir tanto para produzir e dividir a riqueza social quanto para concentrá-la na mão de uns poucos – e transformar o mercado no reino idealizado de todas as virtudes (competência, eficiência, razão técnica supostamente no interesse de todos) e o Estado demonizado como reino de todos os vícios (politicagem, ineficiência e corrupção). Essa percepção distorcida, infantil e enviesada da realidade social é a única razão para a permanência desta noção como conceito central da interpretação conservadora do Brasil até hoje dominante.

Como se explica isso? Por que isso acontece? Pensemos juntos, caro leitor. Como, de outro modo, seria possível legitimar um tipo de capitalismo tão voraz e selvagem cujo PIB representa quase 70% em ganhos de capital (lucro e juro) – que beneficiam, antes de tudo, meia dúzia de grandes banqueiros e industriais – e reserva pouco mais de 30% para a massa salarial do restante dos outros quase 200 milhões de brasileiros?88 Nas grandes democracias capitalistas europeias, a relação entre ganhos de capital e massa salarial é inversa à brasileira. A tese do patrimonialismo serve para ocultar um tipo de capitalismo selvagem e voraz – construído para beneficiar uma pequena minoria – e ainda apontar o culpado em outro lugar: no Estado, supostamente o único lugar de todos os vícios sociais.

Na realidade, quase sempre que existe corrupção no Estado há também corruptores no mercado. A corrupção – compreendida como vantagem ilegítima em um contexto de pretensa igualdade – é, aliás, dado constitutivo tanto do mercado quanto do Estado em qualquer lugar do mundo. A fraude é uma marca normal do funcionamento do mercado capitalista sempre que este não seja estritamente regulado. A última crise financeira apenas deixou isso claro como a luz do sol para todos. O mercado financeiro mundial sem regulação estatal usou títulos sem qualquer garantia, “maquiou” incontáveis balanços de empresas e até de países – como na recente crise da Grécia – e tem usado de qualquer expediente que possa garantir maior lucro. Mas a cantilena sobre o patrimonialismo só do Estado e a exaltação da “confiança” (um traço cultural pretensamente apenas norte-americano para nossos cientistas sociais colonizados até o osso) somente do mercado continua sendo repetida à exaustão ao arrepio da realidade.

Minha tese é de que não existe outra saída para o liberalismo conservador brasileiro a não ser repetir o mesmo discurso populista e manipulador da corrupção, supostamente apenas estatal, já que esta foi a forma – que a falsa generalização dos interesses particulares do lucro e do juro fáceis encontrou e construiu cuidadosamente desde os anos 1930 – de encontrar algum eco nos setores populares. Como a compreensão dos mecanismos sociais que constroem a desigualdade e a injustiça social institucionalizada é complexa e incompreensível para a multidão de pessoas que tem que levar sua vida cotidiana, a tese do patrimonialismo e da corrupção apenas estatal resolve toda essa complexidade em uma só tacada – produzindo a ilusão de que se compreende o mundo e as causas das misérias sociais –, ao criar o “culpado” pessoalizado e materializado no Estado. Todos os problemas sociais acontecem devido à corrupção supostamente estatal. Mas o “golpe de mestre” dessa tese é o “ganho afetivo” conseguido ao tornar a “sociedade” – ou seja, nós todos a quem essa ideologia se dirige – tão virtuosa quanto o mercado, expulsando todo o mal em um “outro” bem identificado, uma elite estatal que ninguém define e localiza precisamente. Ela pode ser todos e ninguém. Assim, a tese do patrimonialismo oferece “boa consciência” a todos que podem se imaginar perfeitos e sem mácula, sem participação nenhuma em uma sociedade que humilha, desqualifica e não reconhece grande parte de sua população, já que “todo o mal” já tem endereço certo.

Essa é a única e verdadeira função da tese do patrimonialismo. É uma violência simbólica que “pegou” – graças a intenso trabalho, que inclui toda a mídia dominante que a renova todos os dias – e permite que seus defensores posem de críticos, exibindo um “charminho crítico” (afinal, o combate à corrupção seria da vontade de todos – possibilitando universalizar o tipo mais mesquinho e particular de interesse: a percepção da reprodução social como mera reprodução do mercado). É exatamente isso que dizem os autores textualmente:

“(n)a luta, que é afinal de toda a sociedade brasileira, contra o patrimonialismo, o nepotismo, o desperdício de recursos públicos, de toda uma série de mazelas, enfim, de que se acha impregnada a máquina do Estado”.89

Ora, caro leitor, em qualquer lugar do planeta – e em todo o mundo existe corrupção em todas as esferas sociais – também o combate à corrupção só é conseguido com a melhora dos mecanismos de controle. Qualquer debate sóbrio, consequente e não manipuladamente populista a respeito do combate à corrupção tem que estar vinculado à melhora dos mecanismos institucionais de controle da corrupção do mercado e de seus cartéis. Mas o que interessa à tese do patrimonialismo e aos seus defensores é “dramatizar” a falsa oposição entre mercado divino e Estado diabólico como forma de ocultar as reais distorções de uma sociedade tão desigual quanto a sociedade brasileira.

Assim, o resumo do livro dos autores é pífio: a sustentabilidade da “nova classe média” tem seu maior problema nos entraves de um Estado interventor e potencialmente corrupto. A globalização teria criado as condições de construção, somente nos anos 1990 – ou seja, “coincidentemente” apenas no governo de Fernando Henrique Cardoso – dessa nova classe afluente. E, apesar de essa classe ter crescido precisamente no governo do presidente Lula, é agora que o “estatismo” ameaça a sua existência e seu desenvolvimento. É típico de uma ideologia que, em evidente conflito com o mundo externo, perdeu as condições de validade de se repetir – como uma psicose que perdeu contato com a realidade externa ou um mantra que só faz sentido para quem o pronuncia.

No mundo real, onde as pessoas que existem e levam a vida cotidiana efetivamente vivem, cujos dramas e sonhos foram o material empírico de livro recente acerca do mesmo tema de Lamounier e Souza, a universalização e o enorme crescimento – que ainda é, diga-se de passagem, largamente insuficiente – das políticas sociais do governo Lula são percebidas como ponto fundamental, além das políticas ainda tímidas de microcrédito, para dinamização do mercado interno brasileiro e importantes processos de mobilidade social ascendente para quase todos os nossos entrevistados. Não é de nosso interesse permanecer nessa dimensão amesquinhada do debate político partidário – infelizmente, a única dimensão do debate público no Brasil –, mas tamanha violência à realidade tem que ser denunciada. Na verdade também as políticas sociais do governo Lula são amplamente insuficientes para uma verdadeira mudança estrutural da desigualdade brasileira. Não obstante, o pouco que foi feito – com intensa campanha contrária de diversos setores – obteve resultados inegáveis pela decisão de utilizar uma pequena parte dos recursos do Estado em benefício dos setores populares. A livre ação do mercado, como sempre, só beneficia os já privilegiados.

Mas essa ainda não é toda a história do livro criticado nem do pensamento liberal/conservador brasileiro. Combinado com a cantilena do patrimonialismo só do Estado – melhor seria dizer: do Estado quando este é ocupado pelos inimigos partidários – temos também o “racismo de classe”. Esse é o ponto novo trazido pelos autores à nossa discussão que não estava presente nem em Buarque nem em Faoro e estava apenas implícito em Roberto DaMatta. Assim, o outro perigo que ronda a sustentabilidade e o desenvolvimento futuro da suposta “nova classe média” ou da classe “C” é que faltaria “capital social” a essa classe, o que seria um impeditivo futuro importante na mudança de condições favoráveis ao desenvolvimento econômico. Esse tema é interessante porque demonstra cabalmente que a tese do patrimonialismo se associa, organicamente, ao “racismo de classe”, traço indelével e, esse sim, histórico e secular da legitimação dos privilégios das classes dominantes no Brasil.

Não se trata de coincidência que os mais pobres sistematicamente expressem avaliações mais favoráveis sobre o governo. Menos interessados e atentos [destaque meu J.S.], esses entrevistados tendem a concluir que os serviços prestados pelo governo não guardam correspondência com a carga de impostos que pagam, assemelhando-se mais a dádivas do que a contraprestação.90

O contexto dessa citação é a “saia justa” dos autores para explicar o apoio dos setores populares ao atual governo e à intervenção compensatória do Estado. Para os autores, esse tipo de apoio só pode ser “burrice” (a definição, no contexto da vida cotidiana, para quem é “pouco interessado e atento”) das classes mais pobres, e nunca percepção racional dos próprios interesses. A relação entre “pobreza” e “burrice” não é casual nem arbitrária. É digno de nota que os autores tenham criticado a pretensão de querer “ensinar” as classes quais são seus verdadeiros interesses do marxismo (e isso, já na página 9), fazendo a mesma coisa com sinal contrário no restante do livro – ou seja, como racismo e desprezo de classe, no contexto do elogio às classes altas percebidas como “bastião da moralidade nacional” (sic). Na verdade, seria engraçado se não fosse trágico por espelhar toda uma visão de mundo institucionalizada e naturalizada entre nós. Tão naturalizada que os autores a repetem sem nenhum pejo. A legitimação pela “inteligência” é um dado necessário para a violência simbólica de um tipo de dominação social que tem que legitimar os próprios privilégios por uma espécie de “talento inato”, a “inteligência” das classes superiores, que “merecem” – a definição cabal da “meritocracia” –, portanto, os privilégios que efetivamente possuem.

Mas o trabalho do elogio da dominação fática em uma das sociedades mais perversas e excludentes do planeta não termina aí. Além do aspecto cognitivo (mais inteligente), temos que adicionar também o aspecto “moral”, que envolve as noções de “mais justo”, “superior” e “melhor”. Afinal, a violência simbólica da construção do “merecimento” do privilégio não pode se resumir ao elogio dos mais inteligentes. Dentro da tradição religiosa que construiu a moralidade ocidental, são os “bons” que merecem tudo. Assim, a violência simbólica bem-feita tem que mostrar que as classes dominantes são, além de mais inteligentes, “melhores” e mais “virtuosas”.

Como esse “trabalho de legitimação” é construído por nossos autores? Ora, toma-se a noção superficial, confusa e compósita de “capital social” – já em Robert Putnam, o inventor do conceito e da moda,91 um termo que naturaliza processos sociais e esconde a gênese dos privilégios de qualquer espécie e não apenas os regionais – e a recobre com a noção menos clara e ainda muito mais confusa de “confiança”. Pronto, aqui fechamos o círculo da violência simbólica. Afinal, no horizonte moral em que estamos inseridos, quem merece mais “confiança” é mais “virtuoso”, é “bom”, é “melhor”. Apenas aqui o círculo da legitimação de privilégios fáticos se torna perfeito. Vejamos os autores:

Entre os valores morais e como parte do capital social, destaca-se a confiança, isto é, a norma informal que promove a cooperação entre dois ou mais indivíduos, tratada a seguir. Ao promover a cooperação em grupos, a confiança é respaldada por virtudes tradicionais como honestidade, reciprocidade, respeito aos compromissos e cumprimento das obrigações. Seu alcance é amplo. Ao reduzir custos de transação, a confiança contribui para a eficiência da economia, o empreendedorismo e o progresso econômico. Além disso, está na base da participação democrática e dos sentimentos de empatia e de compreensão do interesse coletivo.92

Pela definição acima, a “confiança” é a chave para o progresso econômico e político, e, assim, a chave para o progresso social. O leitor seria capaz de antecipar quem detém, para os autores, recurso tão fundamental? Tenho certeza de que o caro leitor acertou em cheio: as classes dominantes! Afinal, não são apenas as mais inteligentes, são também as mais honestas, melhores, são “boas” pela definição de moralidade ocidental. Classes tão boas e virtuosas “merecem” mesmo dominar e monopolizar todos os recursos escassos em suas mãos. É “justo” que isso aconteça. É interessante prestar atenção à gênese histórica de conceito tão caro à ciência conservadora. De onde vem essa noção e qual sua trajetória para que os autores tenham se utilizado dela sem qualquer cerimônia, como um dado óbvio e indiscutível?

A ciência conservadora que domina as universidades e o debate público no Brasil é, na realidade, uma franchise da ciência conservadora mundial. O centro dela está nos Estados Unidos, não porque sejam piores ou melhores que ninguém – ao contrário, a contracultura norte-americana, por exemplo, é talvez a mais interessante e vigorosa do mundo –, mas simplesmente porque os poderes econômico e político em escala mundial foram consolidados lá. Quando a ciência conservadora internacionalmente dominante se dignou a se interessar pelos países periféricos do capitalismo, como a maioria dos países da América Latina, África e Ásia, desenvolveu-se, com muito dinheiro financiado pelo Estado norte-americano – na administração Henry Truman do imediato pós-guerra93 –, toda uma linha de pesquisa bem-montada e uma, para a época, nova teoria: a teoria da modernização, que não por acaso examinamos na introdução deste livro.

Qual era um dos pilares mais importantes dessa teoria? Acertou quem pensou no conceito de “confiança”. Mas essa não era uma pergunta tão difícil. A próxima questão é muito mais desafiadora. E qual era a nação que tinha maiores reservas de tão valioso recurso? Novamente o caro leitor acerta em cheio ao identificar os Estados Unidos, já que os norte-americanos, além de bons, são também os mais inteligentes e não financiariam e estimulariam no mundo todo – inclusive no Brasil, e até hoje – estudos contrários aos seus interesses. Existia uma “hierarquia” em todos os estudos da teoria da modernização, e sequer tenho de perguntar ao pobre leitor, cansado de tantas perguntas com respostas óbvias, quem ocupava o primeiríssimo lugar em todas as hierarquias possíveis e imagináveis: os Estados Unidos da América.

A história de glória mundana da noção de confiança começa com Tocqueville94 ao analisar a sociedade agrária norte-americana do início do século XIX, e lá se vão duzentos anos, intervalo de tempo no qual os Estados Unidos se transformaram em uma sociedade industrial, urbana e complexa muito diferente daquela analisada pelo pensador francês. Cem anos mais tarde, quando vai aos Estados Unidos, no começo do século XX, Max Weber – figura insuspeita quando se fala de Estados Unidos, já que é dele a melhor defesa da singularidade norte-americana ao analisar a influência da “confiança” religiosamente motivada como base da solidariedade protestante ascética (que se desenvolveu no país como em nenhum outro lugar) – percebe claramente que o que antes eram fé e ética da convicção se tornam cada vez mais hipocrisias, reduzindo confiança e solidariedade ao seu uso instrumental.95 Esse texto weberiano, no entanto, que não fica a dever em brilhantismo a nenhum outro, com razão permaneceu como um dos menos estudados. No uso “político” de conceitos científicos só interessa os que servem – depois de distorcidos e simplificados como vimos anteriormente – à legitimação.

A teoria da modernização viveu duas décadas de glória até que, a partir de meados da década de 1960, seus próprios ativistas mais sérios e competentes passaram a reconhecer crescentemente o caráter artificial e legitimador de boa parte de seu aparelho conceitual.96 A partir daí, a teoria da modernização, como paradigma de análise das “sociedades em desenvolvimento”, perde legitimidade internacional, e tanto a preocupação com as sociedades em processo de modernização quanto a continuação dos estudos baseados nessa teoria são relegados à margem do debate acadêmico. Mas o confinamento da teoria da modernização aos menos valorizados departamentos latino-americanos das universidades norte-americanas e europeias não equivaleu a uma sentença de morte. Ainda não veio nada com força suficiente para desbancar a eficácia “prática” de conceitos e noções como “confiança”, que se assemelham mais a armas de opressão do que a instrumentos de explicação.

Na verdade, o “senso comum” internacional foi moldado pelo imaginário da teoria da modernização, e o mesmo continua até hoje – como um vampiro que se recusa a morrer –, como se por inércia, tanto por falta de coisa melhor quanto por seus efeitos práticos ficarem até melhor garantidos sem um contexto de debate rigoroso e verdadeiro. O fato é que esse aparato conceitual é aplicado no Brasil até hoje,97 como se fosse coisa nova e nunca criticada. E continua servindo aos mesmos fins: assim como esses conceitos tinham que justificar o domínio norte-americano no mundo, servem para justificar, nos contextos nacionais dos países latino-americanos, o racismo de classe e o privilégio fático dos setores dominantes. E da mesma forma que a presença ou ausência da “confiança”, ligada à capacidade associativa e produção de solidariedade, separava os Estados Unidos da Itália98 (ou, de resto, de qualquer outro país do globo), serve para separar, também como uma oposição simplista entre virtude e vício, as classes dominantes das classes populares no Brasil.

As classes populares brasileiras não sabem “votar”, pois não conseguem ter uma compreensão racional de seus interesses, sendo, portanto, presa fácil do estatismo e do populismo. Ora, na história do Brasil, nos raros instantes em que se prestou atenção a demandas dos setores oprimidos, isso sempre aconteceu por meio do engajamento estatal, e nunca do mercado. Por que o reconhecimento racional e frio dos próprios interesses, quando se trata de setores populares, ganha o nome de burrice? Os autores chegam a dizer com todas as letras que atender aos anseios da maioria da população – no Brasil as classes populares perfazem mais de 2/3 da população total – é “populismo”.99 Certamente, por pura exclusão e necessidade lógica, atender o 1/3 de privilegiados seria, com certeza, a verdadeira “democracia”, o verdadeiro governo da maioria, pelo menos da maioria que se considera “gente”. Estamos, realmente, em um estranho mundo onde os ideólogos nem sequer precisam mais esconder seu “racismo de classe” mais óbvio e cruel.

Esse é o verdadeiro conteúdo e mensagem de um livro como o de Lamounier e Souza. Mas não são apenas eles. A teoria dominante no Brasil, que percebe o país como patrimonialista, pré-moderno, corrupto e baseado em relações pessoais, é inteiramente derivada do mesmo berço de ideias que permitiu o surgimento da teoria da modernização. Na verdade, o racismo científico, dominante na antropologia e sociologia norte-americanas até o início do século XX, transforma-se, com a perda de validade dos preconceitos racistas como fundamento científico, em “culturalismo”.100 Franz Boas, com sua crítica ao racismo na antropologia norte-americana, influencia não só as ciências sociais daquele país, mas também as brasileiras por meio da figura demiúrgica de Gilberto Freyre. A partir daí, a superioridade de certos países e classes terá que ser legitimada, agora, pelo acesso privilegiado a certo estoque de “virtudes culturais”, entre eles a “confiança”. Mas a função prática do “culturalismo” continua a mesma do “racismo científico”: legitimar, com a aparência de ciência, situações fáticas de dominação.

Alguém já imaginou o prejuízo econômico, político e moral de tal discurso, naturalizado e não questionado entre oprimido e opressor, internacionalmente compartilhado, em que alguns povos e nações são percebidos como incorruptíveis e confiáveis e outros, como nós, brasileiros, como corruptos e indignos de confiança? Esse “racismo culturalista” é a ordem do dia do mundo prático das finanças e da política internacional. Uma das mais importantes justificativas da alta taxa de juros brasileira é a suposta inconfiabilidade dos brasileiros de honrar seus compromissos.101 Nossos “intelectuais da ordem”, que mandam na academia e influenciam o debate público midiático, deveriam receber uma medalha de ouro do Departamento de Estado norte-americano por serviços prestados, pois travestem de legitimidade científica preconceitos arraigados, que estão subjacentes em qualquer tipo de intercâmbio internacional. Deveriam também ter estátuas com seu peso em ouro em “Wall Street”, porque esses mesmos preconceitos são convertidos em moeda sonante e quem paga somos todos nós, cidadãos comuns. Paga-se, afinal, um preço que não é baixo pela má fama construída e legitimada com recursos pseudocientíficos.

Internamente, no contexto do debate público e político brasileiro, esses preconceitos são utilizados para o mesmo fim que no senso comum internacional. Em vez de países, como lá fora, temos aqui classes virtuosas e classes sem virtude. Algumas classes possuem inteligência – ou seja, percebem que a corrupção e o descalabro moral apenas do Estado é o real problema brasileiro – e as outras, populares, são tolas e lenientes. Algumas são dignas de confiança e possuem “capital social” – talvez o conceito mais confuso da história das ciências sociais que se refere a tudo e, portanto, a nada – e outras são relegadas ao “amoralismo familiar”.102 Como em todas as hierarquias morais do Ocidente que permitem separar entre o superior e o inferior ou entre o nobre e o vulgar, a oposição que serve de referência é, sempre e em todos os casos, aquela entre o espírito e o corpo. O “espírito” é o lugar das funções nobres e superiores do intelecto e da moralidade distanciada. O “corpo” é o lugar das paixões sem controle e das necessidades animais.

Desse modo, o arsenal de noções ad hoc utilizadas para legitimar o predomínio de alguns países sobre outros é exatamente o mesmo para justificar a dominação interna das classes mais “cultas” sobre as populares. Do mesmo modo que o Brasil é tornado “corpo” e “animalizado” como terra do sexo, do afeto e da emoção – e por extensão da corrupção, do patrimonialismo e das relações pessoais, que é, supostamente, o que o domínio das emoções produz – e se contrapõe como “corpo” à cultura “espiritual” norte-americana, do cálculo, da racionalidade, da confiança e da moralidade distanciada das emoções, precisamente as mesmas “armas” são usadas para estigmatizar e “infantilizar” – e o “infantil” bem como o “tolo” tem que ser guiado por alguém – as classes populares.

Por conta disso se fala sem qualquer cerimônia no voto dos mais pobres como um voto do tolo sem consciência de seus interesses. O intuito aqui não é apenas legitimar a dominação social iníqua de um tipo de capitalismo concentrador e injusto, mas também uma tentativa de “guiar” o processo de desenvolvimento social e direcionar a sociedade brasileira em certo caminho. Quando se diz que uma classe ainda não percebeu os males do estatismo e não descobriu ainda o maravilhoso mundo do mercado e suas virtudes e liberdades, o que se pretende é influenciar a trajetória dessa classe em dada direção muito particular. Novamente, não se trata apenas de Lamounier e Souza. É todo o debate público brasileiro dominante, e o mesmo que os autores criticados dizem é dito pelos jornais e televisão todos os dias.

O trabalho desses autores tem interesse para nossos propósitos porque é um espelho da forma como as classes populares são vistas e percebidas pelas classes dominantes no Brasil. Essas classes têm partidos políticos próprios e controle sobre a Justiça, as universidades e a mídia em todas as dimensões. Sua forma de perceber o Brasil e seus conflitos – ainda que possa ser desconstruída pelo discurso racional – tende a selecionar a própria agenda daquilo que é percebido como importante e secundário. Sua força é ao mesmo tempo “prática”, pragmática, política e econômica. Essas ideias – capengas e sem qualquer valor de verdade – estão materializadas em práticas sociais e institucionais “naturalizadas” (daquelas que realizamos sem perceber) que fazem o dia a dia do Brasil moderno.


86Publicada no livro Souza, Jessé et al. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: UFMG, 2010.

87Lamounier, Bolívar; Souza, Amaury de. A classe média brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade. Rio de Janeiro: Campus-Elsevier, 2010.

88Dados IPEA. Economia brasileira: indicadores de performance macroeconômicas e perspectivas, 2009.

89Lamounier, Bolívar; Souza, Amaury de. Op. cit., 2010, p. 9.

90Ibid., p. 91.

91Putnam, Robert et al. Making Democracy work: civic traditions in modern Italy. Princeton: Princeton University Press, 1994.

92Lamounier, Bolívar; Souza, Amaury de. Op. cit., 2010, p. 108.

93Knöbl, Wolfgang. Spielräume der Modernisierung. Weilerswist: Velbrück Wissenschaft, 2002.

94Tocqueville, Alexis. Democracia na América. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

95Weber, Max. “Die protestantische Sekten und der Geist des Kapitalismus”. In: Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie I. Sttutgart: UTB Verlag, 1988.

96Eisenstadt, Shmuel. Tradition, change and modernity. Nova York: John Wiley & Sons, 1983.

97Almeida, Alberto. A Cabeça do Brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2008.

98Banfield, Edward. The moral basis of a backword Society. Nova York: Free Press, 1980.

99Lamounier, Bolívar; Souza, Amaury de. Op. cit., 2010, p. 133.

100Stocking, George (ed.). Volksgeist as Method and Ethic: Essays in Boasian Ethnography and the German Anthropological Tradition. Madison: University of Wisconsin Press, 1998.

101Grün, Roberto. “Entre a plutocracia e a legitimação da dominação financeira”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 22, nº 65, 2007.

102 Conceito clássico, absoluto sucesso entre nossos cientistas colonizados; do livro de Banfield, Edward. The Moral basis of a backward society. Nova York: Free Press, 1980.